O feriado do 7 de setembro em Florianópolis não foi comemorado nem repudiado pelos movimentos sociais nas áreas nobres da cidade, como de costume. Neste ano, o Grito dos Excluídos deixou as avenidas planas para as autoridades desfilarem em seus carros fechados e os militares exibirem seus aparatos de opressão das minorias. O movimento preferiu gritar contra a exclusão do alto do Morro da Cruz e celebrar o amor à pátria junto com os jovens e comunidades assolados diariamente pela violência e pela ausência de políticas públicas.
Com o aumento da pobreza e do assassinato de jovens, entidades sociais, políticas e religiosas decidiram se reunir na sede das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no Monte Serrat, para fazer um grito verdadeiro ao lado dos excluídos. Foi uma manhã ensolarada de quase verão, que encheu esse lugar perto do céu de esperança e fraternidade. O manifesto enfocou a luta contra a criminalização e extermínio dos jovens negros das periferias: foram 60 mil jovens assassinados pelos aparatos de repressão no ano passado no Brasil, conforme o Mapa da Fome.
Crianças, adolescentes e jovens tiveram um dia de acolhimento e valorização
De janeiro a junho deste ano, 115 jovens já foram assassinados somente na capital catarinense, tanto pela violência policial quanto pela ausência do Estado, acentuou o padre Vilson Groh, que acolhe cinco mil jovens em situação de risco em um instituto social de Florianópolis. “O Estado não tem políticas públicas juvenis e o resultado disso é a tragédia do extermínio”, afirmou o padre, que integra a coordenação das CEBs. “Se continuarmos assim, em 2050 serão 2 mil 750 jovens assassinados”, alertou, criticando o Estado por apostar mais no encarceramento e na punição do que em ações de educação e valorização do jovem.
Em oposição ao que o padre chama de processo histórico de marginalização, que só faz alastrar a violência e o tráfico, as entidades conseguiram criar no terreno da Caixa d’água, um momento onírico de fraternidade. Ali, num dos pontos mais altos da cidade, onde se tem a vista magnífica da Ilha banhada pelas Baías Sul e Norte, realizaram a Oração do Pai Nosso dos Mártires, ou extra-oficialmente, o Pai Nosso dos Pobres e Marginalizados, pedindo coragem contra a violência e as injustiças sociais. Da oração, os manifestantes passaram ao grito do Fora Temer, mostrando que a atitude religiosa não se separa do gesto político.
Marcos Pinar, da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias anunciou a fundação da Rede de Direitos Humanos pelo Fim da Violência e pela Construção das Políticas Públicas, criada em 19 de agosto, que vai dar amparo, solidariedade, apoio psicológico às pessoas que sofrem violência do Estado e também exigir o cumprimento das políticas públicas: “Estamos passando por uma ditadura oficiosa, sem políticas para a juventude das periferias, em que o trabalhador está perdendo todos os seus direitos, incluindo o de se aposentar. Então precisamos nos unificar. São os excluídos gritando literalmente para não serem engolidos, exigindo a volta da democracia e das políticas públicas no país”.
Uma grande tenda coberta de toldo branco protegia os participantes do sol e servia de palco para apresentações de poesia, teatro, artes plásticas. Todos trouxeram guloseimas para café da manhã solidário, que começou às 9 horas e foi até às 14 h, com a participação de cerca de 200 representantes de entidades. Servido em uma grande mesa sobre a grama, o lanche foi embalado por música popular e samba de raiz com o Grupo Tradição. Orientadas pelo arquiteto popular Loureci Ribeiro, as crianças e adolescentes foram estimulados a confeccionar faixas em que pediram reforma urbana, o fim da violência e do feminicídio. E também Fora Temer. O Grupo Teatro do Oprimido, integrado por mulheres, apresentou uma esquete desmascarando os interesses escusos da Reforma da Previdência.
