Jornalistas Livres

Categoria: Voz das Periferias

  • Glória a um passo da solução. Ou não

    Glória a um passo da solução. Ou não

    As mais de 15 mil pessoas de 2.350 famílias que moram no bairro Élisson Prieto, zona sul de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, têm vivido numa montanha russa nos últimos meses. Enquanto o assentamento, mais conhecido por Glória, completa cinco anos com praticamente todas as casas de alvenaria, as ruas definidas, o espaço para uma praça central separado, o Ministério Público Federal pressiona cada vez mais pela desocupação. Nessa quinta, diante de uma nova ameaça de despejo iminente, para o qual a Polícia Militar de Minas Gerais estima um custo de R$ 7.5 milhões além da morte de 40 pessoas (10 policiais e 30 moradores https://wp.me/p7pbzg-5Uk), mais de 2.000 assentados foram cobrar diretamente de Valder Steffen Jr, novo reitor da Universidade Federal de Uberlândia, dona da área, um posicionamento claro.

    Valder Steffen Jr, reitor da UFU, e Minéia do Glória

    Depois do MP bloquear no ano passado os bens dos dois últimos reitores da UFU em R$ 7.5 milhões exigindo o pagamento dos custos para a reintegração de posse, em dezembro o dinheiro é liberado pelo Governo Federal (https://www.youtube.com/watch?v=CE2CBOXjxUs). Em janeiro, o MP intima a reitoria, que havia acabado de tomar posse, a desenhar um plano de desocupação em 10 dias. Vencido o prazo, os procuradores federais da defensoria da própria UFU informam o juiz do caso, no último dia 13 de fevereiro, que a universidade não possui a expertise para tanto e “nesse caso não há outro plano senão contar com a imprescindível atuação do Poder Judiciário e com o necessário auxílio das Polícias Militar e Federal, além do acompanhamento de outros atores sociais como o Corpo de Bombeiros, Ministério Público, Conselho Tutelar e Secretarias Municipais de Saúde e Ação Social […] durante o desenvolvimento dos trabalhos de desocupação”. No mesmo despacho, requerem dos réus (os assentados) “que exponham, de sua parte, qual o plano para por fim à desobediência e cumprir a ordem de desocupação, sem darem ensejo ao uso da força e exporem a risco inocentes”.

    O saguão da reitoria ficou pequeno para os manifestantes. No meio da sala, uma maquete do futuro Campus Glória, da UFU. O triângulo branco que aparece vazio é onde moram 2.350 famílias

    A escalada das ameaças é evidente. Acordos alinhavados nos últimos anos com os governos municipal, estadual e federal, com oferecimento de outras áreas em troca do terreno, definido pela prefeitura antes mesmo da disputa como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), nunca utilizado pela UFU e separado por uma rodovia do restante do Campus Glória, são simplesmente ignorados. Nenhum argumento de ordem humanitária, social ou mesmo financeira é levado em conta. Afinal, além das dezenas de mortos e centenas de feridos previstos pela PM, como acomodar da noite pro dia 3% da população do segundo município mais populoso de Minas? Ainda mais se tratando de milhares de crianças, cerca de 2.000 idosos e 600 pessoas com deficiência. E que sentido tem deitar por terra mais de 2.300 construções num valor estimado de pelo menos R$ 160 milhões?

    Sem medo, mas com justo receio sobre como será o futuro numa ocupação que luta há cinco anos pra ser regularizada

    Diante de tudo isso, os moradores marcharam bastante tensos para a reitoria. Nas conversas entreouvidas, o sentimento era muito semelhante: “não vou sair da minha casa, nem que o trator passe por cima”, “só saio morta”, “construí lá meu sonho e minha vida”. De tempos em tempos, um grito de guerra: “Aqui está, o povo sem medo, sem medo de lutar”, “Eeee, o Glória voltou, o Glória voltou”, “Lutar, resistir e depois morar aqui”. As lideranças andam entre os moradores. Minéia do Glória, Marcos do MTST, Frei Rodrigo da Comissão Pastoral da Terra e Dr. Igino Marcos, advogado, tentam manter o ânimo em alta. Sobem e descem os três andares do prédio. Buscam representantes para conversar.

