Por Martha Raquel Rodrigues e Leonardo Milano, direto da Bolívia, especial para os Jornalistas Livres
A poucas horas das eleições presidenciais a Bolívia vive um momento de disputa nas ruas. Entre El Alto e La Paz a equipe dos Jornalistas Livres conversou com dezenas de pessoas que se dividiram entre a intenção de votar no atual presidente Evo Morales e no segundo colocado Carlos Mesa. Mas uma coisa foi unânime, todas as pessoas destacaram que a vida da população mais pobre melhorou muito durante os três governos de Evo Morales, do MAS (Movimento ao Socialismo).
De 2006 a 2018 23% da população saiu da extrema pobreza e 24% saíram da pobreza. A ascensão econômica do país, cujo PIB passa de 4%, atingiu toda a população, mas fez teve uma importância ainda maior na vida da população baixa renda.
A Feira 16 de Julho, a maior feira do mundo, é famosa por ocupar toda a avenida durante as quintas-feira e os domingos. É possível encontrar de tudo, desde material para higiene ou limpeza, até roupas, sapatos, verduras, legumes, eletrônicos, etc. Em dia de eleição não há feira, por isso parte dela esteve presente neste sábado (19). Quando o assunto são as eleições, os vendedores se dividem entre os candidatos.
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Salomé Quispe Collque tem 35 anos e dois filhos. Artesã e vendedora de material escolar há 7 anos, ela sustenta a casa com o dinheiro das vendas da feira. Ao nos ouvir falar sobre as eleições tratou logo de dizer que seu candidato é Evo Morales. Antes mesmo de ser questionada já explicou que a vida do povo melhorou, que as crianças têm escola, os adultos têm emprego e que as casas tem comida. Para ela, Evo entende o sofrimento do povo porque já passou por ele – já que era agricultor e é indígena. Ela diz que ele quando criança ele também sentiu a pobreza, então entende as necessidades do povo.
A estudante Ximena Mamani, de 21 anos, disse que ainda não tem candidato mas destacou que Evo Morales fez o que havia prometido em suas campanhas. Ela destacou que os teleféricos ajudam muito a população, principalmente os trabalhadores e os estudantes. Hoje ela mora com seus pais e três irmãos a poucas quadras da Avenida 16 de Julho, onde cuida da banca da família.
Ximena Mamani – Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Liset Huanca, de 28 anos, é estudante e também trabalha como vendedora na feira. Quando questionada sobre o atual governo, disse gostar muito porque ele investiu em muitas obras, hospitais e escolas. Liset se emocionou ao dizer que viver na Bolívia e, em especial em El Alto, é muito bom. Ela disse não se imaginar vivendo em outro país. Apesar de concordar que o país teve avanços e que melhorou a vida do povo, ela irá votar pela mudança de partido.
Liset Huanca – Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
COMO ESTÁ A BOLÍVIA HOJE SOB O COMANDO DE EVO MORALES
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Educação a porta de entrada para outros direitos
O governo do presidente Evo Morales dedica 10% do orçamento nacional à educação, o que coloca o país como o segundo maior investidor no setor na América Latina, perdendo apenas para Cuba. Segundo o vice-presidente Álvaro García Linera, o objetivo desse investimento é melhorar e ampliar a qualidade da educação recebida por crianças e jovens bolivianos e, também, o fortalecimento da educação pública. Desde 2006 mais de 3 mil centros educacionais foram reformados e pelo menos outros 16 mil foram criados. Numa conta rápida, se equipararmos ao Brasil pelo número de pessoas vivendo no país, significaria ter disponível mais de 300 mil escolas – hoje temos apenas 184 mil.
Combate ao analfabetismo: O programa “Yo Sí Puedo” (Sim, Eu Posso) importado de Cuba ensinou mais de um milhão de adultos a escrever. Hoje menos de 3% da população não sabe ler ou escrever. O combate ao analfabetismo foi uma das prioridades do primeiro governo Evo Morales em 2006. O projeto surgiu de um estreitamento das relações diplomáticas e ideológicas com Cuba e Venezuela. Evo Morales, Fidel Castro e o falecido Hugo Chávez desenvolveram juntos o projeto na Bolívia. A Venezuela deu suporte financeiro e Cuba cedeu profissionais e os materiais necessários para a implementação. Mais de oito milhões de pessoas já foram alfabetizadas através do método em mais de 30 países, de acordo com dados cubanos.
Ensino universitário público e de qualidade: A Bolívia tem hoje 12 universidades públicas espalhadas pelo país. A Universidade Pública de El Alto, por exemplo, recebeu um investimento de 1 milhão de bolivianos em 2018. A UPEA, como é conhecida, tem 35 cursos para milhares de alunos da região. Para os moradores de El Alto a UPEA foi uma grande oportunidade para seus jovens.
Teleféricos como principal meio de transporte
Silencioso, limpo, seguro, rápido, barato e movido a energia elétrica e solar. O teleférico é o principal meio de transporte público que liga a cidade de La Paz a cidade de El Alto, na Bolívia. El Alto fica 400 metros acima de La Paz e seu percurso de carro pode levar até uma hora e meia. De teleférico a viagem dura em média 17 minutos.
Com a maior linha do mundo, o teleférico transporta 440 mil pessoas por dia. Os bondinhos distribuídos em 10 linhas e 36 estações, são movidos a energia elétrica, que é parcialmente fornecida por células fotovoltaicas instaladas em cima de cada um. Eles andam a uma velocidade média de 6 metros por segundo e a cada 12 segundos um novo bondinho está disponível. Com capacidade para 10 pessoas, algumas linhas contam com mais de 200 cabines disponíveis. No total as linhas alcançam mais de 30 km. O transporte de passageiros funciona de segunda a sábado das 06h às 23h e de domingo das 07h às 21h.
O projeto foi iniciado em 2014 pelo governo de Evo Morales e teve um investimento inicial de 230 milhões de dólares. Para os passageiros a passagem sai 3 bolivianos, em média R$ 1,80. A segunda baldeação custa 2 bolivianos, R$ 1,20. Estudantes de 3 a 25 anos, idosos e pessoas com deficiência pagam meia passagem.
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Saúde como direito e não mercadoria
O Sistema Único de Saúde boliviano é bem parecido com o brasileiro. Todas e todos têm direito aos cuidados de saúde sem qualquer pagamento direto dos usuários no local ou horário dos cuidados. Medicamentos essenciais também são ofertados de forma gratuita pelos governos municipais. Quando há necessidade de um procedimento ainda não é ofertado pelo SUS, o paciente terá direito de realizá-lo em unidades privadas e seus custos serão pagos pelo Ministério da Saúde.