Grupo Teatro do Oprimido apresenta sátira da Reforma da Previdência
Entre as manifestações artísticas, a palavra ficou livre para o discurso político. A poeta e professora Nana Martins, que dá aula na rede pública estadual na Casa de Acolhimento a Adolescentes de Florianópolis e no Colégio Humanitas, aproveitou para ler seus poemas de resistência e ao mesmo tempo explicar o sentido do Dia dos Excluídos. Segundo Nana, o 7 de setembro não significa nada para os moradores das áreas periféricas. É um fato mentiroso que só trouxe a exclusão, a morte e a pobreza, analisa. “Nós não precisamos de mentira, nós precisamos de nossa história real, aquela de luta que o povo negro fez no Brasil”. Em contrapartida, o Dia dos Excluídos é “uma oportunidade para as mulheres negras denunciarem a exclusão histórica que sofrem, sempre ameaçadas pela morte de seus filhos, companheiros e irmãos”
As manifestações do 23° Dia dos Excluídos em Florianópolis foram fruto da união entre a Frente Brasil Popular, União Florianopolitana de Entidades Comunitárias, Tenda da Democracia, Movimento Ponta do Coral e Rede de Resistência e Lutas. Enquanto no morro ocorria essa aliança amorosa entre trabalhadores, militantes e minorias, lá embaixo, na Passarela Nego Quirido, as autoridades e militares celebravam, no espaço do Carnaval, a falaciosa independência de um país que tem sua soberania eternamente sabotada. Algumas faixas penduradas no aterro da Baía Sul pediam intervenção militar. Mas no Morro do Céu, uma chuva de balões brancos com os nomes dos jovens assassinados encerrava o Pai Nosso Revolucionário, simbolizando a luta pela paz e pela volta da democracia.
Os leitores de hoje têm mais fome de realidade do que de ficção? Essa pergunta dirigida aos debatedores estrangeiros da Festa Literária Internacional de Paraty saiu do painel “Trótski e os trópicos” sem uma resposta contundente. Mas tudo o que aconteceu na 15ª edição do evento, encerrado neste domingo (30/07), mostra que escritores e leitores brasileiros tendem a ver a literatura, mais do que nunca, como um espaço privilegiado para a tomada de consciência da realidade do país. Com Lima Barreto, mas não só com ele, se aprende que realidade e ficção não formam uma oposição, mas dois elementos inseparáveis na compreensão do jogo político pelas artes. Esse parece ser o grande recado da quinzenária Festa Literária, que debutou este ano, por força do duríssimo cenário político brasileiro, no mundo das lutas sociais.
A reverência tardia à obra e à vida do escritor negro, pobre e anarco-comunista Lima Barreto foi o gatilho que faltava para colocar o racismo à frente de qualquer outra tragédia contemporânea, como a mácula vergonhosa deste tempo que a literatura ensina a não mais admitir. E em nome do racismo, todas as formas de exclusão social contra pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, jovens das periferias foram tratadas como questões caras e urgentes nessa grande assembleia literária pela qual passaram mais de 50 mil pessoas, segundo os organizadores.
Do professor que fazia seu protesto contra o fechamento de escolas públicas no Rio de Janeiro na abertura do FLIP ao mero ouvinte, do pesquisador história e literatura ao leitor curioso; do biógrafo e escritor ao ativista social: todos de alguma forma inscreveram na FLIP seu brado contra a persistência dessa ferida colonial no Brasil moderno. Todos o fizeram com brilhantismo, como Conceição Evaristo, ao denunciar o retardo que a associação do racismo ao machismo produziu no seu ingresso, e no de outras escritoras negras, no campo da literatura. Ou como o historiador baiano João José Reis, que se manifestou contra a perda das cotas raciais nas universidades como uma tentativa do governo ilegítimo de travar a escalada vitoriosa de acesso de negros à educação superior.
Público subverteu modelo elitista dos auditórios, concentrando-se no espaço dos não-pagantes, onde as manifestações eram mais efusivas
No mesmo caminho, a antropóloga Lilia Schwarz chamou a atenção para a espantosa atualidade da literatura de Lima Barreto na denúncia à hipocrisia e à crueldade da sociedade da República velha, representada pela Academia Brasileira de Letras, na figura do pernóstico Coelho Neto, baluarte do pensamento conservador na época. Um Lima Barreto é muito pouco para lutar contra a permanência desse Brasil de ontem. “Para combater esse horror precisamos de muitos mais Limas e menos Coelhos Netos”, lacrou o teórico Antônio Arnoni Prado, um dos primeiros pesquisadores de Lima.
