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Categoria: Tortura

  • Jornada de luta contra TORTURA, NÓS QUEREMOS RESPIRAR!

    Jornada de luta contra TORTURA, NÓS QUEREMOS RESPIRAR!

    Este ano as atividades da Jornada de Luta Contra Tortura tiveram que ser feitas online. A últimas semanas foram marcadas por atos no mundo todo contra o racismo e a violência policial, depois da morte por tortura de um homem negro, o asfixiamento de George Floyd, nos Estados Unidos. Mesmo a enorme mobilização das redes para o assunto #VidasNegras Importam, na semana seguinte noticiamos a morte de mais um jovem negro,  Guilherme Silva Guedes de 14 anos, vítima de tortura por agentes policiais em São Paulo. É por isso, que a Jornada de Luta contra Tortura é fundamental, e precisa ser renovada todo ano, principalmente no Estado de São Paulo, que tem a policia que mais mata.

    A Jornada reúne diversos movimentos sociais que articulam ações de conscientização ao longo de três meses, até culminar num ato na praça da Sé no dia 26 de junho, Dia Internacional de Proteção às Vítimas de Tortura e Tratamento Degradante, instituído pelas Nações Unidas.

    LEIA ABAIXO o MANIFESTO:
    JORNADA DE LUTA CONTRA A TORTURA E EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
    NÓS QUEREMOS RESPIRAR!

    Vivemos no Brasil um período sombrio. Autoridades públicas brasileiras, fazendo uso e abuso das suas funções, perpetuam, sem nenhum constrangimento, violações de direitos humanos.

    Desde a última ditadura civil-militar, a frágil democracia brasileira foi incapaz de superar os males de origem do país como o genocídio dos povos indígenas, da população negra e dos pobres nos campos, florestas e periferias brasileiras.

    O Judiciário continua sendo a mão de ferro do encarceramento em massa. Enquanto o Brasil ocupa a sétima posição global em desigualdades, quase 800 mil pessoas encontram-se encarceradas. O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. E o Estado de São Paulo é o que mais encarcera no país. Em todas as unidades de privação de liberdade espalhadas pelo país, homens e mulheres pobres e negros, incluindo adolescentes e unidades de destinadas a saúde mental, a tortura é praticada como método de controle da população encarcerada.

    As chacinas e execuções sumárias impregnam as periferias e os noticiários do país e a tortura permanece sendo o método sistemático das polícias para incriminar, obter confissões forçadas, forjar provas, inclusive para criminalizar diversos movimentos e organizações sociais e populares que lutam contra este estado de violações de direitos humanos.

    Gestores e agentes do Estado têm vindo a público estimular impunemente arbítrios praticados por policiais e autoridades ligadas à segurança pública.

    A “guerra às drogas” declarada pelo Estado só fez aumentar a prática da tortura, o encarceramento em massa, a execução sumária e as chacinas. Somente no primeiro quadrimestre de 2020, 381 pessoas foram assassinadas por policiais militares e civis em São Paulo. As audiências de custódia, que visavam fazer os juízes verificarem se torturas, maus-tratos e arbitrariedades foram cometidas no momento da prisão, não têm dado resultado porque a maioria dos juízes não interroga o preso de modo que ele possa denunciar se foi torturado.

    As “bancadas da bala” que atuam nos legislativos incentivam o “linchamento” dos povos indígenas, negros, LGBTs, ampliando o ódio contra os mais pobres. Querem mais armas para matar mais jovens negros nas periferias.

    Juízes e policiais, bem como uma parte da população é imobilizada diariamente assistindo programas televisivos que estimulam o medo social, apóiam a tortura como método de vingança. Mas vingança não é justiça!

    A tortura é uma prática herdada da colonização, aprimorada ao longo do período de escravização da população negra e que se estende até os dias atuais, entranhada, inclusive, na mentalidade de parte significativa dos órgãos de controle do Estado.

    Neste momento de agressiva desigualdade e empobrecimento da maioria da população, o resultado será mais pessoas vulneráveis à perseguição e à violência policial. Terreno fértil para o uso da tortura praticada pelos agentes do Estado como uma perigosa arma de controle social, seguida pelas execuções sumárias, chacinas e o encarceramento em massa.

    Preocupados com a prática sistemática da tortura e da violência dos agentes do Estado, especialmente policiais, somamos esforços com outras mobilizações pelo mundo que colocam o racismo como pilar estrutural das violações de direitos humanos e arbítrios do Estado, exigimos: basta de tortura neste 26 de Junho – Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Nós queremos respirar!

    Exigimos, mais uma vez, que a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e o Governo do Estado de São Paulo dêem demonstrações efetivas de que não são coniventes nem apoiam a tortura e a violência praticada pelos agentes do Estado, criando e implementando o Comitê e o Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo, com plenas condições de atuação, além de independência e autonomia, de acordo com o Projeto de Lei nº 1257/2014, em conformidade com o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (Lei nº 12.847/2013) e a obrigação assumida internacionalmente pelo Brasil no momento da ratificação da Convenção da ONU Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto nº 40/1991) e seu Protocolo Facultativo (Decreto nº 6.085/2007), reiteradamente cobrada pelos organismos internacionais.

    Ao criar o Comitê e o Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura, o Estado de São Paulo dará um importante passo na proteção dos direitos humanos.

    A TORTURA NÃO É COMPATÍVEL COM A DEMOCRACIA!

    São Paulo, 26 de junho de 2020.

     

    Com o intuito de mobilizar as pessoas que acompanham os Jornalistas Livres para a questão, e usando o recurso das entrevistas ao vivo, durante o mês de Junho, trouxemos diversos convidados, inicialmente usando o espaço do programa VOZ ATIVA que é apresentado por Ruivo Lopes.