“Calle de las Brujas” (Mercado das Bruxas)
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
O Mercado das Bruxas de La Paz é conhecido por tomar as ruas da região central da cidade e por vender todo tipo de artigo, inclusive alguns considerados exóticos pelos turistas. Tomado por cores, é possível encontrar desde roupas, artesanatos, quadros, sapatos, comidas típicas e até fetos de lhamas empalhados. As lhamas empalhadas são usadas como prenda para Pachamama (Mãe-Terra) em um ritual que consiste em montar uma mesa de oferendas a Pachamama com lhamas empalhadas e doces. A prenda é queimada ao final do ritual e acredita-se que traz segurança, saúde, prosperidade. Segundo as vendedoras muitas empresas fazem o ritual antes de construírem seus prédios.
Lhama empalhada – Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Lhama empalhada – Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Nas lojas o entra e sai é constante. Mery Pacossilo tem 33 anos e há 3 trabalha na loja “Dona Maria Mãe Poderosa”. Ela conta que muitas pessoas costumam levar os amuletos para deixar em casa ou presentear um ente ou amigo querido. O que mais sai custa 10 bolivianos (R$ 6) tem várias versões. Pode proteger a casa, os moradores, os carros, as viagens ou os animais. Já esta é a semente de Huayruro é usada como amuleto para trazer dinheiro. Se ingeridas são tóxicas, então os compradores carregam dentro da carteira. Já esta coruja é um amuleto para ajudar nos estudos. No mesmo estilo há este amuleto de uma mão segurando um saco de dinheiro, que é usado como amuleto da sorte na hora de fazer investimentos financeiros.
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
Foto: Leonardo Milano / Jornalistas Livres
La Paz é a capital da Bolívia e a 3ª maior cidade do país.
Por Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva
O governo Temer assinou, à socapa, um acordo chamado de “Salvaguardas Tecnológicas” com o governo dos EUA, mediante o qual cedemos nossa Base de Lançamentos de Alcântara, de localização privilegiada, e assumimos compromissos que alienam nossa soberania. O texto reproduz, quase ipsis litteris, aquele negociado pelo governo FHC e rejeitado pelo governo Lula e pelo Congresso Nacional. A assinatura de agora se fez e a tramitação no Congresso se faz, mais uma vez, sem debate com a sociedade ou audiência à comunidade científica. A grande imprensa não se motivou. E o governo do capitão tem pressa em sua aprovação, pois pretende apresentá-lo como oferenda a Trump, antes de seu filho Eduardo assumir a prometida embaixada em Washington – cargo para o qual suas qualificações são um mistério. Com o acordo o Brasil terá jogado a última pá de cal no seu programa espacial, com graves e irrecuperáveis prejuízos para sua soberania, sua economia, seu desenvolvimento e suas responsabilidades diante do Atlântico Sul.
Após três décadas de investimentos e muitas perdas humanas, o Brasil se prepara para o réquiem de seu programa espacial, no qual investe desde 1961. Sem falar nas grandes potências espaciais, fomos seguidamente superados por países emergentes que iniciaram seus projetos em tempos contemporâneos ao nosso, como China, Índia, Israel, Coreia do Sul, Coreia do Norte e Irã.
O Brasil não tem programa espacial completo: não domina as tecnologias nem de fabricação de satélites estacionários nem de foguetes de lançamento, e a rigor não tem base de lançamento. Na verdade, o que nos resta é uma área favorecida geograficamente que, ao preço de banana, cedemos aos interesses estratégicos dos EUA.
Diferentemente do que crê o senso comum, mantido desinformado, programa espacial não é sinônimo de ficção científica, tampouco necessidade exclusiva de um restrito grupo de nações endinheiradas: as comunicações civis e militares, a vigilância das fronteiras terrestres e marítimas, o sensoriamento geral do território, a pesquisa do subsolo, a vigilância ambiental, a previsão do tempo, tudo isso hoje depende de programa espacial. Quem não o tem, é obrigado a alugar os serviços de terceiros e assim pagar pela espionagem de si mesmo. Hoje nosso programa de satélites é desenvolvido em parceria com a China, sem notícia de transferência de tecnologia. Os satélites (programa CBERS) partem de base de lançamento chinesa e levados ao espaço por foguete chinês. A China, que iniciou seu programa em 1956, já em 2002 levava o homem ao espaço.
O objetivo dos EUA, nesse acordo, dito simplesmente de “Salvaguardas Tecnológicas”, mais do que dispor de uma base de lançamentos (de que não carecem), é impedir que o Brasil tenha seu próprio programa espacial, pois isso não é permitido em seu “quintal”, e somos seu “quintal” hoje, também por decisão do atual governo, subalterno aos seus interesses.
As razões para o veto ao nosso programa são de ordem geopolítica. Faça-se justiça às autoridades americanas: elas jamais negaram esse intento. Quando das negociações do Brasil com a República da Ucrânia, visando à criação da Alcântara Cyclone Space – binacional destinada à produção conjunta de um foguete lançador, o Cyclone-4 – e seu lançamento a partir de Alcântara, os EUA informaram àquele país que não se opunham ao projeto, desde que não houvesse transferência de tecnologia, mas que continuavam entendendo que o Brasil não deveria ter programa espacial. Era um veto explícito, com todas as consequências óbvias. Quando a binacional Alcântara Cyclone Space – ACS, da qual fui diretor brasileiro, se instala e começa a funcionar, o Departamento de Estado comunica a prévia proibição de lançamento, de nossa base, de satélite (e este era o objetivo da joint venture) contendo qualquer sorte de equipamento de origem estadunidense, o que, de saída, nos afastava de algo como 60% do mercado internacional de lançamentos.
Pelo acordo, ao fim e ao cabo, o Brasil não adquirirá tecnologia, não produzirá tecnologia e não disporá seja de veículos lançadores, seja de satélites. Sua única riqueza é a localização privilegiada de Alcântara, cedida.
Tudo isso está documentado em telegramas que o Departamento de Estado enviou à sua embaixada em janeiro de 2009 e vazados pelo WikiLeaks em 2011.
Sem transferência de tecnologia
O objetivo do acordo é impedir que o Brasil tenho acesso à tecnologia de lançamentos – de que tanto necessita, como demonstra a frustração do projeto do VLS – e, assim, desenvolva seu próprio programa, limitadamente comercial. O acordo, que o Congresso está prestes a aprovar, não só proíbe o Brasil de ter acesso à tecnologia dos EUA, como à de qualquer país com o qual venha a estabelecer acordo. O texto que está no Congresso estabelece que o Brasil firmará (o teor é imperativo) acordos com outros países nos mesmos termos do firmado com os EUA, ou seja, impeditivos de transferência de tecnologia. Proíbe mesmo que o Brasil venha a utilizar em seu Programa recursos provenientes de acordos semelhantes. O item 2 do Artigo III determina que “O Brasil (…) não poderá usar tais recursos [provenientes da cessão da base] para aquisição, desenvolvimento, produção, teste, emprego ou utilização de sistemas da Categoria I do MTCR (…)”, ou seja, mísseis capazes de carregar carga útil de 500 quilos a uma distância de mais de 300 quilômetros. MTRC é a sigla inglesa de Regime de Controle de Mísseis, ou, Missels Tecnhology Central Regime.
