O coelho tinha três cabeças, as três com jubas de leão, línguas de cobra, asas de gafanhoto – um par só. Nu de todas aos pés (de cabra, por supuesto), não fosse a gravata borboleta de cor púrpura e o fraldão geriátrico ton sur ton contrastando com o branco dos pelos anelados. “Vem pra cá, vem pra cá”. A sua frente, sentada num tamborete e de joelhos grudados, uma mocinha na casa dos vinte e poucos. Ambos diante de uma plateia a perder de vista penumbra adentro e todos, de um telão tão colossal quanto: Brasília, Distrito Federal, vista de cima. Plano avião, meticulosamente fálico.
— Congela, congela — o coelho interrompeu o VT. — Deixa eu ver se eu entendi. Você já conhecia o tal do Iago a essa altura, né?
— Conhecia sim, a gente foi apresentado durante a…
— Retórica, minha filha. Precisa responder não. Bora ver se eu adivinho: você tava apaixonadinha, tava não? Sonhava em se casar com o moço, político proeminente, boa pinta, ganhando cada vez mais espaço no partido. Ter uns quatro ou cinco filhos, talvez? Eu teria logo uns oito. Já pensava em ser política também, né? Branquinha, bonitinha, a macharada ficava tudo doida. Com o Fortunato não foi diferente, né, minha filha? Você lá pensando que ele só queria lutar pelos ideais do partido que vocês comungavam, né, não se dava conta mesmo de que ele queria te papar? Me diz se eu não tô certo: sempre sacou as investidas do Fortunato pra cima de você, mas você se dizia apaixonada, ficava com medo de ser queimada no partido, e tentava ser “agradável” conforme manda o figurino. O que o Fortunato, do alto de toda aquela segurança, acabava interpretando como charme, doce, e as investidas só faziam piorar. Aí, ele veio com aquele papo de reunião da CPI da UNE, te chamou pro apartamento dele, você chegou lá, não tinha ninguém, ele já tava calibrado, papo vai, papo vem, deu o bote. Você tentou se esquivar, ele ficou agressivo, te agarrou à força, você começou a chorar, implorou pra ele parar, ele te soltou com um tapa na boca e te chutou de lado feito um cachorro. Ele pegou mesmo uma faca? Foi quando você começou a gritar? Aí bateram na porta, ele mandou você se recompor e você aproveitou pra sair correndo tão logo teve a oportunidade. Não foi isso?
— Foi sim, eu tava com muit…
— Retórica, bebê. E correu logo pros braços da Daniela? Já com os prints da carne fraca em mãos? Tapinha de amor não dói, né? Tava pensando o quê? Que só por ela ser fêmea talvez fosse melhor do que qualquer macho naquele partido? Só porque ela vinha com aquela conversa furada de violência doméstica nos programas eleitorais dela? Valha-me esse Deus Caprino aí de vocês, viu. Santa ingenuidade. Solta o VT.
— Não, pera, pera. Congela de novo. Volta aí.
— O que vocês dois tavam fazendo sozinhos na sede do partido? Como foi pra isso acontecer, ele te chamou prum canto? Pruma salinha mais reservada? Peidou, não peidou? Peidou, que eu sei. A Daniela tava junto, que eu sei também, foi ela quem contou pro Evandro sobre os prints assim que você deu as costas pra ela e foi ela também quem soltou um “porra, peidão” na hora lá.
Dessa vez, a mocinha preferiu não se pronunciar.
— Pode soltar.
— Quer dizer: não satisfeita em ter confiado na Daniela, o próximo nessa tua listinha dos mais confiáveis foi o Brenner, um dos chefões da milícia em São Paulo? Isso foi ingenuidade mesmo, minha filha? Foi paixão? Quero conhecer esse tal de Iago, viu. Pelo visto, você ia sair perdendo mesmo. Mas claro que o Fortunato ia ligar pra ele, né? E claro que ele ia te trocar por qualquer migalha, nem precisava ser a vice-prefeitura. Você foi mostrar os prints logo pra Daniela, cutucou a onça com vara curta, e olha que essa onça… pois é. O Fortunato, não a Daniela. Mas enfim. Você tinha acabado de entrar no jogo, crionça. E foi aí que você começou a perder. Não, na conversa com o Brenner não. Isso foi praticamente suicídio, burrice. Ok, valeu por ele ter confessado trair a mulher, duas vezes. “Você confia em mim?” Ara, faz favor. Tava falando de ter ido procurar a Daniela mesmo. Da próxima vez, já sabe: Chama os Livres. Só samurai lá. Mas continuemos. Procurou o Brenner. Caçou ainda mais sarna pra se coçar. Foi gravar a conversa, pensou que tava abafando e o cara foi te levando no papo, na manha, até jogar a isca assim como quem não quer nada e a mocinha caiu que nem patinho. Aí, “relações”, um amasso, tentativa de estupro, virou “relação sexual” na grande imprensa depois que o áudio da conversa vazou. Com aquele papo de não saber se era brincadeira do Fortunato, você tava se referindo ao batom. Né? “Já está resolvido”. Nessa hora, o que foi mesmo que você disse? “Como que você vai fazer isso, meu Deus?” com uma voz toda choramingona. É, seu Iago…
O coelho suspirou, baixou a cabeça e fez sinal girando o dedo no ar.