    ABRIMOS A JORNADA:

    No dia 5 de junho, conversamos com Adriano Diogo, coordenador Nacional dos Direitos Humanos do PT, ex-Deputado Estadual, responsável, entre outras coisas, pela criação do SOS Racismo e da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo- Rubens Paiva, que apuraram os crimes dos agentes do estado que ocorreram durante a Ditadura Militar.

    No dia 12 de junho contamos com presença de diversos ATIVISTAS DA REDE DE PROTEÇÃO E RESISTÊNCIA AO GENOCÍDIO numa entrevista coletiva sobre OS BRASIS QUE(M) MATA E QUE(M) MORRE.

     

    Dia 19 Junho conversamos sobre DIREITOS HUMANOS NA IMPRENSA BRASILEIRA, com o jornalista Flavio Carrança, diretor do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo e coordenador da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial; o jornalista Fausto Salvadori, editor do portal Ponte – Jornalismo e Direitos Humanos; e a também jornalista, Cecilia Bacha, editora dos Jornalistas Livre.

    Esta semana (21 a 26 de junho) intesificamos as conversas, abordando em duas entrevistas ao vivo o tema do MECANISMO DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA. Primeiro no dia 23 de junho, conversamos com Arnobio Rocha da Comissão de Direitos da OAB-SP, Fernando Ferrari codeputado estadual da Bancada Ativista do PSOL e Lucas Paolo do Instituto Vladmir Herzog.

    E hoje, 25.06 pudemos falar mais sobre o assunto com Adriano Diogo e Mateus Moro, defensor Público do Estado de SP, Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da DPE/SP, Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate á Tortura e Mestre em Adolescente em conflito com a lei, e Sylvia Dinis Dias, Assessora Jurídica Sênior e Representante da Associação para a Prevenção da Tortura (APT) no Brasil  Sylvia também trabalhou também para ONGs nos Estados Unidos prestando assistência jurídica para mulheres e crianças vítimas de violência e desenvolvendo campanhas de conscientização pública sobre igualdade de gênero e violência baseada no gênero.

    Amanhã para encerrar a Jornada convidamos Regina Lucia dos Santos, do Movimento Negro Unificado, e Angela Mendes de Almeida, do Coletivo Merlino, para uma conversa sobre QUEM TORTURA E QUEM É TORTURADO NO BRASIL. NÃO PERCA!

    O Ato na Praça da Sé em São Paulo, sempre contou a com a participação do público, que com o microfone aberto, faz falas sobre as dificuldades e injustiças que sofrem ou já sofreram no seu território.

    Veja a cobertura #aovivo feita no ato do ano passado:

    https://www.facebook.com/watch/live/?v=1146439788813022&ref=watch_permalink

    O grupo Pânico Brutal costuma contribuir e este ano vamos fazer uma versão online, ás 18h30.

     

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    A as coberturas que foram feitas pelo Jornalistas Livres nos anos anteriores

    Jornada de Luta contra Tortura vai à ALESP

  • João Torrecillas Sartori: O modelo de propaganda de Bolsonaro entre Freud e Adorno

    João Torrecillas Sartori: O modelo de propaganda de Bolsonaro entre Freud e Adorno

    Por João Torrecillas Sartori, médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política

     

     

    Muitos conceberam o pronunciamento oficial de Bolsonaro na noite de 31 de março como o mais moderado daqueles últimos dias. Alguns concluíram, atribuindo expressiva importância ao então recente isolamento político do Presidente, que este estaria recuando e se sentindo compelido a certa cooperação. Ainda mais ousadamente, em redes sociais, outros chegaram a afirmar a iminência de um impeachment. Factualmente, Bolsonaro se isolara politicamente: até mesmo alguns de seus ministros mais alinhados – como Mandetta, da Saúde – contrariaram abertamente suas declarações absurdas sobre a Pandemia da COVID-19. A contrariedade dos seus ministros certamente indicaria a instabilidade de seu governo. Naquele momento, acuado, solicitando de modo insatisfatório apoio do setor militar, Bolsonaro talvez tenha sentido a necessidade de uma revisão em seu discurso oficial.

    Contudo, embora Bolsonaro se encontrasse mesmo em isolamento político, o aparente recuo do dia 31 se inclui mais amplamente em um movimento cíclico, característico da sua estratégia de propaganda. Esta estratégia se alterna entre recuos e o uso de certo modelo de propaganda. Qual seria este modelo, no entanto? Recorrendo à obra de Adorno – referenciada na obra de Freud, criador da psicanálise –, o modelo de propaganda mais utilizado pelo presidente seria consistentemente considerado como mais um dentre muitos outros exemplos do denominado modelo de propaganda fascista.

    Em 1951, em sua obra intitulada Teoria freudiana e Modelo fascista de propaganda, Adorno utilizou a expressão agitadores fascistas na designação de líderes de massas os quais discursam de um mesmo modo, utilizando-se de um “complexo de medidas” rigidamente estabelecido. Para o autor, os variados agitadores, desde os menos valorizados socialmente, até os mais importantes, se comportam e se expressam semelhantemente em certos aspectos; monotonamente, embora de modo enérgico e extremamente ruidoso em muitas situações. Adorno escreveu que “a reiteração constante  e a escassez de ideias seriam elementos necessários ao método”. O material da propaganda fascista constituiria uma unidade estrutural, de modo que cada enunciado do agitador se determinaria por esta unidade.

    Dentro do marco estabelecido pela obra de Freud intitulada Psicologia das massas e Análise do Eu (1921), Adorno considerou que o agitador seria, ele mesmo, em alguma medida, convicto das ideias externalizadas às massas. Analisando o discurso de Bolsonaro nas últimas três décadas, é consistente a suposição de que as estruturas narrativas paranoicas externalizadas por ele aos bolsonaristas norteariam também as suas próprias ideias e atitudes.