    O reitor recebe convidados numa sala envidraçada do terceiro andar. Depois do pedido, concorda em descer e conversar diretamente com os assentados, algo inédito. E mais, traz boas notícias. Segundo ele, o governo deu “um presente de natal” ao promulgar em 23 de dezembro passado a Medida Provisória 759 (http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127879), que facilita a regularização de ocupações urbanas consolidadas, como é o caso do Glória. Ele pediu um “voto de confiança” na nova gestão da universidade e afirmou que levará na próxima reunião do Conselho Universitário, já em março, uma proposta para encerrar o processo atual de despejo e iniciar um novo com vistas a uma “solução pacífica”. Resta agora esperar pra ver se, diferente de outras ocasiões, não se trata de mais uma “conversinha” enquanto os procuradores da UFU tomam decisões contrárias ao assumido pelo reitor e se o MP vai aceitar as resoluções do Consun.

    Vista aérea da ocupação do Glória. Mais de 15 mil pessoas morando num bairro organizado e consolidado maior que muita cidade no Brasil

     

     

     

     

     

  • De braços abertos, Lancetti!

    De braços abertos, Lancetti!

    Outro dia voltei a andar pelas ruas da Luz. Sozinho, hora do almoço. O sol gritava e lá no fundo, aquelas nuvens temerosas de tempestade. Nossa, o cheiro, os barulhos, os gritos, os latidos. Tudo continuava igual. E algo me deixava tranquilo. Aquele lugar, quem diria, me acalmou o medo da chuva. Passei no bar do seu Fernando, que ainda cuidava do nosso vaso-horta. Olhei para aqueles pinduricalhos que enchiam a vista. Tudo era familiar. Parei em frente ao paredão que criamos nos muros da Michelin. As fotos do Zeca, os microrroteiros da Laura, os lambes dos Paulestinos e do Coletivo Transverso, a frase do Julinho. Tudo lá.

    Durante 2 anos, a casadalapa, coletivo que faço parte, participou ativamente do Programa De Braços Abertos, da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Atuamos em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, num projeto único, um projeto piloto de convivência e vizinhança na região da Cracolândia, bairro da Luz. A Casa Rodante, nossa casinha.

    Eu não participava do dia-a-dia do projeto, mas sempre estava lá. Cinema, teatro de sombras, sessão de fotos, Sarau da Pedra, mutirão, Blocolândia, brincadeiras, grafites, música, pinturas, vasos e hortas. Vivi tudo isso. E o pouco que vivi, mudou minha vida. Mudou a forma de ver o mundo. Mudou o que quero verdadeiramente da vida. Tudo mudou.

    As palavras são redução de danos. Viver do melhor jeito que se pode, com dignidade, trabalho, Cidadania. Não dar as costas para o monstro. Enfrentá-lo, contorná-lo, controlá-lo. Viver junto com o monstro. E vencê-lo em cada batalha diária, em cada hora silenciosa, em cada por do sol. Conheci muitas histórias de enciclopédia. Vitórias, derrotas, memórias, conquistas. Conheci Badarós, a quem considero um parça de verdade. Um artista e ser humano incomum, que relaçou sua identidade e sua história. Entendi o que pode representar um convite familiar para um almoço esquecido de década. Um reencontro com a lembrança.

    Hoje, chorei. Não era meu amigo, não jantei seus perus de natal, não participava de suas festas. Apenas o respeitava. Cada vez mais. Cada dia na Casa Rodante me fazia acreditar que aquele senhor forte, brabo, era um visionário. Não um visionário da ciência ou da tecnologia, um visionário de cidade. Um visionário da convivência humana. Conheci Lancetti em encontros de avaliação do projeto. Perguntei muito, ouvi mais, mas sempre foi pouco. Um certo mau humor típico dos visionários me fez ser econômico nos nossos encontros. Como somos bobocas frente à um universo que se abre em portais temporais, logo na cadeira ao lado. Mas a gente sempre acha que teremos mais uma chance. Por isso continuo chorando.

    Lancetti era um personagem de batalhas heroicas de quadrinhos perdidos em uma pequena loja das periferias de Buenos Aires. Como Lancelot arrancando espadas de pedras ou como quixote a esmurrar moinhos de vento. Esse era o cara, que conhecemos em alguns momentos do nosso projeto Casa Rodante.