Nas árvores, os caiçaras protestam contra o roubo das águas de Paraty
Michel Temer é, para Arnoni, a expressão mais acabada dos personagens do Brasil corrupto e escravagista desenhado pelo autor. Político arrogante e empolado, adepto às mesóclises e avesso às camadas populares, que chegou onde chegou sem outro mérito a não ser pertencer às elites que tomaram o poder. Na mesma linha da historiadora Beatriz Resende, a jornalista e pesquisadora Luciana Hipólito, autora de “Literatura de urgência: Lima Barreto no domínio da loucura”, chegou a afirmar que se tivéssemos ouvido mais essa voz negra da literatura nos primeiros anos do século XX, e aprendido com ela, não teríamos chegado ao horror da realidade de hoje.
Muitos outros palestrantes fizeram manifestações políticas semelhantes e foram apoiados pela maioria do público em todos os espaços de debate e encenação artística. Mas foi uma professora de escola pública do Paraná que tomou a palavra para fazer a literatura oral mais eloquente e perturbadora dos cinco dias de intensiva assembleia literária. A voz anônima surgiu num corpo negro de cabelos brancos no meio da plateia, como o espasmo de um soluço. Foi essa neta de escravos, filha de uma mãe pobre, que lavava roupa em troca de lápis, caderno ou qualquer material escolar para que os filhas pudessem estudar, a narradora mais potente do maior evento literário do Brasil. Diva Guimarães, como ela se identificaria ao final, a pedido do ator Lázaro Ramos, fez do testemunho político de sua vida a mais literária e sincera narrativa.
Ao tomar a palavra, desculpando-se pela ousadia e prometendo ser rápida, Diva se disse profundamente tocada e encorajada pelo painel do dia anterior, no qual “as moças contam que escrevem em homenagem as suas mães”. Diva assistiu à mesa “Em nome da mãe”, com a escritora Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de ruanda, que criou no livro “A mulher de pés descalços”, um sepultamento simbólico de papel para dar um ritual imaginário de morte à mãe. A ruandense compartilhou sua história com a brasileira Noemi Jaffe, autora de “O que os cegos estão sonhando”, obra criada a partir do diário da mãe, uma sobrevivente do holocausto nazista. Ambas disseram que escrevem para suportar a dor.
Diva se sentiu “profundamente tocada” com o gesto das moças e também achou que tinha o dever de se levantar no meio da multidão, enfrentar a dor e a timidez e ser mais forte do que o próprio pranto para reverenciar a sua mãe preta de pés descalços. “Eu também sobrevivi e sobrevivo como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, que passou todo tipo de humilhação para que nós estudássemos”. Por isso ela lutava de cabeça baixa para controlar a comoção que o testemunho lhe causava: tinha de ser forte para cumprir até o fim a sua homenagem diante daquela multidão toda de leitores. Com os olhos faiscantes da insurgência dos humildes, contou que ela e outras meninas foram recolhidas no interior do Paraná por uma missão da Igreja a pretexto de ir estudar em Curitiba, e antes de completar cinco anos, se tornou uma escrava das freiras católicas num colégio interno.
E por que Diva foi capaz de levar às lágrimas e de levantar para aplaudi-la vigorosamente a plateia em peso do auditório da Praça, incluindo o próprio Lázaro Ramos, que falava sobre a própria experiência como negro no painel “A pele que habito”? Por que ela, mais do que qualquer um dos 44 sábios oradores e especialistas mobilizados pela feira, produziu essa tomada venal de consciência que só a literatura é capaz de provocar, segundo Lima Barreto?
Certamente porque na voz dessa senhora ao mesmo tempo trêmula e destemida, que chegou a ser amparada para prosseguir no seu jorro de fala, a literatura e a vida tenham se reunido novamente. Na sua boca, a literatura, sempre utilizada pelos esnobes para marcar a linha divisória entre as classes, finalmente mostrou sua potência de arrebatar as almas e de promover a solidariedade entre os homens, como propunha Lima Barreto em seu manifesto por uma “literatura militante”. Por que a sua narrativa singela e vigorosa foi tão comovente?
Talvez porque nela se materialize aquilo que Conceição Evaristo, entrevistada por Ana Conceição Gonçalves no painel “Amadas”, que encerrou a programação na tarde de domingo, chamou de “arte da escrevivência”. Com esse neologismo, a autora de “Um defeito de cor” e “Insubmissas lágrimas de mulheres” quer nomear a literatura brotada e talhada da própria vivência ou da própria sofrência dessas vozes brasileiras escreventes.