O rol de restrições unilaterais – e eis a grande característica do Acordo, a unilateralidade de direitos norte-americanos contra obrigações, e só obrigações brasileiras – nos impede de firmar outros acordos (Artigo III) com países que uma das partes tenha designado como terrorista. Ficamos, assim, à mercê das conveniências estratégico-militares dos EUA que podem considerar quem quiser e a qualquer tempo como “terrorista”, como já consideraram o Iraque e podem amanhã considerar a China. Não param aí as restrições, e aqui não é possível arrolá-las todas. Assim, pela Alínea B do mesmo Artigo III, o Brasil se compromete a não permitir o ingresso de “equipamentos, tecnologias, mão de obra ou recursos financeiros no Centro Espacial de Alcântara oriundos de países que não sejam parceiros membros do MTCR”. Entre os muitos países ausentes do MTRC estão a China, com quem partilhamos o programa CBERS de desenvolvimento de satélites, e Israel.
Os negociadores brasileiros, que tudo aceitam, não nos resguardam do mau uso da Base pelos EUA – notoriamente, a nação mais belicosa que a humanidade já conheceu. O acordo não faz referência a prévio licenciamento ambiental, nem a salvaguardas brasileiras quanto ao conteúdo importado e embarcado pelos EUA. Não há proibição de uso militar, de transporte de ogivas nucleares ou de lançamento de gases tóxicos ou nocivos à saúde humana ou ao meio ambiente.
Diga adeus à Soberania
O Brasil não poderá inspecionar, visualmente, as cargas destinadas aos veículos lançadores dos EUA. O Artigo VII dispõe que os equipamentos lançadores dos EUA serão transportados e ingressarão no Brasil em containers fechados e lacrados; de seu conteúdo as autoridades brasileiras receberão, tão só, declaração das autoridades americanas. Caso requerido pelo Brasil, esses containers somente poderão ser abertos por participantes norte-americanos (cujo numero não é limitado) que não podem autorizar exame técnico ou inspeção visual. Que resta às nossas autoridades além de nada – nem mesmo autoridade?
Há mais limitações ao exercício da soberania brasileira em Alcântara.
São criadas as “Áreas restritas” (item 14 do Artigo II) “às quais o governo do Brasil (…) somente permitirá acesso a pessoas autorizadas pelo governo dos EUA, a fim de assegurar que de maneira ininterrupta possam monitorar, inspecionar e controlar o acesso”. O item VI ordena: “O acesso a áreas restritas deverá ser controlado pelo governo dos EUA (…) pelos licenciados norte-americanas, por meio de crachás a serem elaborados pelo governo dos EUA”.
O item 3 do Artigo VI diz que “O Brasil deverá (sempre o caráter impositivo) permitir que servidores do governo dos EUA (…) tenham acesso, a qualquer tempo, para inspecionar nas áreas Controladas, nas áreas Restritas ou em outros locais (…); tais inspeções ou verificações poderão ocorrer sem aviso ao governo do Brasil ou da representação brasileira”.
Trata-se, pois, de acordo leonino, que só interessa a uma das partes pois apenas uma assegura direitos que são exercidos sobre a renúncia da outra parte. O país é posto de cócoras. O acordo, além de humilhante, é o atestado de óbito de nosso Programa Espacial. Fiquem claras, para o registro das responsabilidades históricas, as consequências da aprovação, iminente, desse mostrengo que a diplomacia brasileira, em sua hora mais triste, acaba de ressuscitar. E fique claro o comprometimento de nossas forças armadas, com seu silêncio aprovador. O Brasil será o único país em suas dimensões e sua importância política a renunciar a ter um programa espacial.
E Continua a razia – Em mais uma ação lesiva ao funcionamento do já abalado Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, o governo prossegue em seu projeto de fundir a CAPES e o CNPq em uma só autarquia vinculada ao MEC, além de transformar a FINEP em uma carteira do BNDES. Os dois absurdos são defendidos pelo estapafúrdio ministro da Educação e contam com a aquiescência do MCTI.
Alcântara, Maranhão, será entregue para os americanos
RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Terça-feira, 24 de setembro de 2019.
Jair Bolsonaro protagonizou aquele que talvez tenha sido um dos maiores vexames da história da diplomacia. Em aproximadamente 30 minutos de discurso, o presidente do Brasil vomitou no púlpito da ONU todas as bobagens que vem falando desde o início da década de 1990, e que durante muito tempo foram lidas como devaneios sem importância.
Erro grave. A democracia brasileira subestimou o potencial destrutivo de uma fenda autoritária. A fenda foi crescendo, crescendo, até fazer desaparecer o chão sob nossos pés.
Na ONU, Bolsonaro falou do Foro de São Paulo, do projeto socialista dos governos petistas, de ideologia de gênero e tudo aquilo que circula no submundo do Whatsapp.
Confesso que não sei se o presidente acredita mesmo no que diz ou se isso faz parte da estratégia de constante excitação de sua base social orgânica. Pode ser que sejam as duas coisas. Acho mais provável que sejam as duas coisas.
Não vou comentar o conteúdo do discurso. Muitos já o fizeram. Quero mesmo é mostrar o lado positivo do evento, acompanhado com atenção pelo mundo inteiro, que tenta entender o que está acontecendo no Brasil.
O discurso mostrou ao mundo que a narrativa que desde o século XIX afirma o lugar do Brasil no concerto internacional das nações é, simplesmente, mentirosa.
Mas que narrativa é essa?
Em 1843, foi publicado um texto de autoria do botânico alemão Karl von Martius, onde o autor prescreve um modelo para aqueles que no futuro tentassem escrever a história do Brasil. Para Martius, qualquer um que se dedicasse ao empreendimento não poderia deixar de ressaltar aquele que seria o aspecto fundamental da formação histórica brasileira: a mistura pacífica entre as raças branca, negra e indígena.
A tópica da mistura racial pacífica atravessou o pensamento social brasileiro, ganhando seus contornos mais conhecidos no livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, publicado pela primeira vez em 1933. A “democracia racial” se tornou a principal ideologia de autoapresentação brasileira no mundo.
Em todas as exposições universais realizadas ao longo do século XX, lá estava no stand do Brasil um índio trajado de nu e com o corpo pintado, uma baiana fritando acarajé ou uma mulher negra sambando de biquíni.
Durante muito tempo a narrativa colou, a tal ponto que na década de 1950, a ONU enviou uma missão ao Brasil para estudar como se dava a convivência pacífica entre raças diferentes. Naqueles anos, a ONU investia em uma agenda multiculturalista e estava convencida de que o Brasil tinha algo a ensinar ao mundo.
O futebol ajudou a alimentar essa imagem positiva: Pelé, os Ronaldinhos, Romário. O Brasil seria tão tolerante e pacífico a ponto de monumentalizar heróis negros.
Se é possível ver o copo meio cheio e encontrar algo de bom no discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas, eu diria que foi a revelação ao mundo de uma verdade sobre o Brasil.