    Lancetti criou a pedra fundamental do De Braços Abertos. Pedra sobre pedra, a convivência. E essa palavra nos atravessou todo santo dia que estávamos nas esquinas da Luz. E me atravessa todos os dias desde então, seja acompanhando a linha de frente em alguma ocupação de moradia, seja mirando minha câmera nas atrocidades policiais, seja colando imagens vizinhas nas paredes silenciosas da cidade.

    Choro, porque talvez estejamos vivendo dois crepúsculos de dignidade e humanidade. Lancetti fechou seus olhos definitivamente hoje à tarde. E o programa De Braços Abertos sofre a indiferença e criminalização da nova velha Prefeitura. Choro, porra. Porque eu vislumbrei uma bela cidade, um futuro do presente, uma bela vizinhança, sem preconceitos, diversa e amorosa. Uma cidade de braços abertos.

  • Moradores da Comunidade do Horto sofrem reintegração de posse brutal

    Moradores da Comunidade do Horto sofrem reintegração de posse brutal

    Na manhã desta segunda, 7.11.2016, a Polícia Militar realizou de forma truculenta a reintegração de posse de 50 famílias, que construíram suas casas décadas atrás, na região do Horto, próximo ao Jardim Botânico, localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro.

    Ás 6h30 da manhã, os policiais chegaram ao local denominado por seus moradores de “Comunidade do Horto”, com o mandato de reintegração. Porém, foram impedidos após baterem de frente com uma barricada criada pelos habitantes e um cordão de isolamento humano, que incluía crianças e idosos.

    Por volta do meio-dia, os policiais presentes passaram a usar bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha, com o intuito de inibir a resistência dos moradores. Dois idosos ficaram feridos, uma senhora foi atingida por uma das bombas de gás lacrimogêneo ateadas, um senhor levou um tiro de bala de borracha na cabeça e alguns jovens foram mobilizados no chão.

    Localizado em uma área ativa do Jardim Botânico, que inclusive manteve-se fechado nesta segunda, o ocorrido fez com que o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro afirmasse em divulgação que: “Trata-se do cumprimento de decisão judicial proferida em processo ajuizado pela União na década de 80, cujo trânsito em julgado ocorreu há quase dois anos, cabendo ao Instituto atuar conforme o que foi determinado pelo Poder Judiciário no sentido de acompanhar a diligência e zelar pela posse após a reintegração”.

    Em 2014 outra reintegração de posse foi realizada e na época três pessoas saíram feridas.

    Em gravação, policial deixa bomba de gás lacrimogêneo ao lado de moradores que se encontravam sentados, demonstrando resistência ao movimento. Em outro instante, mais um agente é abusivo ao mirar uma arma de bala de borracha para o cinegrafista, que se manteve firme diante tamanha repressão.

  • Matheus Freitas presente!

    Matheus Freitas presente!

    Por Jeniffer Mendonça e fotos de Sato do Brasil

    Jovens, a maioria vestidos com camisetas brancas, seguravam, cada um, uma letra que formava a frase “Deus, olhai meu povo da periferia” em frente à escola estadual Presidente Tancredo de Almeida Neves, no Jardim Novo Horizonte – Grajaú, extremo sul de São Paulo. A alusão à música do cantor Ndee Naldinho acompanhava cartazes com dizeres “a Polícia não protege, só sabe nos reprimir” e mais de 40 retratos de rapazes, a maioria negros, colados no portão da escola. Na última segunda-feira (10/10), cerca de 100 pessoas, dentre familiares e amigos, fizeram uma homenagem a Matheus Freitas, de 24 anos, morto por um policial militar há uma semana.

    Foto: Sato do Brasil/Jornalistas Livres
    Foto: Sato do Brasil/Jornalistas Livres

    Com velas nas mãos, adolescentes, crianças e jovens denunciavam o genocídio da população negra periférica. “A gente quer mostrar que a gente quer paz. A gente não quer que isso aconteça mais porque já acontece há muito tempo. Tem mãe perdendo filho todo o dia nas comunidades”, declarou Eduardo Cardoso, de 28 anos, amigo de Matheus.

    Os presentes caminharam pelas ruas em silêncio e fizeram orações pelas vítimas da violência policial.

    A homenagem foi a segunda tentativa de tornar públicos os casos de mortes cometidas por policiais militares, já que no dia 4 de outubro os moradores ocuparam as ruas para protestar e foram reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.