Como se fosse uma das “amadas” saídas dos romances de Conceição, Diva revelou que conheceu a discriminação aos seis anos, quando as freiras do colégio interno contaram a história que explicaria a pele escura de uns e clara de outros. Para quem foi “recolhida no mato”, como ela, as freiras diziam que quando o mundo começou, deus criou um rio e mandou todos tomarem banho, “naquela água abençoada do maldito rio”, diz dona Diva com a autoridade de seus 77 anos de opressão, sem esconder a rebeldia. Então, todas as pessoas inteligentes e trabalhadoras que se esforçaram para chegar ao rio conseguiram se lavar e ficaram brancas. “Mas nós, como negros preguiçosos” – e ela interrompe, bate no peito e bufa de dor e se cala por uns instantes eternos, calma Diva, calma Diva e continua, sob os aplausos que tentam encorajá-la – “nós chegamos no final, quando todos já tinham se banhado e só havia lama”. Então, os negros só tiveram tempo de lavar a palma das mãos e a sola do pés. Por isso, concluiu ela, erguendo para a plateia a palma das mãos, e afirmando o que os olhos arregalados de torpor desmentiam, “porque somos preguiçosos, temos apenas essas duas partes do corpo claras”.
Diva arrancou essa dolorosa narrativa do fundo de um espasmo, como se no instante mesmo da sua fala, ela e toda a multidão da FLIP, ela e todas as meninas e meninos negros e pobres escravizados pelas igrejas no interior do Paraná vivessem o horror de um segredo revelado.
O testemunho de Diva Guimarães insurgiu na multidão da FLIP, assombrando os leitores como um romance sobre luta e opressão que provoca por dentro um silencioso furacão
Mas a fábula racista sobre a cor negra, que muitos brasileiros ouviram nas escolas regidas por brancos, não convenceu a menina Diva. “Se fôssemos preguiçosos, não teríamos sobrevivido. Se o Brasil existe é porque os meus antepassados o construíram”. Estimulada pela mãe, ela estudou mais do que era devido a uma menina pobre. Sempre que pensava em desistir da escola por causa do racismo, era vencida pelo argumento da mãe de que se não estudasse teria o mesmo destino dela. Quando se formou em Educação Física e se tornou professora da rede pública de Curitiba, em plena ditadura, ensinou o mesmo aos seus alunos: que deveriam estudar se quisessem ser livres. Por isso foi perseguida e combatida: “Eu era considerada uma subversiva!”. Ela, que teve o direito à infância roubado, que teve a liberdade usada como moeda de troca para estudar, tornou-se uma defensora ferrenha da educação pública e nunca mais parou de estudar. “Eu sou uma sobrevivente da educação e sou uma sobrevivente da luta”, afirmou Diva, inconformada com o fato de o governo do Paraná ter cortado a bolsa dos cotistas negros, que recebiam R$ 400,00 para se manter nas universidades.
Ao desnudar a violência do racismo desencantando a lenda da diferença, a professora paranaense aposentada deu a resposta exata à questão inicial. Mostrou que ficção e realidade sempre caminharam juntas, seja para separar a humanidade imiscuindo nas histórias a ideologia da dominação, ou para libertar os povos oprimidos com a narrativa da resistência. Toda literatura digna de ser chamada como tal busca a verdade coletiva de um povo – ou como disse a repórter-escritora argentina Leila Guerriero, não existe literatura que não se refira à realidade. Prenhe de vigor estético e apuro ético, o depoimento da professora negra viralizou na internet e nas redes sociais. E segue impactando muitos mais leitores do que a FLIP teria capacidade de reunir no elitizado auditório da Igreja Matriz ou mesmo na tenda de projeção.
A COLETIVA DE ENCERRAMENTO
Curadora Josélia Aguiar, à esquerda, pediu que coletivos negros e ativistas sociais não deixem a FLIP caso próximo homenageado não seja negro
Numa entrevista coletiva fria e burocrática, com poucas perguntas e respostas curtas e evasivas, a equipe responsável pela organização da 15ª FLIP fez o balanço de encerramento para cerca de 20 jornalistas. A mais entusiasmada, a curadora Joselia Aguiar, falou rapidamente, se disse feliz com os resultados, destacou os ganhos com a diversidade e se retirou antes do término para participar das mesas de encerramento. Nem ela, nem o diretor presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, pareceram conscientes da revolução que ocorreu no evento por conta do espaço rasgado pelas minorias políticas, com a acolhida de sua própria direção.