Manifestações racistas, ataques aos direitos das comunidades indígenas, ofensas às mulheres. Os absurdos ditos por Bolsonaro ecoam na imprensa internacional desde o segundo semestre do ano passado, quando ele pintou como candidato forte na corrida presidencial.
O discurso na ONU foi a cereja do bolo e jogou pá de cal na representação que durante quase 200 anos definiu o Brasil no imaginário internacional.
Bolsonaro, com sua imagem fedorenta (a imagem de Bolsonaro fede, sou capaz de sentir o mal hálito exalando da TV), foi lá, tomou o microfone e mostrou ao mundo quem é o homem médio brasileiro.
Bolsonaro é a representação perfeita do homem médio brasileiro, como já disse com astúcia Eliane Brum: autoritário, violento, deselegante, feio.
Mesmo com todo o vexame, o discurso de 24 de setembro de 2019 serviu para globalizar o homem médio brasileiro e dar fim à farsa que durante muito tempo enganou o mundo, incluindo nós mesmos.
Agora, talvez, diante do grotesco manifestado em espelho, sejamos capazes de entender quem somos e melhorar. Essa tragédia toda precisa servir pra alguma coisa.
Nota dos Jornalistas Livres: Não é coincidência a estratégia montada por Moro e a equipe da Lava Jato, com apoio total do bolsonarismo. Nessa estratégia, o crime é a publicação da verdade. “As instituições” devem ser preservadas a qualquer preço. O importante não é um juiz agir politicamente em conluio com o MP para tirar ilegalmente do páreo o principal candidato a presidente do país e, portanto, ajudando a eleger quem lhe promete um ministério e uma vaga no STF. O crime, de uma hora pra outra, passa a ser o jornalista publicar como isso aconteceu! Da mesa do Senado vemos um ministro da justiça, ex-juiz federal, afirmando, sem provas, que há “um grupo de criminosos em conluio com um jornalista sensacionalista contra a Justiça e a Presidência do Brasil”. E, num instante, temos manifestações pela deportação do jornalista, ameaças de morte contra o marido e os filhos do jornalista, fake news sobre compra de mandato parlamentar do marido do jornalista ditas EM PLENÁRIO pelo senador filho do presidente e articulações nas redes por manifestações em favor do ministro que rasgou a Constituição e contra o jornalista que provou isso. Detalhe: o jornalista (Gleen Greenward) é simplesmente um dos melhores de nossa geração, com prêmios e reconhecimento mundial. Mais premiado que ele, talvez, somente o John Pilger, que está na profissão desde antes de Gleen nascer. Mas, como disse acima, não é coincidência a linha de defesa escolhida por Sérgio Moro. Os nomes de jornalistas e veículos de comunicação citados na entrevista poderiam ser facilmente trocados por nomes locais. Pilger tem denunciado isso há anos com a perseguição de Julian Assange. Nessa reportagem recentemente traduzida para o português e publicada pelo site Outras Palavras, Pilger mostra os perigos para as democracias da criminalização do jornalismo. Respirem fundo, leiam, reflitam e repassem.
Publicado originalmente em 18/06/2019 às 21:09 – Atualizado 18/06/2019 às 21:16
O cineasta John Pilger, cujo trabalho é afiado e digno de prêmios como o Oscar e o Emmy, é reverenciado e celebrado por jornalistas e editores em todo o mundo. Quando ainda estava em seus vinte anos, Pilger se tornou o jornalista mais jovem a receber o principal prêmio britânico da categoria, o “Jornalista do Ano”, o qual também foi o primeiro a ganhá-lo duas vezes. Após se mudar para os Estados Unidos, relatou as revoltas do final dos anos 1960 e dos 1970. Pilger estava na sala no momento em que Robert Kennedy, então candidato presidencial, foi assassinado em junho de 1968.
Sua reportagem sobre o sudeste asiático e o documentário que veio depois, Ano Zero: A Morte Silenciosa do Camboja, levantou quase 50 milhões de dólares (193 mil reais) para as pessoas daquele país atingido. De maneira semelhante, seu documentário de 1994 e o relatório de despachos do Timor Leste, para onde viajou secretamente, ajudou a estimular apoio aos timorenses, cujo território estava então ocupado pela Indonésia. Na Grã-Bretanha, sua investigação de quatro anos em nome de um grupo de crianças debilitadas ao nascer pela droga Talidomida, e deixadas de fora do acordo com a farmacêutica, teve, como resultado, um acordo especial. Em 2009, foi agraciado com o prêmio de direitos humanos da Austrália, o Sydney Peace Prize. Recebeu títulos de doutorado honorários de universidades no Reino Unido e outros países. Em 2017, a Biblioteca Britânica anunciou um Arquivo John Pilger de todos os seus trabalhos em texto e filme.
Nessa entrevista com Dennis J. Bernstein e Randy Credico, Pilger fala sobre o que está acontecendo com seu amigo e colega Julian Assange, fundador e editor do WikiLeaks, e como sua perseguição pode ser o começo do fim da reportagem investigativa moderna como a conhecemos. Desde sua alardeada encarceramento em prisão de segurança máxima, jornalistas e whistleblowers [indivíduos que denunciam más condutas de governos e instituições] têm sido perseguidos, presos e seus documentos e discos rígidos apreendidos em países como os EUA, França, Grã Bretanha e Austrália.
Bernstein: É bom falar com você de novo, John. Obrigado por conversar conosco. Isso que está acontecendo — não apenas com Julian Assange — mas com o futuro do jornalismo, é perturbador. Agora, temos visto ataques a jornalistas na Austrália, França e aqui nos EUA em São Francisco, onde a polícia algemou um repórter enquanto vasculhava sua casa e apreendia seu HD. Sabemos que Julian Assange está em uma prisão de segurança máxima e Chelsea Manning também está encarcerado. São tempos terríveis para o fluxo livre de informação.
Pilger: Bem, isso agora está acontecendo em todo o mundo, inclusive em toda a parte daquele mundo que se gaba de ser “iluminado”. Estamos presenciando a represália aos whistleblowers e jornalistas que se atrevem a dizer a verdade. Há uma guerra global contra o jornalismo. Mais do que isso, há uma guerra global contra os dissidentes. A velocidade com que esses eventos acontecem está bem acentuada desde 11 de abril, quando Julian Assange foi arrastado pela polícia para fora da embaixada equatoriana em Londres. Desde então, a polícia tem se voltado contra jornalistas nos Estados Unidas, na Austrália e, de maneira mais espetacular, na América Latina. É como se tivesse sido acionado um sinal verde para eles.
Credico: Eu achava que a essa altura Assange já estaria solto. Você também não pensou que chegaria um momento em ele estaria livre da situação terrível que estava quando o vi, há dois anos atrás?