    De outro lado, Adorno escreveu que a agitação fascista veio a ser um “meio de subsistência”, os agitadores aprimorando suas técnicas “empiricamente”, ao longo dos anos. O aprimoramento resultaria em certa padronização das técnicas, as quais, por sua vez, estão compatibilizadas com o modo de pensamento estereotipado dos indivíduos mais suscetíveis à propaganda fascista. Os agitadores menos eficientes não obteriam maiores êxitos e deixariam de ser considerados. De algum modo, mesmo que auxiliado por uma indústria de Fake News, Bolsonaro convenceu sua massa, obtendo o carisma medíocre de um agitador. Mas quais seriam as técnicas usadas pelos agitadores, entre os quais o Presidente?

    Para Adorno, entre os elementos constitutivos do método dos agitadores, estão as enunciações motivadas ao “apontamento do inimigo”, descrito na obra freudiana como um dos mecanismos de coesão das massas.  Neste contexto, Adorno estabeleceu que os agitadores se utilizam da denominada “técnica da unidade”. Discursam de modo a aumentar as diferenças concebidas entre os membros da massa e os não-membros da massa e, de modo a minorar as diferenças internas, entre os membros daquela, somente mantendo ressaltadas as diferenças hierárquicas. Justamente neste sentido, Adorno escreveu que os agitadores comumente atacam os intelectuais, os esnobes e os hedonistas, os quais, subversivos, contrariam a “técnica da unidade”. Estes três, mesmo não conscientemente, ameaçam o narcisismo do líder e, consequentemente, o de cada um dos membros da massa, evidenciando a inconsistência de suas crenças norteadoras.

    Adorno asseverou que, embora em alguns casos os agitadores tenham recomendado medidas concretas contra seus opositores – tais como a expatriação de sionistas e a realocação de estrangeiros aos campos de concentração – comumente o seu discurso se restringe, sobretudo, a argumentos ad hominem, por meio dos quais os opositores mencionados são sistematicamente atacados, sua imagem sendo convertida na de “inimigos da nação”, não se enunciando, entretanto, as citadas medidas concretas. Bolsonaro, mais comumente, não centrou o seu discurso em medidas concretas direcionadas ao combate aos seus repudiados opositores – chamados genericamente no bolsonarismo de comunistas, petistas ou esquerdistas –; mas, sim, na veiculação do ódio a estes últimos e na sua caracterização como “inimigos” do povo brasileiro – povo implicitamente concebido em seu discurso como não-comunista, não-petista e não-esquerdista.

    Muito comumente, os agitadores fascistas obtêm uma satisfação indireta de seus impulsos agressivos. Os seus liderados intuem de seu discurso estes impulsos e concluem sobre o modo como devem vir a agir: concretizando, eles mesmos, os impulsos agressivos de seu líder. As medidas do líder, sobretudo discursivas e não concretas, autorizam simbolicamente – isto é, validam socialmente – estes atos violentos. Já em meio às campanhas presidenciais, em 2018, se constataram mais comumente, em indivíduos e em movimentos de massa, certos comportamentos autoritários, agressivos e discriminatórios, a sua maioria, mantendo como alvos, indivíduos contrários à candidatura de Bolsonaro ou, aqueles identificados em “minorias identitárias” – étnico-raciais, sexuais, de gênero, entre outras. A maioria destes comportamentos teria sido constatada em apoiadores de Bolsonaro. O discurso de ódio deste último autorizou simbolicamente, e ainda autoriza, variadas modalidades de violência contra aqueles; e, inclusive, as modalidades físicas.[1]

    Por outro lado, Adorno sustentou que cada uma das variadas medidas constituintes do método dos agitadores se relaciona – mesmo que inconscientemente – com o estabelecimento ou com a manutenção de um certo vínculo afetivo, característico da massa. Este vínculo, denominado idealização, foi considerado, décadas antes na teoria de Freud (1921), como de natureza libidinal, uma modalidade de “enamoramento”, na qual certa disposição crítica individual desapareceria. Adorno evidenciou que mesmo Hitler mostrou saber da natureza libidinal da constituição das massas.

    Entretanto, Freud concluiu que o vínculo constitutivo da massa, correspondente a uma idealização de um indivíduo – isto é, à sua consideração como líder –, não consiste em um investimento libidinal direto. As suas metas sexuais são inibidas. Os integrantes da massa são muito excitáveis e sugestionáveis pelo seu líder, mas não estão conscientemente intencionando a atividade sexual explícita com este último. Freud entendeu que a “sugestionabilidade” dos integrantes da massa pelo seu líder, isto é, sua receptividade à sugestão deste último, se ocasiona pela sua relação de idealização.

    O Líder como encarnação do Eu Ideal

    Em 1921, Freud concluiu que em muitos casos o narcisismo estabelecido no indivíduo o condiciona à seleção, como seu líder, de um objeto semelhante a si mesmo, mas “caricaturado e demaculado” – isto é, contendo de modo exagerado os seus aspectos idealizados e contendo minorados os seus aspectos não aceitos. O líder seria aproximado imaginariamente do seu Ideal. Precisamente, seria a idealização de si mesmo pelos outros, aquilo que o líder intencionaria, inconsciente ou conscientemente, suscitar ou reiterar em seus seguidores.

    Adorno concebeu a propaganda fascista como relacionada com a “técnica da personalização”; e, assim, como motivada a ocasionar nos indivíduos a idealização – ou, mesmo, a mitificação –, de certo agitador. Não envolve, deste modo, a discussão objetiva de questões sociais e econômicas. Os membros da massa “se renderiam” a esta imagem idealizada. A sua rendição, assim como sua sugestionabilidade e a sua irracionalidade, são intencionalmente ocasionadas pelos expedientes mencionados. Freud, mesmo, considerou a escolha do líder como evento inconscientemente condicionado e, em seus termos, como “resultante não do raciocínio, mas, da vida erótica”. Isto é, considerou-a como resultante da ressonância individual de certos circuitos afetivos.