A primeira pergunta veio questionando se o tom político da feira era determinado pelo momento brasileiro atual e se tenderia a persistir nos próximos eventos. Tanto Joselia quanto Munhoz procuraram neutralizar as manifestações contra Temer, contra o extermínio de jovens negros pela polícia, o aprofundamento do racismo e o corte das cotas, o atraso no pagamento dos salários de professores no Rio de Janeiro ou o fechamento de escolas. Ambos argumentaram que era natural os painelistas se posicionarem a partir das demandas do público. Mesmo os estrangeiros se manifestaram contra Trump, no caso do escritor jamaicano Marlon James e do poeta estadunidense Paul Beatty, como lembrou Josélia. Antes de sair, a curadora deixou no ar um pedido que soou ambíguo como uma ameaça velada numa calorosa acolhida: “Quero pedir aos coletivos negros e ativistas sociais que permaneçam para sempre na FLIP, mesmo caso o próximo homenageado não seja uma mulher ou não pertença a uma minoria”.
O diretor da fundação que patrocina o evento reafirmou que a feira economizou R$ um milhão com o novo formato, eliminando a grande tenda gigante próxima ao canal, as oficinas, a biblioteca na Mangueira e as iniciativas descentralizadas em municípios mais carentes para concentrar todas as atividades no centro de Paraty. “Antes tínhamos um país que estava se expandindo e a FLIP tinha esse movimento de descentralização da cultura. Agora vivemos em outro país que precisa se concentrar e se fortalecer pra voltar a pensar nesses projetos mais complexos que dependem de mais investimento público”.
Debates ao vivo dentro do auditório da Igreja Matriz foram muitas vezes preteridos pelo público, que preferiu a projeção na praça
Com um discurso conformista, defendendo a “adaptação da feira aos novos tempos”, Munhoz insistiu no sucesso do auditório para pagantes na Igreja Matriz, onde se concentraram a maioria dos paineis “ao vivo”. Garantiu que todos os 400 ingressos para cada uma das sessões foram vendidos e utilizados, embora todos tenham testemunhado o esvaziamento progressivo desse espaço privatizado em favor do crescimento da audiência gratuita na tenda de projeção. Em torno dela o público chegou a pelo menos menos duas mil pessoas em vários momentos, ultrapassando em muito a lotação de 700 lugares com cadeiras fixada por ele. Isso significa que o próprio público subverteu o modelo elitista e a separação dos auditórios ao se manifestar de forma muito mais efusiva e espontânea no local de livre acesso. Apesar disso, Munhoz afirmou que o espaço intimista será mantido porque é “mais adequado para determinados tipos de paineis”.
Ao final de sua mesa, Conceição Evaristo afirmou que mulheres e negros fizeram a ocupação da FLIP e não pretendem mais sair dela. “Vai ser muito difícil voltar atrás e nos tirar daqui, porque não sairemos mais”. Para outro grande estudioso de Lima, o professor da UFMG Edmilson de Almeida Pereira, poeta e especialista na diáspora africana no Brasil, o espaço foi uma conquista dos movimentos sociais que qualificou o evento. “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, lembra o pesquisador. Muitas vezes os painelistas e artistas referenciaram Rafael Braga, Ricardo Nascimento e Jonathan Bidoia Neres e os jovens negros presos, torturados ou mortos pela polícia de extermínio. “Essa dimensão política da arte sempre esteve presente e tende a se agudizar com o estado de exceção no país”, sustenta Edmilson.
“Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, afirma o pesquisador Edmilson de Almeida Pereira
O melhor emblema de tudo isso talvez seja a performance multimidiática “Fruto estranho”, apresentada pelo ator e poeta Ricardo Aleixo, na abertura do evento, a partir da mistura de fragmentos de textos de Lima Barreto e de sua própria lavra. A imagem de um artista como um livro vivo onde a pele é a própria escritura do mundo evoca esse movimento de hibridização com as lutas sociais. Se o negro é uma invenção do branco, como diz o poema, cabe a literatura reinventá-lo como uma fabulação de si e por si.