Pilger: Estou relutante em fazer futurologia. Realmente pensei que um acordo político teria sido feito. Olhando para trás, isso era extremamente ingênuo porque o extremo oposto tinha sido planejado para Julian Assange. Há um “precedente Assange” funcionando em todo o mundo. Na Austrália, houve um ataque a uma emissora pública, a Australian Broadcasting Corporation, onde a polícia federal entrou com mandados, um dos quais os dava permissão para deletar, alterar e se apropriar do material de jornalistas. Foi um dos ataques mais estrondosos à liberdade jornalística e inclusive à liberdade de expressão de que tenho lembrança. Vimos até a News Corporation de Rupert Murdoch ser atacada.
A editora de política de um dos jornais de Murdoch, o The Sunday Telegraph, viu sua casa ser saqueada e seus pertences pessoais, íntimos, pilhados. Ela havia feito uma reportagem sobre a extensão da espionagem oficial dos australianos realizada por seu governo. Algo similar aconteceu na França, onde a polícia do [presidente Emmanuel] Macron moveu uma ação contra jornalistas da revista Disclose.
Assange previu isso enquanto estava sofrendo acusações e abusos. Ele dizia que o mundo estava mudando e que as chamadas democracias liberais estavam se tornando autocracias. Uma democracia que põe sua polícia contra jornalistas e confisca suas notas e computadores, simplesmente porque revelaram algo que o governo não queria que o povo soubesse, não é uma democracia.
Credico: Sabe, John, alguns representantes da mídia empresarial aqui nos EUA e, acredito, no Reino Unido, agora que perceberam que o tiro, possivelmente, saiu pela culatra, subitamente saíram em defesa de Assange, particularmente quanto ao uso do Ato de Espionagem e ao recolhimento de informação. Não quero denunciá-los por terem esperado tanto tempo, mas porque eles esperaram tanto e que tipo de ajuda podem oferecer a essa altura? E o que eles deveriam fazer, já que também estão na mira?
Pilger: Vamos ver quem está realmente na mira. O WikiLeaks copublicou os registros das guerras do Afeganistão e do Iraque em 2010, em colaboração com várias organizações de mídia: Der Spiegel na Alemanha, The New York Times nos EUA, The Guardian no Reino Unido e Espresso na Itália. Quem mais publicou o material do Iraque foram Al Jazeera, Le Monde, o Bureau of Investigative Journalism de Londres, o programa Dispatches do Channel 4 em Londres, o projeto britânico Iraq Body Count, o RUF (Islândia), o SVT (Suécia) e por aí vai.
Existe uma lista de jornalistas que relataram esses fatos e trabalharam com Assange. Isso fez seu trabalho ecoar; eram colaboradores no sentido literal. Estou com uma lista agora mesmo: no The New York Times tem Mark Mazzetti, Jane Perlez, Eric Schmitt, Andrew W. Lehren, C. J. Chivers, Carlotta Gall, Jacob Harris, Alan McLean. Do The Guardian são Nick Davies, David Leigh, Declan Walsh, Simon Tisdal… e a lista continua. Todos esses jornalistas estão na mira. Eu não acredito que muitos vão acabar entrando em apuros como Julian Assange porque não representam um perigo ao sistema que reagiu contra Assange e Chelsea Manning; mas eles, prima facie, cometeram os mesmos “crimes”. Em outras palavras, são tão “culpados” quanto Assange de cometer jornalismo.
Isso se aplica a centenas, se não milhares, de jornalistas ao redor do mundo. As divulgações do WikiLeaks, se não copublicadas, foram ignorados por jornais, revistas e programas investigativos de televisão em todas as partes. Isso faz com que todos os jornalistas estejam envolvidos, todos os produtores, todos os apresentadores, todos eles são cúmplices. E, é claro, a perseguição de Assange e a intimidação de alguns outros representa um escárnio à Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que diz que você tem todo o direito de publicar; você tem todo o direito de “publicar e ser amaldiçoado”. É um dos mais nobres e demonstráveis princípios da constituição norte-americana que está sendo jogado no lixo. E a ironia é que os jornalistas que olharam de forma enviesada para Assange, ainda alegando que ele não era jornalista, estão agora correndo para cobrir, não porque ele é um jornalista da mais alta grandeza, mas porque ele é um jornalista com mais consciência do que muitos deles mesmos. Ele — e os outros em sua sombra — estava fazendo um trabalho básico do jornalismo. É por isso que chamo isso de guerra global contra o jornalismo — e o precedente aberto por Julian Assange não se parece em nada com o que vimos antes.
Bernstein: John, quero pegar o ponto de onde você estava, na pergunta de Randy, e esmiuçar e aprofundar o entendimento das pessoas sobre quem exatamente é Julian Assange e, se me permite, o ritmo que ele escolheu para seu trabalho. Como você descreve esse ritmo de Julian Assange e as pessoas que escolheu para trabalhar com ele?
Pilger: Quando conheci Julian Assange, perguntei a ele: “De que se trata, afinal, o WikiLeaks, e o que você está fazendo aqui?”. Ele descreveu muito claramente o princípio da transparência. Na verdade, estava descrevendo o princípio da liberdade de expressão: que temos o direito de saber. Temos o direito de ter conhecimento sobre o que nossos governos estão fazendo em nosso nome. Ele não estava dizendo que há um direito de pôr as pessoas em perigo. Estava dizendo que no jogo normal das democracias liberais temos o direito de saber o que o governo está fazendo por nós, às vezes até conspirando contra nós e em nosso nome. Temos o direito de saber a verdade sobre o que eles dizem em privado, o que tão frequentemente é traduzido em inverdades em público. Essa transparência, ele disse, era um princípio moral. Essa é a “razão” do WikiLeaks. Ele acredita nisso fervorosamente e, claro, isso deveria tocar em todos os jornalistas autênticos, porque é isso que nós todos deveríamos acreditar.
O que o caso Assange nos mostrou é que essa guerra contra o jornalismo, essa guerra contra o dissidente, ainda tem que entrar na corrente sanguínea da política. Nenhum dos candidatos que concorre à presidência dos Estados Unidos chegou a mencionar o assunto. Nenhum dos Democratas proferiu uma palavra. Não esperamos que a gangue de Trump fale sobre princípios como esses, mas há alguns ingênuos que acreditam que talvez alguns dos democratas deva fazer. Nenhum deles fez.
Bernstein: [O que significa quando] Julian Assange e Chealsea Manning, um editor e um dos mais importantes whistleblowers militares de nosso tempo, estão na prisão e encarcerados?
Julian Assange
Pilger: Eles querem pôr suas mãos em Julian Assange porque ele protegeu sua fonte e eles querem pôr as mãos em Chelsea Manning porque ela, sendo a fonte, se recusou a mentir sobre Julian Assange. Ela recusou-se a implicá-lo. Recusou-se a dizer que há uma conspiração entre eles. Esses dois exemplificam o que é a mais pura alegação da verdade na era moderna. Fomos desprovidos de duas pessoas como Assange e Chelsea Manning.
Sim, houve excelentes reportagens investigativas e revelações, mas temos que voltar ao nível de Daniel Ellsberg [militar que, em 1971, forneceu ao The New York Times o Pentagon Papers] para apreciar o que Chelsea e Julian, essas duas figuras heroicas, o que elas nos deram, e por que estão sendo perseguidas.