    Para Adorno, cada uma das medidas constituintes do método dos agitadores fascistas se motiva, mais restritamente, (1) à execução da “técnica da personalização”, antes evidenciada, ou (2) à concretização da ideia do “pequeno grande homem”. Esta ideia, por sua vez, consiste na crença de que o líder, ao mesmo tempo superior e vigoroso, seria um indivíduo comum, apresentando certos traços também apresentados pelos membros de sua massa. Para os bolsonaristas, o seu líder “botaria ordem na casa” tendo sido “capacitado por Deus”; mas, simultaneamente, seria em muitos aspectos exatamente como eles mesmos. Aparentemente, mesclaria entre si o extraordinário e o comum.

    Mesmo não sendo exaustiva, esta análise contribui a uma aproximação entre o modelo de propaganda comumente utilizado pelo Presidente e o modelo fascista de propaganda descrito por Adorno. Embora Bolsonaro tenha recuado ante as ameaças resultantes de seu isolamento político, e tenha revisado momentaneamente o seu discurso, não seria inconsistente a suposição de que, em seguida, retomaria o seu modelo de propaganda mais utilizado, caracterizado anteriormente. Foi o que ocorreu. A “estratégia” de comunicação do Presidente inclui, periodicamente, recuos e recrudescências, em uma espécie de movimento cíclico. A novidade deste recuo, ocorrido na noite de 31 de março, estaria mais em sua intensidade e no seu contexto que na sua ocorrência em si.

    [1] Ribeiro, Alexsandro; Zanatta, Carolina; Ferrari, Caroline; Roza, Gabriele; Lázaro Jr., José; Simões, Mariana; Lavor, Thays. Violência eleitoral recrudesceu no segundo turno. Agência Pública, São Paulo, 18 nov. 2018. Disponível em: https://apublica.org/2018/11/violencia-eleitoral-recrudesceu-no-segundo-turno/

     

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  • OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – Morre um herói da nação brasileira, vítima da Covid-19

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – Morre um herói da nação brasileira, vítima da Covid-19

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – 14/08/1939 – 10/04/2020
    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS 14/08/1939 – 10/04/2020

    Nascido em 14 de Agosto de 1939, na Cidade de Arapuã, MG, Osvaldo Antônio dos Santos era filho de Gaspar Silvério de Oliveira e Maria Antônia dos Santos. Teve uma longa carreira profissional em várias empresas brasileiras e estrangeiras.

    Militante da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, de Carlos Lamarca, Osvaldo “Portuga”, como Osvaldo Antônio dos Santos era conhecido, foi preso em 23 de janeiro de 1969 juntamente com Pedro Lobo de Oliveira, Ismael de Souza e Hermes Camargo em uma chácara nas proximidades de Itapecerica da Serra. No local, os quatro foram surpreendidos pela Polícia Militar de Itapecerica da Serra e levados ao Quartel do II Exército, no Ibirapuera.

    Da prisão no quartel, Osvaldo Antônio dos Santos foi transferido para o DEOPS, onde permaneceu até 13 de novembro de 1969 quando, junto com outros detentos, deu entrada no Carandiru onde ficou até 8 de dezembro de 1969. A última escala foi no Presídio Tiradentes, de onde saiu no dia 16 de junho de 1970.

    A liberdade, porém, não veio fácil. Em 11 de junho de 1970, enquanto as atenções do país estavam voltadas para a Copa do México, o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, era sequestrado no Rio de Janeiro, numa ação conjunta da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). As organizações guerrilheiras exigiram a libertação de 40 presos políticos, entre os quais estava o “Portuga”, que deveriam ser levados em voo fretado para a Argélia. Um manifesto contra a Ditadura foi divulgado em todas as redes de rádio e TV, furando a rigorosa censura imposta pelos militares.

     

    Banido do território nacional, Osvaldo Antônio dos Santos chegou à Argélia e lá residiu por três meses. Posteriormente dirigiu-se a Cuba onde esteve de 1970 a 1971. Morou em Moçambique e na Alemanha. Retornou a Brasil com a Anistia Política. Foi casado com Denise Oliveira Lucena com quem teve dois filhos: Valter Bruno de Oliveira Santos e Renan Oliveira dos Santos.

    Seu estado de saúde era delicado, pois teve câncer de próstata e apresentava um quadro de doença de Alzheimer. Faleceu nesta madrugada (10/04) vitimado pelo Covid-19. Estava internado no Hospital de Referência Emílio Ribas.

    Não acontecerá o velório devido à letalidade da doença. O corpo de Osvaldo Antônio dos Santos será cremado em Embu das Artes, no Crematório Memorial Parque Paulista.

     

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS, PRESENTE!

     

     

     

  • A CADA UM O SEU?

    A CADA UM O SEU?

    por Fabianna Freire Pepeu*

    Um dia depois de um grupo de estudantes do Colégio Santa Maria, do Recife, postar no Instagram uma foto de uma saudação nazista feita por eles mesmos em sala de aula — cena considerada gravíssima por milhares de pessoas ou “apenas uma brincadeira de jovens” por outro tanto —, jornais ingleses noticiaram um achado ocorrido na Polônia.

    Numa feirinha de antiguidades, um álbum de fotografia estava sendo comercializado. Dentro, imagens de paisagens diversas. Mas o material do álbum gerou incômodo e levantou suspeitas.

    Resumindo: de acordo com especialistas, o álbum foi confeccionado com pele humana de uma das milhares de vítimas do Holocausto e as investigações apontam para as vítimas de Buchenwald, no leste europeu — o primeiro campo de concentração instalado por Hitler.

    Buchenwald esteve em operação de 1937 até 1945, fim da Segunda Guerra. Ali estiveram confinados, além de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, entre outros grupos perseguidos pelo Nazismo.

    Sobre o portão de entrada desse inferno, havia a inscrição: ‘Jedem das seine’ (A cada um o seu). O lugar ficou conhecido pelo tipo de execuções ali praticadas, condições bestiais, experimentos científicos e depravação dos guardas nazistas.