    “Todo mundo está lutando para não passar batido porque isso [as mortes] não pode ser considerado normal”, se emocionou Thayná de Jesus, estudante de 19 anos que carregava rosas brancas.

    Assista ao vídeo realizado pelo Periferia Em Movimento:

     

    Matheus Freitas estudava Economia na Universidade Nove de Julho e era faixa preta jiu-jitsu. Ele foi baleado por um policial na noite de 1 de outubro na quadra da E.E. Pres. Tancredo de Almeida Neves e faleceu dois dias depois no Hospital Geral do Grajaú.
    De acordo com nota da Secretaria de Segurança Pública à Ponte Jornalismo, o PM segue “afastado” para investigação do caso.

  • Em meio a guerra às drogas, Pedreira pede paz

    Em meio a guerra às drogas, Pedreira pede paz

    No último domingo de julho (30), a comunidade Pedreira Prado Lopes (PPL) – região noroeste de Belo Horizonte – foi às ruas para pedir o fim da violência na comunidade que tem enfrentado dias difíceis e um clima de muita tensão. Foi preciso enfrentar o medo e intervir de alguma forma. O clima de guerra foi substituído por um clamor de paz que tinha a voz de moradoras e moradores: “Há anos, a Pedreira Prado Lopes não via uma guerra assim. Um dia, a gente fez uma assembleia e decidimos que isso ia acabar. Agora, depois de muito tempo, a coisa voltou. É por isso que nós vamos fazer essa caminhada, pra pedir um pouco de paz”, disse Valéria Borges, moradora da comunidade há mais de 40 anos.

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    Foto: Isis Medeiros

    A guerra voltou e a polícia agiu com total despreparo, de forma truculenta e sem se importar com os demais moradores. Nessa guerra só morreu gente da comunidade, parte do povo foi expulso de suas próprias casas e não se fala sobre isso em nenhum outro lugar. “Mas por que os grandes veículos de imprensa não contam isso para o restante da cidade?”, alguns moradores questionam o fato.

    No meio da semana, o povo fez uma reunião para preparar essa caminhada. Valéria conta os detalhes: “Vamos todo mundo de branco. Pode vir criança, idoso, gente de todas as idades. Vamos juntar os movimentos, as associações, as igrejas e todo mundo que quiser ajudar. As crianças vão na frente, bem devagarinho, para não deixar acelerar o passo.”

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    Foto: Isis Medeiros

    E tudo correu como previsto. Logo cedo moradores da Pedreira, membros de comunidades religiosas e integrantes de movimentos sociais populares como o Levante Popular da Juventude, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e a Associação Pedreira Unida, caminharam juntos pelas ruas e vielas com faixas e cartazes – que foram confeccionados pelos próprios moradores – enquanto entoavam cânticos e palavras de ordem reivindicando o direito à uma vida mais tranquila e o fim do uso excessivo da força policial. Em certos momentos foram realizadas preces em memória daqueles que foram mortos desde o início do conflito.

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    Foto: Gabriel Bicho

     

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    Foto: Gabriel Bicho

    Durante o percurso muitas crianças iam se somando à caminhada, carregando faixas enquanto gritavam juntas: “Queremos paz! Queremos paz! A PPL quer somente paz!”. Alguns moradores acenavam das janelas de suas casas, os carros passavam buzinando em apoio à ação e o grupo seguiu com o trajeto. Por onde passavam era possível ouvir um canto que marcou toda a caminhada: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que a Pedreira é meu lugar”.

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    Foto: Gabriel Bicho
  • Tribunal de Contas questiona salários de R$ 12.480 a seguranças de Fábricas de Cultura da Poiesis, dirigida por Clóvis Carvalho, ex ministro de FHC

    Tribunal de Contas questiona salários de R$ 12.480 a seguranças de Fábricas de Cultura da Poiesis, dirigida por Clóvis Carvalho, ex ministro de FHC

    A VOZ DAS PERIFERIAS – UMA SÉRIE DOS JORNALISTAS LIVRES SOBRE AS FÁBRICAS DE CULTURA DE SÃO PAULO

    Por Flávia Martinelli / Jornalistas Livres
    Colaboraram: Adolfo Várzea e Sato do Brasil / Jornalistas Livres

    Artes: Joana Brasileiro  / Jornalistas Livres
    Vídeo: Gustavo Aranda / Jornalistas Livres

    Tudo começou com uma folha de sulfite pregada na porta da biblioteca. Em vez de fechar às 20hs, o local passaria a ser trancado às 17hs. Era corte de gastos e ponto final. A Poiesis, Organização Social (OS) que gerencia cinco Fábricas de Cultura nas periferias de São Paulo – e é dirigida Clóvis de Barros Carvalho, um dos fundadores do PSDB –, não quis conversa.