Se permitimos essas perseguições, tudo está perdido… A intimidação e a supressão vão agir em toda nossa vida. Na mídia que outrora abusou de Assange, eu vejo medo. Você lê alguns desses editoriais escritos por aqueles que uma vez atacaram Julian Assange e acusaram-no, tais como o The Guardian, e você os percebe temendo ser os próximos. Você lê colunistas famosos como Katie Benner, no The New York Times, que atacou Assange e agora vê uma ameaça de seus algozes a todos os jornalistas. O mesmo é verdade para David Corn [da Mother Jones], que agora vê a ameaça para todo o jornalismo. E eles têm razão em estarem assustados.
Credico: Qual era o medo que se tinha de Assange? Que ele continuaria a trabalhar em novos métodos de exposição? Por que estão tão assustados com Assange?
A Polícia Federal australiana em sua incursão ao escritório da ABC, em Sidney
Pilger: Bem, acredito que estavam preocupados — estão preocupados — que entre os dois milhões de pessoas nos EUA que têm uma autorização de segurança nacional estejam entre aqueles que Assange chamou de “objetores conscienciosos”. Uma vez pedi a ele para descrever as pessoas que estavam usando o WikiLeaks para liberar informações importantes. Ele os comparou aos objetores conscienciosos nos tempos de guerra, pessoas de princípios e de paz, e eu acho que é uma descrição bem apropriada. As autoridades estão preocupadas com a possibilidade de que haja algumas outras Chelseas por aí. Talvez não tão corajosas ou ousadas como Chelsea, mas que podem começar a soltar informações que enfraqueçam todo o sistema da máquina de guerra.
Credico: Sim, falei com Julian sobre isso mais ou menos um ano atrás, quando estava em Londres, sobre tentar fazer uma comparação com o sul norte-americano na guerra de secessão e jornalistas como Elijah Lovejoy e David Walker, que foram assassinados por expôr a brutalidade e o destino da escravidão. Eu disse: “Sabe, nós precisamos começar a te mostrar desse ponto de vista”, ao que ele respondeu: “há uma grande diferença, Randy”. Ele disse isso: “veja, aqueles homens só tiveram que lidar com um dos lados, e foi isso; as pessoas no sul e algumas de suas colaboradoras em Nova York, que foram parte dos negócios de transporte de algodão. Mas o resto do norte estavam praticamente todo do lado dos abolicionistas. Eu expus crimes de guerra e isso fez com que os conservadores se irritassem. E então expus o mal comportamento e a prevaricação no Partido Democrata. Então, todos eram meu alvo, eu não poupo ninguém, então isso não se aplica a mim”.
E foi isso que aconteceu aqui. Você enxerga isso pelo reduzido número de protestos em seu nome. Eu fui a uma manifestação outro dia, um pequeno protesto por Assange em frente à embaixada britânica, e apenas meia dúzia de pessoas estavam lá, um pouco mais do que na semana anterior. Ele não está gerando esse tipo de interesse até agora. E você via pessoas que passavam por lá e diziam “Assange é um traidor”. Quer dizer, estão tão desinformadas, e agora tenho que usar a citação que você usou, de Vandana Shiva, em seu livro Freedom Next Time, que trata da “insurreição do conhecimento subjugado”. Você pode falar sobre isso?
Vandana Shiva
Pilger: Vandana Shiva é uma grande ambientalista e ativista política indiana, cujos livros sobre a ameaça da monocultura são referência, especialmente a ameaça de empresas multinacionais de agroenergia que se impõe em sociedades vulneráveis e rurais como a Índia. Ela descreve uma “insurreição do conhecimento subjugado”. É um ótimo truísmo. Eu por muito tempo acreditei que a verdade reside em um mundo metaforicamente subterrâneo e sobre isso está todo o ruído: o ruído dos políticos credenciados, o ruído da mídia credenciada, aqueles que parecem estar falando por quem está abaixo deles. De vez em quando, contadores de verdade emergem de baixo. Pegue, por exemplo, o correspondente de guerra australiano, Wilfred Burchett, que foi o primeiro a ir a Hiroshima depois do bombardeio atômico. Seus relatos foram capa de seu jornal The Daily Express, em Londres, nos quais dizia “eu escrevo isso como um alerta ao mundo”. Estava alertando sobre armas nucleares. Tudo foi jogado contra Burchett para acusá-lo e desacreditá-lo. O correspondente do New York Times liderava esse movimento: a mesma pessoa que negou que as pessoas estavam sofrendo efeitos da radioatividade: que pessoas tinham morrido apenas na explosão. Depois, descobriu-se que ele estava mancomunado com autoridades norte-americanas. Wilfred Burchett sofreu acusações ao longo de toda sua carreira. Todos os whistleblowers passam por isso — aqueles que são afrontados pela indecência de algo que descobrem, talvez em uma empresa para a qual trabalham ou dentro de um governo — eles acreditam que o público tem o direito de saber a verdade.
O Guardian, que atacou Julian Assange com tanta crueldade, tendo sido um dos parceiros de mídia do WikiLeaks, nos anos 1980 publicou documentos de um oficial do Ministério das Relações Exteriores que relatava planos dos EUA de instalarem mísseis de cruzeiro de médio alcance ao longo da Europa. O Guardian publicou isso e foi devidamente elogiado em um documento de divulgação e princípio. Mas quando o governo foi à justiça e um juiz exigiu que o jornal entregasse os documentos que revelariam quem era o denunciante — ao invés do editor fazer o que editores devem fazer, defender os princípios e dizer “não, não vou revelar minha fonte” — o jornal traiu sua fonte. Seu nome é Sarah Tisdall e ela acabou presa. Então, whistleblowers tem que ser pessoas extraordinariamente corajosas e heroicas. Quando você olha para tipos como Julian Assange e Chelsea Manning é como se toda a força da segurança de Estado nacional norte-americana, apoiada por seus chamados aliados, tenha sido imposta a eles. Julian representa um exemplo de que eles têm que fazê-lo, porque se não transformá-lo em um exemplo, jornalistas podem ser encorajados a fazer seu trabalho, e esse trabalho significa contar ao público o que ele tem direito de saber.
Credico: Muito bem dito. No prefácio ou introdução de seu livro, Freedom Next Time, você também cita Harold Pinter e seu discurso vencedor do Prêmio Nobel, no qual ele fala sobre a vasta tapeçaria de mentiras que alimentamos, e ele segue adiante e diz que os crimes norte-americanos foram superficialmente registrados, que dirá documentados, que dirá conhecidos. Julian Assange quebrou essa conduta pra valer, expôs crimes de guerra cometidos pelos EUA e todo tipo de travessuras que o Departamento de Estado tenha perpetrado. Você fala de Harold Pinter, da grande influência que ele foi.
Pilger: Sim, eu recomendo aos seus ouvintes o discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Harold Pinter. Acredito que foi em 2015. Foi um testamento eloquente e magnífico sobre como e porque a verdade precisa ser contada e também por quê não deveríamos mais tolerar a hipocrisia dos políticos de duas caras.