    Na condução das maldades, que poucos conseguem imaginar sem sentir a pressão arterial cair, estava Ilse Koch, mulher de Karl-Otto Koch, comandante do campo. Ilse tinha interesse particular por prisioneiros homens adultos com tatuagem, pois utilizava a pele desses homens para fazer encadernações, toalhas de mesa, abajour e outros objetos.

    pele nazista
    O Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, na Polónia, incluiu na sua coleção um álbum de fotografias cuja capa foi fabricada com pele humana, que se acredita pertencer a um prisioneiro de um campo de concentração alemão.

    Diante desse fato tão atual, a descoberta desse objeto feito de pele com tatoo que mostra a infinita capacidade humana de planejar e realizar atrocidades, eu gostaria de perguntar a esse tanto de pessoas que viram na cena recente ocorrida em Pernambuco — em um dos muitos colégios particulares brasileiros de elite, movidos, como mostram as centenas de denúncias, por preconceito de classe, cor e muitos outros —, se elas continuam achando que tudo não passou de uma “brincadeirinha juvenil?”

    Quem sabe, porque algumas pessoas são mais lentas para ligar os pontos das coisas, elas perceberam, finalmente, a gravidade do Holocausto.

    Sim, estou sendo bem Pollyanna, mas não são essas pessoas mesmo que dizem que a gente deve olhar o lado positivo das situações? O álbum pode servir de despertador, quem sabe?!

    Mas, caso insistam nessa desumanidade frente às dores dos outros e na cegueira política, é fundamental que todas as outras pessoas da roda digam que não, não é possível — de modo algum —, normalizar e aceitar piadas a respeito das vítimas do Nazismo.

    E, afinal, juventude não é sinônimo de falta de empatia. Não são essas pessoas que também falam da redução da maioridade penal (sou contra!) ou essa redução só vale para os jovens da periferia?

    Também não é possível relativizar que pessoas sejam torturadas no Brasil ou aceitar o genocídio da juventude preta e pobre desse país.

    Não, não é possível aceitar que os homens continuem a matar mulheres no país.

    Não, não é possível aceitar que se abandone as regiões pobres do país, enviando recursos apenas para as áreas mais abastadas.

    Não, não é possível aceitar que se deixe a população de rua morrer à míngua, como foi feito com os confinados dos campos nazistas.

    É preciso dar um basta às bestas.

    É preciso dizer não hoje, ontem ou mesmo anteontem, pois é por conta desse relativismo e tolerância com posturas monstruosas que os monstros crescem e reproduzem.

    Pelo enquadramento das bestas humanas que não são apenas os membros desse governo de enlouquecidos e recalcados, além de fascistas, mas também as bestas que usam o elevador e que moram no apartamento ao lado ou no fim da rua.

    Sejamos duros com essa gente má, fascista e oportunista, sem (e isso vai ser difícil!), perder a ternura jamais.

    (*) Fabianna Freire Pepeu é jornalista

  • Bolsonaro quer transferir ossadas da Vala de Perus

    Bolsonaro quer transferir ossadas da Vala de Perus

    A próxima reunião de conciliação entre representantes do governo Bolsonaro, Prefeitura de São Paulo e a Unifesp deve ocorrer nesta segunda-feira, 9/12. A União precisa apresentar justificativas, planejamento e orçamento coerente com a proposta de transferência do material ósseo e demais materiais colhidos da Vala de Perus para a Polícia Civil do Distrito Federal.

    Representantes de Familiares de Mortos e Desaparecidos vêem com muita apreensão essa iniciativa. Primeiro porque vai interromper a pesquisa que vem sendo feita desde 2014; segundo por tornar muito mais difícil o acesso dos familiares aos supostos resultados. Os familiares também denunciam que 27 ossadas dos mortos na região do Rio Araguaia foram para Brasilia, e estão desaparecidas ou engavetadas.

     

    A morte que nunca acaba

    Durante a audiência no último dia 18/11, em que a União fez a proposta, representantes dos familiares puderam se manifestar e Amélia Teles, afirmou: “Esses ossos são de seres humanos.” E completou dizendo que as vítimas só foram tratadas com o devido respeito quando foram para a Unifesp. Além dos mortos no período militar, acredita-se que existam vítimas dos Esquadrões da Morte ou de grupos de extermínio que atuavam em São Paulo nas décadas de 1970/80.

     

    Entenda a manobra do representante do governo Bolsonaro

    A Advocacia Geral da União (AGU), na segunda feira, 18/11, durante a reunião de conciliação na Justiça Federal, em São Paulo, alegou redução de custos, mas sem apresentar qualquer planilha, plano operacional ou mesmo justificativa plausível para a transferência das Ossadas da Vala de Perus para Brasília. O juiz não aceitou o pedido e deu um prazo até dia 2 de dezembro para que a AGU e o procurador, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), apresentassem a documentação a tempo de ser avaliada pelas partes.  A prefeitura, a Unifesp e os representantes dos familiares dos mortos e desaparecidos vão avaliar a documentação e podem se pronunciar na audiência da próxima segunda-feira, 9/12.

    A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Polítícos (CEMDP) é mais uma instância de Estado, não de governo, instituída desde 1993, encarregada de investigar casos de mortes por motivação política. E parte do conjunto de mecanismos do processo conhecido como Justiça de Transição, referentes aos crimes da ditadura militar.

    Brasília é um caminho quase sem volta

    Ouvida pela revista Carta Capita, a procuradora Eugênia Gonzaga, ex-presidente da CEMDP, explicou que foi exonerada por Jair Bolsonaro em agosto. No seu lugar foi empossado um assessor da ministra Damares, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, no mesmo período em que o presidente fez declarações ofensivas que atingiram familiares de Felipe Santa Cruz, morto durante a ditatura. O governo Bolsonaro prima também por empregar agentes do estado envolvidos em mortes, como denunciamos em: https://jornalistaslivres.org/ex-esquadrao-da-morte-nomeado-governo-bolsonaro/

    A manobra da União também pretende comprometer o convênio com a Unifesp, pois a solicitação feita na audiência do dia 18 de novembro ocorreu 20 dias antes da data limite para a Universidade solicitar a verba para continuidade da pesquisa para 2020, na parte federal do convênio.