Silêncio.
Silêncio prolongado.
— Eu prefiro nem comentar essa parte, viu, pula pra próxima. A fé dessa menina é impressionante. Foi tratar direto, de novo, com o cara de bode-futum em pessoa. Sertin… foi logo depois disso que o Fortunato soltou por “engano” no Twitter dele aquele print que usaram mais tarde nas montagens, né? Pula, pula, pula.
— Esse Thales foi o que acabou virando teu namorado, né? Sem sal, o rapaz, vamos combinar. Tava carente, minha filha? Essas três semanas devem ter sido uma bela bosta, foram não? Me diz uma coisa, você pensou mesmo que aquele cabritinho da Executiva Jovem ia ser capaz de fazer alguma coisa? Pois fez: espalhou o “boato” pra Deus e o mundo. Foi aí que as coisas começaram a complicar pro teu lado, não foi? Quer dizer, complicar de verdade. Teu namoradinho foi querer dar uma de macho, deu no que deu. Caiu nos ouvidos do professor lá, de novo a senhorita caiu na lábia de um macho, esquerdomacho e jornalista ainda por cima, o cara não hesitou um segundo sequer antes de foder com a tua vida e jogou a merda toda no ventilador. Parabéns pro casal. Prometia. Mas isso eu conto depois, tô me antecipando. Solta o VT.
— Não, não o Laércio. Esse até que tava com boas intenções. Geral nesse quadro aí. Só que aqui não é o inferno, então: segue o bonde.
— Agora, agora sim, entra o Hélio na história. Você não achou muito estranho que ele tivesse te procurado? Coincidência, né, ele ter soltado a bomba no Face um dia depois da mocinha ter chegado a São Paulo. Quais eram esses assuntos que a senhorita tanto tinha pra cuidar com o Roger? Bora ver se eu acerto: belo dia, ele te abordou do nada prometendo mundos e fundos, e que ia resolver a situação pro teu lado no partido. Talvez uma semana antes, na época em que o Pastor Fortunato acabou desistindo da candidatura à prefeitura de São Paulo, foi não? Lê jornal não, minha filha? Pra apoiar a candidatura justo do Ratomano, veja só, quem, por sinal, era do mesmo partido que o Roger, né? Baita coincidência, hein? Mas me diz, que conversa foi aquela dos R$ 300 mil? Aqui não adianta esconder o jogo, Alícia. Você pensou o quê, minha pombinha, que o Roger ia mesmo te pedir ajuda pra ferrar com o Fortunato, o Ratomano já tendo a prefeitura nas garrinhas dele? Não se deu conta de que era você a moeda de troca, não, bebê? Vou te contar, viu… sei não. Foi aí que a senhorita começou a se enrolar. Meu palpite? Você armou com o Roger pra cima do Brenner sem saber que o Brenner tava armando com o Roger pra cima de você.
Alícia parecia estar inconsolável. Chegou a tremelicar suspirando.
— Pois é… tudo armação entre os dois partidos pra livrar a cara do Fortunato, eleger o Ratomano prefeito e deixar que você se fodesse sozinha. Senão, vejamos. Tá sentada, né? Melhor ficar sentadinha mesmo, que lá vem história…
Silêncio total na plateia.