TROPEÇANDO NAS RUAS DA LITERATURA
Pelas ruas de Paraty, a literatura que todos os anos enche a cidade da algazarra dos diferentes acentos e línguas, de poesia, dança, música, teatro e livros, tropeça na escravidão em cada pedra do calçamento antigo, em cada construção que presentifica suor e sangue negros derramados. Ainda que queira, os olhos da escritura não podem se desviar do trabalho infantil em torno da presença dos turistas. A literatura do testemunho, que arrebatou o público nesta edição da FLIP, não pode mais ignorar os sobreviventes contemporâneos dos extermínios que desfilam diante dos olhos dos turistas.
Não basta abrir um painel na programação para reconhecer a presença exótica de caiçaras, negros, quilombolas, indígenas: é preciso dedicar a eles toda a produção intelectual e artística brasileira. Eles não formam uma parte ou uma “aldeia” da literatura, mas são os verdadeiros anfitriões da festa como protagonistas da cultura nacional. E isso vale também para as centenas de coletivos de jovens artistas das tribos urbanas de todo o país que, atraídos todos os anos para o evento, fazem seu trabalho nas ruas de Paraty. São eles que trazem as artes para a plenitude da vida, promovendo saraus de literatura periférica, rodas de batuque, manifestos de poesia marginal, varais literários que aproximam a arte do povo, como fez Paulo Leminski ou Lindolf Bell. Eles continuam totalmente à margem da programação da feira.
Depois de atingir 15 anos, a FLIP não pode mais ignorar a literatura dos Guarani Mbya sobreviventes da dizimação, que expõem seus artesanatos nas calçadas, sob pena de construir um evento tão fake quanto uma cidade onde tudo gira em torno do turismo. Os milhares de forasteiros que se esbaldam todos os anos nos restaurantes e hoteis de Paraty não podem continuar esquecendo que os primeiros habitantes desse paraíso estão em plena luta por território. E ainda são acusados de serem “índios falsificados do Paraguai” numa cidade onde tudo – praias, moradores, pratos típicos, danças, ritmos musicais – carrega nomes como Janaína, Catimbau, Cajaíba, Cachadaço, Saco do Mamanguá e cateretê.
Antes tarde do que nunca, os amantes das letras se depararam também com as manifestações políticas e culturais dos quilombolas do Campinho da Independência, que estão em luta por seus direitos. Viram os estudantes cotistas protestando contra o prefeito de Paraty, Carlos José Miranda (PMDB), que suspendeu o transporte público para a universidade dos municípios vizinhos. E os caiçaras denunciando o roubo da água natural para engarrafamento e comercialização a preço de ouro. Ao mesmo tempo que reconhece a conquista de um espaço cultural e intelectual dominando pela identidade masculina e branca, a jornalista Tatiana Carvalho Costa, integrante do coletivo Elas Pretas, de São Paulo, que está em Paraty fazendo um filme sobre a obra de Ricardo Aleixo, se sentiu constrangida com o assédio às mulheres negras. “Pessoas se aproximam da gente, como se nossa presença na feira fosse algo extraordinário, como se o nosso corpo negro fosse um lugar de expiação do sentimento de culpa”.
A verdade mais nua e crua sobre o impacto negro na festa das elites, quem disse foi ela, dona Diva: “Aparentemente tivemos uma libertação que não existe até hoje”. Já na abertura, uma enorme faixa do Sindicato Estadual dos Profissionais na Educação do Rio de Janeiro, protestando contra o sucateamento da educação pública, recomendava que os participantes da FLIP lessem a obra de Lima Barreto para entender a realidade brasileira atual. Ao final a faixa exclamava: “Salve Lima Barreto!” Salve também Diva Guimarães e todas as negras e negros que rasgam seu lugar na literatura. Subversivas e subversivos!
Eu sou uma mulher de sorte. Esta afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras nem pronuncio.
Acontece que fui a Cachoeira turistar com familiares e à noite resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Ângela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente as vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Ângela. É Ângela. Ela saiu de casa. Ela está vindo.”
E quem é que vem para a mesma calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Ângela, sem sobrenome, porque passou a ser da família. Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e da amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.
Conversa vai, conversa vem, uma filha do Rei de Oyó postada à cabeceira da mesa iniciou, com Ângela, um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui mencionada, convidada, e me resignei ao silêncio observador. Cada qual reinando no seu reino.
Alguém, creio que a própria Ângela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Ângela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem. Quem responder “ao lado de Cidinha da Silva”, ganha um doce.
A primeira sensação quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: O que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar. As anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade falaria algo.