    De lá para cá, os aprendizes ocuparam a Fábrica do Capão Redondo por 51 dias, houve ocupações na unidade da Brasilândia e no Museu Casa das Rosas, também administradas pela Poiesis. Em vez do diálogo, a OS valeu-se do braço armado do Estado para fazer reintegrações de posse sem mandados de segurança. Mais de 30 aprendizes, entre crianças e adolescentes, foram parar na delegacia, 11 jovens dormiram na prisão e vão responder por dano e corrupção de menores. Além disso, 15 educadores foram demitidos e os que ainda têm emprego decretaram greve. Em comum a todos esses conflitos há uma mesma reivindicação: a falta de transparência da Poiesis sobre o uso do dinheiro público que recebe da Secretaria da Cultura de São Paulo, do governo de Geraldo Alckmin.

    CONTRATO IRREGULAR, INCOMPLETO E SEM DETALHES

    A indignação geral faz sentido. A licitação e o principal contrato de gestão das Fábricas de Cultura administradas pela OS foram considerados irregulares pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). O processo já foi julgado em primeira instância e a decisão pode ser vista aqui. No vídeo que acompanha essa reportagem, é possível assistir trechos da sessão do TCE.

    Assinado com dispensa de licitação em dezembro de 2011, pouco antes da inauguração das Fábricas, o acordo entre a Poiesis e a Secretaria de Cultura envolve repasses de R$ 66.277.505,00 destinados ao gerenciamento de apenas duas unidades, a do Jardim São Luís e a da Vila Nova Cachoeirinha, durante quatro anos. Trata-se de um contrato inicial que depois foi ampliado para atender outras três Fábricas (Capão Redondo, Jaçanã e Brasilândia) e chegou ao montante de mais de R$ 145 milhões.

    Os Jornalistas Livres tiveram acesso ao processo que corre no TCE. Num calhamaço de mais de 800 páginas estão documentados três anos de idas e vindas de pareceres de órgãos internos e externos que culminaram nos votos pela irregularidade. A Secretaria da Cultura entrou com recurso para revisão da decisão. A Poiesis também reenviou dados. Novas análises foram feitas e o último parecer do processo, de fevereiro deste ano, foi assinado pela Secretaria-Diretoria Geral (SDG), um órgão técnico do TCE. O documento reafirma as falhas e opina pela não aceitação do recurso. O processo aguarda julgamento.

    Questiona-se o orçamento do primeiro repasse de R$ 16.276.274,18 destinados às duas Fábricas. Os custos apresentados pela Poiesis referem-se aos primeiros 14 ou 15 meses de gestão a partir de 2012 – com índices inflacionários e reajustes estimados. Foram R$ 7.157.182, 29 para a Fábrica do Jardim São Luís e R$ 6.791,662,74 para a de Vila Nova Cachoeirinha.

    Muitos pontos chamaram a atenção dos técnicos do TCE. A começar pelos valores destinados à segurança e limpeza. O contrato da Poiesis (veja reprodução abaixo) declara que na Fábrica do Jardim São Luís seriam necessários R$ 1.032.382,92 para o pagamento de equipes de vigilantes em cinco postos: “2 de 12 em 12 horas e 3 de 24 horas”. São R$ 62.400,00 por mês que foram multiplicados pelos 15 meses de operação e incluem a correção monetária prevista para o período.

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    Planilha da Poiesis apresentada ao Tribunal de Contas do Estado

     

    A Secretaria-Diretoria Geral (SDG) posiciona-se: “Ora, o máximo que depreende da planilha é que o gasto médio mensal é de R$ 12.480,00 por posto. O posto tem 1 vigia? São cinco vigias no total? Mas como foi a formação deste valor?”. As informações divulgadas pela Poiesis não esclarecem. “Enfim, não se sabe ao certo quantos vigias e se cada um corresponde a gasto médio mensal de R$ 12.480,00, o que se mostraria elevado, ainda que em turno noturno”, cita o documento (reprodução do parecer abaixo).