— Eu tô besta. Te juro que eu tô besta. Quer dizer então que você não se tocou mesmo que era tudo armação? E ainda foi à delegacia na companhia do algoz, exatamente como ele queria que você fizesse. Aposto minhas fraldas: ele ainda repassou a história contigo antes, se é que não foi o próprio quem inventou tudo sozinho. Né mesmo? Deus, Deus… tô passado. Quer dizer, o vídeo que o Roger fez supostamente escondido do Brenner pra te ajudar acabou te incriminando? Jura? Sério mesmo? O que o Roger te disse? Tenta tirar do Brenner que ele tem os canais pra sumir com um corpo debaixo da ponte? Foi por isso que você pediu pra ele matar o “Agente da ABIN”? Seguinte, minha filha: o agente não era agente mesmo e foi contratado pelos dois pra te aterrorizar. Quando mais desesperada, afinal, melhor pra todo mundo. Daí também um te prometer R$ 300 mil pra ferrar o que te prometia R$ 20 mil mas acabou dando R$ 50 mil pro cara que te enrolou R$ 40 mil. Dinheirama essa que nunca nem existiu, tudo virtual que nem na Bolsa. Fora os R$ 20 mil, claro, que o próprio Roger levou à delegacia. Percebe? Ou precisa desenhar? Com isso em mãos, aí sim, o Brenner que até então só falava manso resolveu engrossar o tom de voz, botou a filha na jogada pra tudo parecer mais leve e seguro aos olhos dos funcionários do hotel, a senhorita se achando com o Roger lá de testemunha, te assegurando que seria o melhor a se fazer porque, né, não é bom mexer com esse povo de milícia mas depois a gente dá um jeito, e: delegacia, boca no trombone de vez, circo armado. Aí, foi só pegar um ou outro casinho de quando você era ainda mais ingênua (veja bem: não inocente), jogar uns prints falsos na rede e voilá: estrago feito. Aliás, esses prints falsos, que maravilha… horário errada, pinta trocada, nem teu nome tá escrito direito. Jogada de mestre, a gente tem que admitir: em nenhum momento o Fortunato assumiu a autoria do vazamento, tampouco os prints foram apresentados como provas em juízo. São só prints grotescos num blog pé de chinela. Bastou. Quem se importa? E aí, foi só soltar o tal vídeo que a senhorita mesma pediu pra ele gravar, mais outro de um abraço no saguão do hotel, compras no shopping e, olha só, nunca existiu nada disso: coação, sequestro, nada. Não foi o que a polícia usou pra refutar as ameaças de morte e o cárcere privado? O vídeo? O mesmo vídeo que também serviu pra te incriminar por calúnia e extorsão? Pois então… lembra de como o Brenner te tratava naquela primeira conversa? “Delicada”, “fragilzinha”, “a parte fraca”. Pelo visto, ele não só tinha razão como sabia muito bem do que tava falando. Nem foi indiciado por nada, né, compra de silêncio, nada disso. Tinha pleno conhecimento de estar sendo gravado, jogou até o papo da tabela FIPE pra tirar a bronca no caso de um indiciamento, velhaco que só ele. Você ficou perdidinha nessa hora, né? Até soltou um “não entendi”. Sabe, eu também já tive 22 anos e fui cheio das ideologias, não é à toa que eu tô aqui. Mas eu acho que você já sabia, né, que pra sobreviver em Brasília ia ter que rebolar? Triste, eu sei. O que é que eu posso fazer? Vocês que são branquinhos e lanosos que se entendam. Essa dança das cadeiras lá de Brasília tem nada a ver comigo não. Vai entender: ontem no PMDB, hoje no PSDB, amanhã no PSC, depois de amanhã no PT. Hate the game, not the player, né? Pena que o povo não entendeu bem assim e a nossa pequena Maria Madalena aqui acabou sendo apedrejada em canal aberto. Mas e aí, gente, me diz, condena ou não condena? Vai pro céu ou pro inferno?
A plateia respondeu dissonante, ecos desencontrados ziguezagueando ao infinito e além, à guisa de uma das tantas sessões no Plenário a que Alícia já estava tão acostumada quando em vida. Ainda assim: seu rosto, deformado de aflição. Sim, caiu a lágrima.
Enquanto isso, nos bastidores, um assistente de produção (eram todos sombras) empurrava o que de longe pareceu ser uma ovelha descabelada.
— Bora, Dum Dum, anda logo que eu tô com pressa.
— Mas, mas, mas eu não vou ser julgado também? Eu quero subir naquele palco, me deixa. Eu sou bom nisso, irmão, eu tenho tanta coisa guardada no coração pra desabafar, alivia essa pra mim, vai… não, pera…
.:..:..:.
Acordei já com o ônibus estacionado na plataforma do Tietê. A primeira coisa que fiz ao chegar em casa, evidente: enviar todo o material colhido a terceiros (não sem antes dar um tapa nos vídeos com o Viva, logo: segunda). A quarta: fazer o devido e prudente backup. Pluguei meu celular no computador, digitei a senha e tzz. Nova tentativa. Outra por teimosia, daí em diante desespero, tzz, tzz, tzz, e puf. iPhone inativo. Em tempos de guerra informacional, já deveria saber, todo cuidado é quase o mesmo que nada. Quanto mais quando em paralelo se trava uma guerra cultural na qual invariavelmente somos coagidos a optar por um lado: Jesus ou o resto do mundo. Troca-se Jesus por Maomé, e tudo na mesma. Toda guerra porém é política. Logo: muito mais se encontra em jogo do que apenas aquilo que nos é mostrado em cena, defendido em cena. Como se a política em si já não nos bastasse. Um consolo: ao menos é um novo bastião da moralidade que cai por terra, bastião do Golpe defendido em nome da tradicional família brasileira. Duro é saber que, pra cada corpo tombado, dois outros se levantam ainda mais irascíveis e surdos a quaisquer argumentos. E assim vão formando todo um Exército do Senhor a postos e disposto pro que a cada dia vem se tornando mais e mais uma guerra santa. Após uma sequência cíclica de primaveras, ao que parece, o inverno enfim chegou. Pecar afinal pode: Deus sempre perdoa. Importa mesmo é dar o exemplo. Todos sabemos, “a carne é fraca”. Os espíritos portanto que se criem sozinhos.
.:..:..:.
Por volta das cinco, o delegado Luiz Roberto Hellmeister anunciava que Patrícia Lélis seria indiciada por calúnia e extorsão.