Angela Davis no Brasil. foto: Forum Anarquista Especifista em: https://www.facebook.com/faebahia/photos/a.684794088222670.1073741828.684778788224200/1393549037347168/?type=3
Ângela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como estava? Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas que vinha ao Brasil. Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia, ou talvez (sou otimista) se lembrasse da minha frazezinha-clichê, que, vamos combinar, já era a terceira-vez que eu dizia a ela.
Ainda na linha simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, havia ido lá encontrar uma companheira de Geledés, participante do encontro. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom que nunca o trouxe e como as batatas fritas de Ângela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicita. Sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.
Bem, essa prosopopéia toda foi para justificar porque sou uma mulher se sorte, uma legítima filha do Rei. Mas, o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Ângela Davis que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas deixou-a em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando se tratar da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.
Então, mais uma vez, Ângela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou que não estava num ponto alto da calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”
Na última sexta-feira (07/07/2017) aconteceu a primeira comemoração do Dia do Funk em São Paulo. Com ares de ato sócio-político em defesa do gênero musical e homenagem ao MC Daleste, morto na mesma data em 2013, a festa aconteceu na Morada da Liga, casa da organização social Liga do Funk, reunindo MC´s, produtores e fãs do estilo para fortalecer o Funk como movimento cultural.
O estilo musical que vem cada vez mais tomando conta das festas da classe média brasileira tem sua origem nas comunidades periféricas a partir de adaptações do Funk norte americano e mesclas com o ritmo Miami Bass. A batida dançante foi o que conquistou os brasileiros e parte da população viu nesse estilo a possibilidade de cantar suas vivências, as letras de funk brasileiras são marcadas pelas referências à vida na periferia, muitas falam sobre a criminalidade vista do lado de dentro, uso de drogas e sexualidade de forma explicita.
Esse tipo de letra incomoda pessoas que entendem o funk como um incentivador da criminalidade e da prática sexual irresponsável, que enxergam os bailes como um recrutamento de pessoas dispostas a cometer e participar de atos criminosos, como especifica o empresário Marcelo Alonso em sua proposta de criminalização do funk, publicada no site de participação política popular, o e-cidadania e encaminhada ao senado em maio deste ano, após ter recebido mais de 20 mil assinaturas.
O movimento cultural do Funk reagiu a esse projeto e vem se empenhando em mostrar que o ritmo musical é muito mais do que isso, é impossível negar o apelo sexual e a relação das letras com situações ilegais, mas existem muitas coisas positivas no funk que se sobressaem e colocam sua proibição como censura e mais um avanço do conservadorismo e do ódio às classes populares. O Funk atualmente emprega centenas de pessoas e mudou a vivência da periferia, é no funk que muitos que desejam deixar a criminalidade se encontram, além do simples direito à diversão, que por décadas foi negado a essas pessoas que não tinham acesso a nenhum aparelho cultural. Com a chegada dos bailes funk essa construção acontece de dentro para fora, criada na periferia, para a periferia e chamando a atenção de quem não vive ali e dos poderes políticos.
Quanto a problematização das letras, os próprios funkeiros entendem a necessidade de debater sobre isso e vem se articulando para tal, sempre entendendo que as letras são diretamente relacionadas à vivência de cada um e aquilo que é cantado caminha junto com a qualidade de vida em que essas pessoas se encontram. Fala-se do tráfico pois é isso que é vivenciado, fala-se da pratica sexual de forma irresponsável porque a educação sexual ainda não chegou de forma responsável na vida dessas pessoas. A questão colocada é se vale a pena proibir ou educar? O movimento cultural do funk aposta em educar, organizações como a Liga do Funk se preocupam em orientar os tantos jovens que sonham ser MC e dar a eles oportunidades de aprendizado que abrangem os estudos musicais, mas também os sociais.
Um grande avanço na luta contra o preconceito vivido por esse movimento é a instauração do Dia Estadual do Funk, que já é comemorado nos estados do Rio de Janeiro e do Espirito Santo e teve sua primeira comemoração no Estado de São Paulo em 2017, após sua aprovação em novembro de 2016. O projeto de lei foi apresentado pela Deputada Estadual Leci Brandão após a morte do MC Daleste e tantas reações que consideraram o assassinato positivo. O texto apresentado pela deputada na Câmara ressalta a inclusão da data como uma forma de lutar contra a discriminação sofrida por esse público e seus artistas.