    Peritos trabalham em Ossadas na Vala em 2010. Imagem da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo

     

    O reconhecimento do CAAF/Unifesp

    O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp tem grupos multidisciplinares de pesquisa em Direitos Humanos, um deles é o Grupo de Trabalho de Perus, que foi criado em 2014 para analisar as 1.049 caixas com remanescentes humanos que foram encontrados na Vala de Perus. O trabalho pretende identificar 41 desaparecidos políticos cujas histórias indicam que foram colocados nesse local, nos anos 70, como modo de encobrir as graves violações de direitos humanos dos governos militares. A pesquisa se desenvolve mediante parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, hoje Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) e com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDH), da Prefeitura de São Paulo, por meio de um Acordo Técnico de Cooperação (ACT).

    O CAAF, além do reconhecimentos internacional, tem outros grupos de trabalho que desvendam crimes cometidos pelo Estado em períodos democráticos, como os Crimes de Maio de 2006.

    Mais sobre impunidade e violência do Estado em:

    Impunidade são 12 mil assassinatos por ano com quase ninguém na cadeia

     

    O Grupo Violência do Estado No Brasil  foi responsável pela pesquisa forense em parceria com Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford e financiado pela Newton Fund. O projeto teve seu foco voltado para a análise de 60 casos de pessoas assassinadas por arma de fogo na região da Baixada Santista. Deste modo, no projeto foram reunidos indícios pelos quais foi possível observar que as pessoas assassinadas nesses episódios foram mortas pela violência do Estado. Como resultado, ao final do projeto, foi desenvolvido o relatório “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos crimes de Maio de 2006”.

     

    A ATUAÇÃO DO CAAF HOJE

    O CONDEPE, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em parceria com o CAAF/Unifesp, está montando um grupo de trabalho para apurar as mortes dos nove jovens, ocorridas nesse domingo, 1/12, por ação violenta da PM no bairro Paraisópolis, como afirmou Dimite Sales, coordenador do CONDEPE, em seu twitter.

    Mais sobre as mortes de Paraisópolis:

    Família de um dos jovens mortos em Paraisópolis refuta versão de pisoteamento no massacre

     

    Os becos do massacre em Paraisópolis

     

    Abertura da Vala de Perus na década de 1990

    MAIS SOBRE A VALA DE PERUS:

    O Cemitério Dom Bosco, hoje com o nome de Colina dos Mártires, foi criado em 1971 pelo então prefeito Paulo Maluf, e foi utilizado para esconder os corpos de pessoas mortas, sepultadas como indigentes pelas forças de segurança do regime militar. A luta dos familiares na busca pelas pistas só começou a se concretizar na década de 1990, a partir da gestão de Luíza Erundina, por meio da CPI Perus – Desaparecidos Políticos, da Câmara de Vereadores de São Paulo, quando mais de mil ossadas foram transferidas para outros lugares e foi inaugurado o memorial da vítimas.

     

    Em ação civil pública ajuizada pelo MPF em 2010, a União foi condenada pela Justiça federal a examinar os cerca de 1.049 sacos com ossadas que apodreciam no cemitério do Araçá, e haviam sido retiradas da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco. Em 2014, com base nesta condenação elas foram transferidas para Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que em convênio com a prefeitura criou o CAAF. Mais de 800 caixas de ossos já foram analisadas e o processo pôde ser acompanhado por familiares de mortos e desaparecidos. No ano passado foram identificadas as ossadas de Dimas Antônio Cassemiro e Aluísio Palhano, mortos em 1971 pela ditadura militar.

    LEIA TAMBÉM

    BANCÁRIO ASSASSINADO NA DITADURA É IDENTIFICADO NA VALA DE PERUS

     

     

     

    A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, foi fundamental que este grupo de trabalho fosse criado.

    MAIS EM: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-i-cap4.html

    http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_1_A-formacao-do-grupo-de-antropologia-forense-para-identificacao-das-ossadas-da-vala-de-perus.pdf

    Outras informações podem ser obtida neste livro (arquivo pode ser baixado por este link). Ele foi realizado durante o governo Dilma Rousseff, via Comissão da Anistia. Podem ser encontrados diversos artigos sobre a vala e a luta para conquistar este direito à memória, verdade e justiça, que não pode ser usurpada pelo governo Bolsonaro.

     

  • Por que a chapa peronista de Alberto Fernandez e Cristina Kirschner pode vencer as eleições argentinas

    Por que a chapa peronista de Alberto Fernandez e Cristina Kirschner pode vencer as eleições argentinas

    Comício final de campanha em Mar Del Plata

    Com a economia em frangalhos, depois de quase quatro anos de governo neoliberal de Maurício Macri, a Argentina acumula perdas: só neste ano, o PIB recuou 2,5%. O desemprego já superou a marca dos 10,6%, e continua subindo. Os dados também mostram um aumento da sub-ocupação. No segundo trimestre de 2019, a taxa ficou em 13,1%, contra 11,8% nos três meses anteriores e 11,2% no mesmo período em 2018.O resultado pode ser visto nas ruas, com a multiplicação das pessoas vivendo ao relento e pedindo esmolas mesmo nos bairros mais ricos da cidade de Buenos Aires. O País voltou a mendigar empréstimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e toda a situação fez com que o peso argentino despencasse, agravando a situação de descontrole inflacionário. A inflação esperada para 12 meses é de 48,3%. Para completar a devastação, a paralisar de uma vez qualquer possibilidade de recuperação, o Banco Central argentino tem subido os juros em uma tentativa de evitar a fuga de dólares. Atualmente, a taxa de juros está perto de 85%, o risco-país duplicou, ficando acima de 2 mil pontos, e o peso sofreu forte desvalorização.