    De fato, está caro. O contrato de prestação de serviços terceirizados de um vigilante, em geral, custa cerca de R$ 5.500,00 mensais com todos os encargos, salário e benefícios. É o que estimou uma funcionária da Alça Fort Segurança, a empresa que a Poiesis paga para fazer vigilância na própria Fábrica de Cultura do Jardim São Luís. Para contratar um segurança, o valor desembolsado para a terceirizada hoje está por volta R$ 4.000,00, no máximo R$ 4.500,00. Uma funcionária de limpeza, por sua vez, custa R$ 3.700,00 por mês. Sempre com o pagamento do funcionário, impostos e benefícios incluídos na conta.

    Mas, no orçamento da Poiesis para a limpeza, que discriminou apenas “equipe de 5 pessoas”, depreende-se que cada funcionário custe uma média de R$ 6.240,00 mensais. A afirmação e o cálculo estão no relatório enviado ao TCE. “Este é mesmo o valor correspondente aos salários dos funcionários da limpeza?”, questiona o parecer (abaixo).

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    A GRAZI PODERIA SER A GAROTA-PROPAGANDA

    Dúvidas do órgão técnico do TCE também pairam sobre os valores envolvidos no orçamento de propaganda e divulgação. Para a Fábrica do Jardim São Luís, por exemplo, foram destinados R$ 611.081,63. O que, segundo a planilha, correspondem a R$ 10.400,00 a serem gastos com 55 peças ao longo de 15 meses. A Poiesis definiu o custo como “estimativa por peça de divulgação da Fábrica de Cultura e sua programação cultural (inclusive e principalmente na comunidade e seu entorno)”. O relatório do TCE pergunta: “São cartazes, são panfletos, são propagandas em rádio? Qual o quantitativo? Qual o pessoal alocado?”

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    Nada consta nas planilhas. Mas, só a título de curiosidade, na rádio de maior audiência de São Paulo, a Band FM, o preço “cheio” de cada inserção publicitária de 30 segundos, é de R$ 1.350,00. Projetos do governo, no entanto, têm descontos.

    Se a intenção for divulgar eventos em veículo impresso, por R$ 950,00 ao mês é possível fechar um pacote semestral de anúncios de página inteira no jornal “Leitura de Bairro”, tablóide mensal que circula há 10 anos na periferia da zona Sul, onde fica a Fábrica de Cultura do Jardim São Luís.

    O relatório do TCE, no entanto, foi além. Afinal, essa mesma seara de serviços, diz o parecer, contemplou o gasto de R$ 61.108,16 da Poiesis com gráfica e editoração. “Quantos materiais e a que custo?”, menciona o relatório técnico.

    Para a Fábrica de Vila Nova Cachoeirinha, a Poiesis apresentou custos de R$ 600.399,99 com propaganda e divulgação e R$ 60.040,00 com gráfica e editoração. Somando-se todos esses orçamentos às duas Fábricas, foram R$ 1.332.989,78 para chamar a atenção da periferia. Daria para pagar o cachê da atriz e modelo Grazi Massafera, uma das mais caras garotas-propaganda do mercado, que em junho fechou contrato de R$ 1 milhão para fazer uma campanha de cosméticos por oito meses.

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    CENÁRIO COM CUBOS DE MADEIRA E FIGURINOS COM CAMISETAS POR R$ 167 MIL?

    Dúvidas seguem quando o assunto é atividade cultural em si. O relatório cita o Projeto Espetáculo, evento que no orçamento da Poiesis foi programado para ser apresentado no segundo semestre de 2012. O valor da produção: R$ 167.894,51.

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    “Foi uma produção simplória. Custou, no máximo, R$ 10 mil”, diz educadora

    Uma educadora da Fábrica de Vila Nova Cachoeirinha que trabalhou na época lembra o que ocorreu. “O Projeto Espetáculo não aconteceu! Ele foi formulado para ser resultado de conclusão de ateliês feitos pelos aprendizes ao longo de 12 meses. Mas só nos últimos quatro meses de 2012 que os educadores foram convocados pelos gerentes para fazer um piloto desse programa, que se chamou Ensaio Geral.”