Harold Pinter fez um paralelo entre nossa visão sobre a União Soviética e os crimes de Stalin, comparada com a dos crimes dos Estados Unidos; ele disse que a maior diferença é que nós temos ciência da magnitude dos crimes de Stálin, mas que sabemos muito pouco sobre os crimes de Washington. Ele comentava que o ensurdecedor silêncio que envolve nossos crimes — quando digo “nossos”, me refiro àqueles dos Estados Unidos — significam, como ele disse memoravelmente: “estes crimes nunca ocorreram, não aconteceram nem quando estavam ocorrendo, eles não são de interesse público e não têm a menor importância”.
Nos livramos desse duplo padrão, com certeza. Acabamos de ter uma celebração escorregadia do 6 de junho, o Dia-D. Essa foi uma invasão extraordinária na qual muitos soldados tomaram parte e deram suas vidas, mas isso não fez com que a guerra fosse vencida. A União Soviética na verdade ganhou a guerra, mas os russos não eram nem representados, não eram nem convidados a falar sobre isso. Isso não aconteceu, como Pinter costumava dizer. Isso não importou. Mas Donald Trump estava lá, palestrando ao mundo sobre guerra e paz. É uma sátira horrível. Esse silêncio, essas omissões, correm em todos os nossos jornais, como se fosse mesmo uma aparência de verdade, e não é.
Bernstein: Quero voltar ao ponto de Wilfred Burchett e a enorme responsabilidade que esses grandes jornalistas têm de permitir que coisas terríveis continuem acontecendo sem serem noticiadas, baseados em questões de patriotismo e alegações de segurança nacional. Estou pensando, tiveram que calar Wilfred Burchett porque aquilo poderia ter aberto a porta toda de como são perigosas as armas nucleares e o poder nuclear, detonando o mito da paz atômica.
Pilger: Isso é totalmente verdade, Dennis, e isso também mina os planos morais da “Guerra Boa”, a Segunda Guerra Mundial que acabou com esses dois grandes crimes: o bombardeio atômico de Hiroshima e de Nagasaki em um momento em que o Japão não representava nenhuma ameaça. Historiadores confiáveis agora não nos contam os contos de fadas de que essas bombas atômicas eram necessárias no fim da guerra. Então, isso destruiu em muitos aspectos a grande missão moral da guerra.
Não apenas fez isso, como declarou no bombardeio atômico que uma nova guerra estava começando, uma “Guerra Fria”, apesar da possibilidade de se tornar rapidamente uma “guerra quente” com a União Soviética. E com isso estava dizendo que “nós” — ou seja, os Estados Unidos e aliados como os britânicos — temos armas nucleares e estamos prontos para usá-las. Essa é a chave: estamos preparados para usá-las. E os Estados Unidos foram os únicos que já chegaram a usá-las contra outro país.
Claro que, depois, isto foi testado nos Territórios de Confiança da ONU. Era para ser mantido em confiança pela ONU nas Ilhas Marshall e acabou dando início a várias Hiroshimas ao longo de 12 anos. Naquele tempo, nós não sabíamos nada disso. Mas e quanto sabemos sobre as ogivas nucleares (tipo de míssil) que o Presidente Obama solicitou e que comprometeram cerca de um trilhão de dólares? — às quais, certamente, o presidente Trump deu continuidade.
E aqueles tratados que ofereciam uma defesa precária contra um holocausto nuclear, tratados com a União Soviética, como o de armas de médio alcance, que foi rasgado por esta administração? Uma coisa leva à outra. Isto é contar a verdade.
Bernstein: quero voltar e lembrar as pessoas que tipo de estrutura Julian Assange criou com o WikiLeaks para proteger whistleblowers. Esse é um ponto crucial porque temos visto agora outros jornalistas sendo mais cuidadosos e vemos fontes sendo rastreadas, presas, e enfrentando grandes tempos de cadeia. E acredito que foi assim que Julian Assange honrou os whistleblowers, protegê-los é uma parte crucial de quem ele é e o que ele fez.
Pilger: Ele inventou um sistema através do qual é impossível dizer quem foi a fonte e isso permitiu pessoas usarem algo como um buraco de caixa de correio para vazar materiais sem terem sua identidade divulgada. É provavelmente isso que enraiveceu aqueles que estão perseguindo Assange. Significa que pessoas de consciência dentro dos governos, dentro de sistemas, que ficam incomodadas como Chelsea Manning, que ficou profundamente perturbada com o que viu, tenham a oportunidade de contar ao mundo, sem temer que tenham sua identidade exposta. Infelizmente, Chelsea revelou sua identidade a alguém que a traiu. É um meio sem precedentes de descobrir a verdade.
Bernstein: John, conte-nos sobre sua visita recente a Assange no presídio de segurança máxima de Belmarch, na Grã-Bretanha. Como ele está?
Pilger: Eu gostaria de dizer uma coisa sobre Julian, pessoalmente. Eu vi Julian na prisão de Belmarsh e eu tive uma sensação vívida do que ele tem que suportar. Eu vi a resiliência e coragem que conheço há tantos anos, mas agora ele está indisposto. A pressão sobre ele é inimaginável, a maior parte de nós teria se curvado diante disso. Mas há uma questão aqui de justiça por esse homem e o que ele teve que enfrentar; não apenas as mentiras que foram contadas sobre ele na embaixada e as grandes farsas que buscavam assassinar sua reputação. A chamada mídia respeitável, do New York Times ao The Guardian, todos caíram na lama e a jogaram nele; e hoje ele está muito vulnerável e eu vou dizer isso aos ouvintes: ele precisa de nosso apoio e solidariedade. Mais importante, ele merece.
Bernstein: Fale um pouco mais sobre as condições do lugar e por que é tão significativo que o deixem por um ano numa prisão como essa.
Pilger: Bom, eu suponho que por causa da ameaça que ele significa. Mesmo com Julian preso, o WikiLeaks segue. Essa é uma prisão de segurança máxima. Qualquer um preso por infração de fiança, antes de mais nada, não teria sido condenado a 50 semanas, como ele foi. Poderiam receber uma multa ou um mês, no pior dos casos. Mas é claro que isto, agora, significou uma extradição, um caso com todos esses encargos ridículos vindos de uma acusação na Virgínia. Mas Julian, como indivíduo, o que sempre me chocou, é que ele é exatamente o oposto da imagem que seus detratores relatam. Ele tem um intelecto aguçado, então é muito inteligente, evidentemente.
Ele é muito engraçado e divertido. Sempre dou risadas com ele. Nós, inclusive, conseguimos rir da última vez em que o vi na embaixada, quando tinha um monte de câmeras na sala, e trocamos anotações em que tínhamos que cobrir o que aquilo que estávamos escrevendo.