     

    Alternativa a tamanha desgraça, o peronismo de Cristina Kirschner e Alberto Fernandez, que disputa neste domingo (27) a eleição presidencial argentina, com larga possibilidade de vitória, acumula imenso capital político. Primeiro de tudo porque todos os indicadores econômicos dos dois governos de Cristina (entre 2008 e 2015) são melhores do que os de Mauricio Macri, como se verá a seguir. Depois, porque ela encurralou os militares e sacralizou a idéia dos direitos humanos, não permitindo o avanço dos fascistas nostálgicos da Ditadura e do extermínio de adversários políticos, como ocorreu no Brasil, com Bolsonaro. Por fim, porque conseguiu manter-se fiel à tradição operária do peronismo, organizado pela base, lançando pontes para os novos movimentos de juventude e de mulheres. Sempre, entretanto, mantendo vivo o traço popular. Como disse Cristina, ontem, no comício final em Mar Del Plata: “Nunca mais Neoliberalismo!”

     

    Mais emprego, menos dívida e menor inflação com Cristina

     

    O quadro a seguir foi elaborado pelo grupo editorial “Perfil” e mostra um comparativo entre o governo de Macri e o segundo mandato de Cristina, que não foi tão bom como o primeiro. Mesmo assim, as vantagens do peronismo na condução da economia parecem evidentes, sobre a política econômica neoliberal.

    O PIB com Cristina (entre 2012 e 2015) andou de lado. Mas, com Macri, caiu 4,3%. A taxa de pobreza, com Cristina contava-se em 29%. Com Macri, subiu 7 pontos percentuais. A inflação média em 4 anos foi de 30,5% com Cristina e de 42,6% com Macri. De cada 100 trabalhadores, 5,9 estavam desempregados sob o governo de Cristina. Agora são 10,1 desempregados. Com Cristina, 17 bilhões de dólares fugiram do país, em busca de praças mais seguras. Essa cifra subiu para 70 bi com Macri. A dívida pública cresceu de 43 bilhões de dólares para 110 bi com Macri. A conclusão do boletim “Perfil”: “A Argentina termina 2019 mais pobre, mais frágil, mais vulnerável do que em 2015 e do que em 2011”. 

     

    de infografia comparacion macri cristina 20190914

    Memória e verdade, contra os “Bolsonaros”

    Os 17 hectares ocupados atualmente pelo Espaço Memória e Direitos Humanos, em um dos endereços mais conhecidos de Buenos Aires, a avenida do Libertador, 8.151, ajudam a explicar graficamente como o peronismo encurralou os militares e sacralizou a idéia dos direitos humanos.

    No país vizinho, a Ditadura Militar instituída por um golpe de Estado desfechado em 1976 é lembrada todos os dias pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu ao matar, torturar, fazer desaparecer, sequestrar e exterminar opositores. Calcula-se que pelo menos 30.000 pessoas tenham sido assassinadas durante os sete anos que durou o regime.

    Escola de Mecânica da Armada, um dos cerca de 500 centros clandestinos de extermínio de opositores do Regime Civil-Militar: Nunca esquecer!

    Jornalistas Livres estiveram, na terça-feira (22), no complexo de prédios em que funciona o Espaço Memória, uma construção castrense que abrigou a ESMA (Escola de Mecânica da Armada), destinada à formação de suboficiais, e que, entre 1976 e 1983, durante a Ditadura Militar, foi transformada no principal entre os cerca de 500 centros clandestinos de prisão, tortura e extermínio espalhados pelo país.

    Ali, monitores encaminham adolescentes (maiores de 12 anos) por entre construções crivadas de memórias de dor, sofrimento e perdas. No percurso que fizemos, acompanhávamos estudantes da escola Santa Lucia, um estabelecimento de ensino católico, que viera em excursão da cidade vizinha de Florencio Varela (a 32 km de Buenos Aires).

    Meninos ainda imberbes e garotas em uniforme escolar com meias três quartos ouviam atentamente, em silêncio total, a voz da monitora contando-lhes sobre o horror que aquelas paredes encerraram na noite dos direitos humanos. Alguns choraram diante da descrição do drama vivido pelas mulheres grávidas que eram sequestradas e despersonalizadas, mantidas como verdadeiras incubadoras até a hora do parto.

    Encapuzadas 24 horas por dia, as grávidas opositoras do regime dos generais eram mantidas às cegas. Também obrigavam-nas à imobilidade as algemas que lhes prendiam os pés e, por fim, eram proibidas de falar. Em vez de nomes, números identificavam-nas. Na hora de dar à luz, essas mulheres eram assistidas por médicos da Marinha. Depois das dores do parto, elas nunca mais veriam seus filhos, porque estes lhes eram tomados e dados como presentes a famílias de militares. Em seguida, anestesiadas, várias dessas mães foram jogadas em aviões, que as descarregavam no Rio da Prata, para morrerem afogadas, nos “Vôos da Morte”.

    Foram Nestor e Cristina Kirschner os que enfrentaram a poderosa Marinha argentina, tomando-lhes o complexo escolar-matadouro e entregando-o para que servisse como homenagem permanente aos mortos e desaparecidos da Ditadura. Foi também por iniciativa deles, junto aos movimentos de familiares de vítimas e sobreviventes do regime militar, que os responsáveis pelas atrocidades cometidas acabaram atrás das grades, diferentemente do que ocorreu no Brasil, em que nenhum torturador foi punido por seus crimes.

    Milhares de adolescentes assistiram e seguem assistindo às aulas, atividade que nem mesmo o governo ultraneoliberal de Maurício Macri, aliado de Jair Bolsonaro, conseguiu desorganizar.

    As estações do metrô de Buenos Aires homenageiam os mortos da ditadura, com fotos e obras de arte nomeando-os e retratando-os –tudo o que não pode ocorrer é o esquecimento, porque –isso as Mães da Praça de Maio sempre ensinaram– a Memória é o caminho para impedir que novos crimes como aqueles cometidos pela Ditadura se repitam.