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    Peça na Fábrica do Jardim São Luís foi produzida nos últimos quatro meses de 2012

    Ela conta que o cenário da peça era composto por 10 cubos de madeira no chão. Quanto ao figurino, resumia-se a camisetas e calças de moletom para os cerca de 40 aprendizes do elenco. “Olha, foi uma produção simplória. Custou, no máximo, R$ 10 mil.” Quase tudo foi produzido por educadores que já trabalhavam nos ateliês e cuidaram da cenografia, direção e dramaturgia. “A Poiesis nunca abriu para nós o valor dessa verba para produção.”
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    Na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís foi parecido. Foram produzidas duas peças, também experimentais e pertencentes ao programa Ensaio Geral – sequer citado no processo do TCE. “Eu era educadora e vi as peças. Se gastaram R$ 30 mil com tudo, foi muito” diz Ana Sharp, recém-demitida, atriz, bailarina com mais de 10 anos de carreira. Nada consta nas explicações da Poiesis ou da Secretaria da Cultura ao TCE.

    QUANTIDADE DE LANCHES “PARECE DESPROPORCIONAL”

    O documento enviado ao Tribunal também questionou o orçamento dos lanches servidos na Fábrica do Jardim São Luís. Para oito meses de fornecimento, a Poiesis apresentou custo de R$ 160.425,35. Cada lanche, de acordo com a planilha, sai por R$ 5,20 e, num cálculo simples apresentado no próprio relatório, isso representa o consumo de 3.645 lanches por mês. “Não se sabe quantos aprendizes são, quantos lanches por dia. Parece, inclusive, desproporcional”, aponta o parecer (abaixo), sem entrar no mérito da qualidade da refeição.

    Na ocupação dos aprendizes do Capão Redondo, a comida foi motivo de reclamação. O kit de lanche padrão das Fábricas é um suco de caixinha, um sanduíche de queijo ou presunto. Dependendo da semana, inclui um doce (geralmente paçoca ou pé-de-moleque) ou fruta. Banana é a rotineira. “É tudo muito monótono ou cheio de conservantes”, conta um aprendiz. Durante a gestão na ocupação, uma nutricionista foi chamada e deu uma oficina alimentação saudável, com preparo e aproveitamento de legumes e verduras doadas pela comunidade.

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    Sanduíche, suco de caixinha, doce ou fruta é kit padrão. Planilha apresentou distribuição de 3645 lanches por mês nos primeiros 8 meses de funcionamento da Fábrica

     

     

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    CONTRATO FOI RENOVADO: POIESIS VAI GERENCIAR AS FÁBRICAS ATÉ 2020 POR MAIS R$ 145 MILHÕES

    Por fim, como diz o relatório, “são exemplos para ilustrar a impossibilidade de aferir a formação de valores”. Trocando em miúdos: cadê a transparência nos gastos da Poiesis? É o que perguntam insistentemente os aprendizes que foram parar na cadeia nas desocupações feitas pela Polícia Militar. É a dúvida que acompanha os educadores que perderam seus empregos ou temem a demissão depois da greve.

    Aliás, a hora de trabalho desses profissionais em 2012 era de R$ 74,88, incluídos na conta o salário, encargos sociais e benefícios. Na época, um educador ganhava cerca de R$ 3.500 bruto por mês (veja holerite na abaixo). A Poiesis destinou R$ 1.174.994,04 para o pagamento desses profissionais na Fábrica da Vila Nova Cachoeirinha por 13 meses de trabalho. Com segurança, vigilância e limpeza, somados, orçou R$ 1.470.829, 79 – quase R$ 300 mil a mais, apesar de o contrato constar um mês extra. Ainda assim, a conta não muda: a OS previu mais gastos para vigilância e faxina do que para os educadores.

    Enquanto isso, a verba destinada ao salário do diretor das Fábricas de Cultura, o engenheiro Renzo Dino Sergente Rossa, foi de R$ 33.280 mensais com salário, encargos sociais e benefícios. Dá cerca de R$ 20 mil no contracheque. Só para se ter uma ideia, o governador Alckmin tem salário R$ 21.631,05 por mês.

    E o corte da Poiesis foi justamente na biblioteca.