Ele deu um jeito de rir disso. Então ali você tem um tipo de humor seco, quase humor negro, ao mesmo tempo em que ele é uma pessoa muito apaixonada; mas sua resiliência é o que sempre me deslumbrou. Já tentei me imaginar no lugar dele, e não consegui. Quando o vi na cadeia, e tivemos que nos sentar na frente um do outro, eu estava com mais um casal. Um de nós deu a volta ao redor da mesa, só para ficar mais perto dele, quando foi impedido pelos seguranças. Esse tipo de situação é o que uma pessoa que não cometeu nenhum crime — sim, ele cometeu o crime do jornalismo — tem que aturar.
Com apenas um mês do novo governo o parlamento israelense vive um caos político e votou por sua própria dissolução. O primeiro-ministro interino, Benjamin Netanyahu, não conseguiu unir os partidos de direita, a fim de controlarem maioria das 120 cadeiras parlamentares, mesmo depois de ter conquistado sua quinta vitória nas urnas.
A crise no governo começou após um impasse entre os judeus ultra-ortodoxos e os militares, que insistem em manter a obrigatoriedade do serviço militar para todos os jovens Israelenses, inclusive os ortodoxos que eram liberados desde a fundação do estado até 2017, isso é um total desrespeito a ideologias e crenças, pois,mesmo que discordem da posição do seu governo em relação aos conflitos com os palestinos, ainda assim devem se alistar aos 18 anos de idade e servir por 2 anos para mulheres e 3 para homens, alem do serviço de reserva também obrigatório.
Vale lembrar que um novo processo eleitoral pode retardar no supremo tribunal o julgamento do primeiro ministro, que é acusado de fraude e suborno. Netanyahu tentou conseguir imunidade a si mesmo nos julgamentos além de aceitar presentes e distribuir favores políticos é frequentemente denunciado por censurar a imprensa. Sua mulher, Sara, é julgada por fraude e Seu filho, Yair, 27, foi banido do Facebook por propagar discurso de ódio contra palestinos e muçulmanos.
Caio Clímaco, cientista do Estado e mestrando pela Universidad Bolivariana de Venezuela (UBV)
Caracas – Após as seguidas derrotas que deixaram a oposição venezuelana debilitada e dividida, Juan Guaidó enviará a Oslo, na Noruega, representantes que iniciarão com o governo – democraticamente eleito – de Nicolás Maduro uma nova roda de diálogos, que buscará dirimir os conflitos entre oposição e governo.
O primeiro encontro está marcado para a próxima semana e ocorrerá em um cenário bastante tumultuado para Guaidó. Embaixadores fictícios que ele mesmo nomeou e representantes de países aliados, tais como Colômbia e Brasil, afirmaram que não sabiam da negociação e se sentiram surpresos.
Guaidó já havia afirmado que não era possível manter qualquer tipo de diálogo com a “ditadura chavista”.
A nova tentativa de acordo entre o governo de Nicolás Maduro e o principal setor da oposição venezuelana, representada pelo primeiro presidente autoproclamado da história venezuelana, Juan Guaidó, pode marcar o fim de mais um ciclo de táticas erradas que foram utilizadas por esse setor da oposição venezuelana.
De 2014 pra cá já foram três rodas de diálogo – públicas – entre governo e oposição, a última foi entre o final de 2017 e início de 2018, terminando com um acordo firmado entre as partes. No entanto, momentos depois, a oposição venezuelana, representada nas conversas por Julio Borges, do partido Primero Justicia, cedeu à pressão dos EUA desfazendo o acordo e, portanto, ficando de fora das eleições presidenciais de 2018.
Agora, em 2019, o setor mais fortalecido da oposição venezuelana se encontra mais uma vez contra a parede. Depois de se autoproclamar presidente interino da República Bolivariana da Venezuela no dia 23 de janeiro, Juan Guaidó não foi capaz de se fortalecer tal como planejou. Apesar de ter o “apoio” de mais de 50 países, Guaidó não foi reconhecido por potencias como China e Rússia, e países como México, Uruguai, Itália e Grécia. Além disso, o encarregado para os assuntos da Venezuela, Elliot Abrams, dos EUA, reconheceu recentemente em uma entrevista que “Guaido é presidente interino mas é Maduro que segue exercendo o poder”.
Os ataques ao sistema elétrico da Venezuela, que deixaram a população por mais de 15 dias sem luz em março, não tiveram as consequências que a oposição chegou a imaginar. Esperava-se gerar desordem, ódio e confusão na sociedade venezuelana a fim de criar as condições para uma revolta, mas o que se viu foram grandes demonstrações de espírito de solidariedade. Queriam gerar o ódio, mas a maioria esmagadora dos venezuelanos optou pela empatia. As feridas das guarimbas (manifestações violentas), promovidas pelos movimentos da direita radical venezuelana, ainda estão bastante vivas no imaginário dos venezuelanos. Ficou parecendo que a sociedade não buscava um outro período tão violento como esse, quando o fascismo se expressou de forma nua e crua matando mais de 130 pessoas só em 2017.
A “etapa final” da chamada “Operación Libertad”, convocada por Juan Guaidó no fatídico dia 30 abril, acabou resultando em um fiasco e em posições contraditórias dentro do governo de Donald Trump, que foi obrigado a recuar com seu habitual discurso de guerra.
O esperado apoio diplomático não chegou do Grupo de Lima, nem da ONU e nem da OEA. Guaidó teve apoio, mas não foi capaz de chegar a um consenso nem mesmo com os próprios líderes da direita latino-americana sobre uma invasão ao território venezuelano.
O apoio convicto dos EUA tampouco chegou. Apesar de possuir um discurso fortemente belicoso, Donald Trump é, acima de tudo, um homem de negócios e utiliza do poder do Exército norte-americano para pressionar politicamente seus adversários políticos. Trump é um seguidor de Chalmers Johnson, ex-funcionário da CIA, que afirma que a política imperialista dos EUA o expõe a perigosas repercussões, gerando um ressentimento que é contraproducente. Ao afirmar que o seu assessor de Segurança Nacional, John Bolton, está buscando envolvê-lo em guerras, Trump deixou claro a sua insatisfação e demonstrou não estar convencido da necessidade de uma guerra nesse momento, uma vez que o ano de 2020 será de eleições presidenciais e isso poderia contribuir para diminuir ainda mais sua popularidade.
Depois de ferir a Constituição autodeclarando-se presidente da Venezuela, incitando a violência e tentando realizar um golpe político assediando as forças armadas contra um governo democraticamente eleito, Juan Guaidó ficou exposto a uma realidade bastante delicada e só não está preso porque o governo de Maduro está fazendo o possível para não utilizar essa carta nesse momento, sob pena de sofrer ataques, ameaças e sanções ainda mais fortes dos EUA. Guaidó se vê agora sem peças fortes para manipular no tabuleiro de xadrez. Está cada vez mais desidratado, tendo diminuída a sua capacidade de convencimento e mobilização. Restou buscar apoio na Noruega, país que se posicionou contra a posição da União Europeia, não reconhecendo Juan Guaidó como o presidente legítimo da República Bolivariana da Venezuela.