    E há o comovente Parque da Memória, também destinado a homenagear as vítimas do terrorismo de Estado –uma área do tamanho de 14 campos de futebol que margeia o Rio da Prata, em que se erigiu um paredão onde estão inscritos os 30 mil nomes dos desaparecidos e assassinados pelo aparelho repressivo ditatorial (dez vez mais nomes do que os inscritos no memorial em homenagem aos mortos no World Trade Center, em Nova York).

    Parque da Memória: menino flutua sobre o esquecimento

    Lá também se encontram obras de arte pungentes, alusivas ao pesadelo nacional representado pelo governo militar, como é o caso da que representa o menino Pablo Míguez, um dos cerca de 500 meninos e meninas sequestrados durante a Ditadura. Pablo foi preso na Escola de Mecânica da Armada, assassinado aos 14 anos de idade e arremessado ao rio da Prata, em 1977. Na escultura de Claudia Fontes, feita em aço polido, de modo a refletir as cores das águas do rio, Pablo flutua sobre o esquecimento.

    Um Bolsonaro homenageando torturadores até seria possível na Argentina, mas ele nunca seria eleito presidente. É por isso que o melhor amigo de Bolsonaro na Argentina, Maurício Macri, não ousa mexer com os cadáveres da Ditadura.

    Pelo papel que desempenharam na Democratização do País, ao não permitir que o Terrorismo de Estado fosse esquecido, Nestor e Cristina Kirschner têm a gratidão completa das vítimas. No comício final da chapa peronista em La Plata, capital da provincia de Buenos Aires, uma das que mais sofreram em perdas humanas durante a Ditadura, Hebe Pastor de Bonafini, fundadora da associação Mães da Praça de Maio, fez questão de comparecer e levar seu apoio à chapa peronista. Aos 90 anos, foi beijada e reverenciada pelos militantes.

     

    30.000 nomes gravados no muro. Dez vezes mais do que no Memorial aos Mortos no World Trade Center, em Nova York

    Sindicatos no poder e organização de base

    O peronismo de Cristina Kirschner continua fincado nas poderosas organizações sindicais argentinas. Um passeio por entre a massa presente nos comícios da “Frente de Todos” basta para que se percebam diferenças sensíveis com os recentes comícios eleitorais brasileiros, encabeçados pelo PT.

    Segundo o vereador Dario D’Aquino, do Partido Justicialista (Unidad Cidadã), que também é secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores Municipais da cidade de Florêncio Varela, o povo argentino perdeu ”todos os direitos” durante o governo de Macri. “O peronismo voltará porque o povo está sendo levado novamente a lutar contra o neoliberalismo. O modelo político terá de incluir o povo e para isso não há nenhum instrumento melhor do que o peronismo.”

    “Sim, vamos voltar! Voltaremos, voltaremos. Vamos voltar!” é uma das músicas cantadas a plenos pulmões pelos operários nos comícios, assim como a Marcha Peronista, cantada pela primeira vez na Casa Rosada em 17 de outubro de 1948:

    Los muchachos peronistas,

    todos unidos triunfaremos,
    y como siempre daremos
    un grito de corazón:
    «¡Viva Perón, viva Perón!».

    Por ese gran argentino
    que se supo conquistar
    a la gran masa del pueblo,
    combatiendo al capital.

    ¡Perón, Perón, qué grande sos!

    ¡Mi general, cuánto valés!

    Perón, Perón, gran conductor,

    sos el primer trabajador.

    Por los principios sociales
    que Perón ha establecido,
    el pueblo entero está unido
    y grita de corazón:
    ¡Viva Perón! ¡Viva Perón!

     

     

    https://youtu.be/VPSNiSfjSnc

     

     

     

    Faixas e bandeiras são feitas a mão, em vez de fabricadas por empresas profissionais de publicidade. Carregam a humanidade dos traços imperfeitos, mas comprometidos dos militantes de base. Inexistem aqueles indefectíveis “coletes” das centrais sindicais, que se banalizaram nas manifestações brasileiras.

    Não há praticamente venda de bebidas alcoólicas. Apenas água e refrigerante, durante o ato. Não há shows ou sorteios para atrair a militância. As bandas e fanfarras ligadas aos sindicatos só aparecem ao fim dos eventos, com seus tambores indefectivelmente decorados com as cores argentinas e as efígies de Perón e Evita (às vezes, também aparecem Cristina e Nestor Kirschner).

    Gabriel, militante peronista desde criança, explica que os sindicatos argentinos são as principais organizações sociais referenciadas na tradição de Perón, mas que há muito mais, como os círculos de discussão e debates, os núcleos de bairro, mediados por relações de solidariedade e camaradagem. São reuniões semanais?, perguntamos. E ele responde: “É todo o tempo.”

    Mas o caráter marcial da Marcha Peronista, claramente, não combinaria com a onda feminista que está varrendo a Argentina, e que reuniu mais de 500.000 pessoas entre os dias 12 e 14 em La Plata, no 34º Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans, Travestis, Bissexuais e Não-Bináries. Coube a Cristina Kirschner começar a combinar e harmonizar símbolos que teriam tudo para ser contraditórios.

    E ela o fez. No Instituto Pátria, criado por Cristina assim que deixou a Casa Rosada, e que poderia ser apenas uma ONG análoga ao Instituto Lula ou ao Instituto FHC, promovem-se discussões visando à atualização do peronismo, à formação de militantes jovens e às elaborações teóricas feministas, entre tantos temas. Só assim para combinar a radicalidade da juventude com a força da tradição de décadas.
    “É por isso que se vêem tantos jovens gritando a letra da Marcha Peronista, um hino septuagenário cantado como se fosse uma letra de rock”, explica-nos a jovem peronista da Universidade Nacional de La Plata.