     

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    Em tempo: há poucas semanas, em 30 de junho, a Secretaria da Cultura renovou o contrato da Poiesis até 2020. O repasse de verbas públicas será de R$ 145.174.613,00. Um item do contrato chama a atenção. Entre as obrigações que a Secretaria da Cultura designou à OS consta “Atender aos usuários com dignidade e respeito.”

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    PLANILHAS DA POIESIS ENVIADAS AO TCE

    Publicamos a seguir as tabelas de custos apresentadas pela Poiesis ao Tribunal em 17 de novembro de 2015

     

     

     

    O JULGAMENTO DO TCE

    O relator do TCE, o conselheiro Renato Martins Costa, apontou diversas falhas no contrato firmado em 20/12/2011 entre a Secretaria da Cultura e a Poiesis. O processo 07/2011 foi julgado em 14 de julho no ano passado e diz respeito ao contrato de gestão de R$ 66.277,505,00 para fomento e operacionalização da gestão e execução das atividades e serviços na área de iniciação, formação e difusão de atividades artístico-culturais desenvolvidas pelas Fábricas de Cultura do Jardim São Luís e Vila Nova Cachoeirinha.

    Seguem alguns trechos:

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    Apesar de orçar mais de R$ 2 milhões em obras, a Poiesis assinou contrato para administrar as Fábricas assim que elas foram construídas, estava tudo novinho em folha. Quanto às chamadas “despesas indiretas”, são referentes a gastos com vigilância, limpeza e manutenção do prédio e equipamentos. Segundo o relator do processo, o dinheiro previsto para pagar a administração das Fábricas de Cultura seriam maiores do que aqueles com projetos culturais.

     

     

    POIESIS NÃO ENVIOU RESPOSTA

    Os Jornalistas Livres solicitaram entrevista ao diretor da Poiesis, Clóvis de Barros Carvalho, por e-mail, na última quarta-feira (20). Sem resposta no dia seguinte, pedimos novamente um posicionamento sobre o processo por escrito. Nada. Então, por telefone, fomos informados que o assessor de imprensa estava de férias. Reenviamos o email à sua substituta. Às 15h48 de sexta-feira (22), a assessora avisou que o caso aguardava resposta da diretoria. Esperamos até agora, segunda-feira (25).

    O QUE DIZ A SECRETARIA DE CULTURA

    O TCE solicitou à Secretaria da Cultura informações sobre providências administrativas e eventual abertura de sindicância para apurar responsabilidades. Ou seja, o tribunal pediu uma investigação ao órgão que contratou os serviços da Poiesis.

    Exercendo seu direito de defesa, a Secretaria de Cultura entrou com pedido de recurso e, em 24 páginas, contendo 64 argumentações, disse que o acordo com a Poiesis vem apresentando um “ótimo desempenho”.
    A pasta defendeu que os contratos de gestão não podem ser engessados para não cercear a autonomia e a flexibilidade das OSs. Para justificar o custo de serviços de vigilância, limpeza, manutenção dos prédios de equipamentos, a defesa afirmou que essas não podem ser chamadas de “despesas indiretas” pois são diretamente relacionadas à gestão das Fábricas.

    A Secretaria também ressaltou que não é possível comparar a verba usada para atividades administrativas com as atividades culturais porque ambas fazem parte do projeto. “É tarefa muito difícil separar a atividade meio de atividade fim em toda e qualquer atividade, seja pública ou da iniciativa privada.”

    QUEM É QUEM NO CONTRATO COM A POIESIS

    A Poiesis é dirigida por Clóvis de Barros Carvalho, que foi fundador do PSDB e ex-ministro da Casa Civil no governo FHC. A Organização Social tem contratos ativos de mais de R$ 300 milhões em repasses públicos. Além de administrar cinco Fábricas da Cultura em São Paulo, faz a gestão dos museus Casa das Rosas e Guilherme de Almeida e mais 15 unidades das Oficinas Culturais espalhadas pelo Estado.

    A empresa sem fins lucrativos assinou contrato de gestão das Fábricas de Cultura com o governo do Estado em 2011, no Governo Alckmin (PSDB). Na época, a Secretaria da Cultura estava sob os cuidados de Andrea Matarazzo, outro tucano de alta plumagem, ex-ministro das Comunicações de FHC, ex-secretário das subprefeituras de São Paulo quando Serra (PSDB) era prefeito de São Paulo.