A escolha do dia 7 de julho está diretamente ligada a morte de Daleste, que foi baleado em 2013 enquanto se apresentava na cidade de Campinas, no palco, com mais de mil espectadores. O caso foi arquivado sem resolução. Para tornar esse dia um misto de homenagem, resistência e festa, a Liga do Funk promoveu em sua sede a comemoração da data que contou com apresentações de MC´s, poetas, discursos saudosos, participação da família de Daleste e a inauguração do projeto “Morada da Liga” que dará formação intensa para pessoas que desejem se envolver profissionalmente com o mundo do funk.
Taís Di Crisci, é socióloga e cofundadora da GICA TV
Veja entrevista com Bruno Ramos da Liga do Funk e a Deputada Estadual Clélia Gomes sobre a “Lei do Funk”
O terreno íngreme, de pedras soltas, e chão de terra batida contrasta com a grandiosidade dos arranha-céus que vigiam a comunidade do Moinho. Encostada nas linhas do trem da CPTM, que liga o centro até a cidade de Jundiaí, passando pelo extremo noroeste da cidade e as cidades dormitórios da Grande São Paulo.
O vai e vem dos trens, levando gente apressada, cristã e de bem, que volta o seu olhar vazio para aquelas pessoas que estão vivendo naquelas ruas de chão cor marrom, de casebres de madeira que desafiam qualquer lei da gravidade.
Hora do rush, perto das 18 horas, a comunidade aguarda com ansiedade a chegada do corpo do Leandro, morador da comunidade, que foi brutalmente torturado e assassinado com tiros à queima-roupa pela Polícia Militar de São Paulo. Mesmo com o episódio de violência que ocorreu um dia atrás, as vielas e becos estavam repletas de crianças a brincar; nos comércios a normalidade de um dia como outro qualquer; nos botecos pessoas bebem.
A comunidade é um organismo vivo, e mesmo com a morte de um dos seus, ela se mantém viva. Como sempre, as crianças retornam aos seus lares depois de um dia de escola. Como todos os dias, o apito das panelas de pressão sinaliza: a hora da janta se aproxima.
Histórias de violência parecidas com a Leandro se confirmam em relatos, como de uma senhora que teve o irmão, com 15 anos, perfurado pelas balas de policiais.
A violência policial dirigida à comunidade do Moinho não é de hoje, já acontece há muito tempo, assim como os incêndios que tentam “limpar” aquela área central das vidas, histórias, comércios, bares e igrejas que a habitam. Há uma sociedade entre os trilhos do trem que persiste e resiste há anos.
Com o avançar da noite, moradores transitam para lá e para cá, na busca de notícias sobre a chegada do Leandro no Moinho, mas dessa vez não é como das outras vezes, quando ele chegava cumprimentando a todos, respeitando as meninas, ou pedindo um cigarro para o marido de uma mulher que vive há mais de 20 anos na comunidade, e que conta com emoção as boas lembranças que tem de Leandro. Dessa vez Leandro estará em um caixão, dentro do carro da funerária municipal.
As horas passam e nada do Leandro. Nos rostos sofridos das senhoras estampava-se a agonia. Parecia que estavam à espera de um filho que fora se divertir e esqueceu da hora de voltar. Nas comunidades, o filho de uma é filho de todas, e dessa forma, a preocupação daquelas mulheres se estabeleceu, o senso de responsabilidade por aquele filho que elas viram crescer entre as ruas do Moinho.
Perto das nove horas da noite, alguns botecos do Moinho estão com pessoas bebendo e assistindo ao jogo do Corinthians, o time de futebol que teve as suas origens nas parcelas estigmatizadas da sociedade, que é o time de favela, que nasceu na favela, e que será sempre de favela.
Homens com corpos tatuados e trajes descontraídos, próximo dos seus 30 anos, bebem em um bar bem próximo à entrada da comunidade. Um deles mostra o jornal do dia aos demais que o acompanham na cerveja. Do dia para a noite, a morte de Leandro trouxe holofotes e visibilidade passageira para o Moinho. Poderiam ser amigos de bar de Leandro, ou de infância. Talvez só se conhecessem de vista, de um oi ligeiro, ou de empréstimo de cigarro.
O jogo já está perto do fim, a notícia se espalha por toda a comunidade: Leandro chegou! Mas sem vida, e dentro de um caixão.
Uma parte da imprensa que estava na entrada do Moinho acompanha a recepção dos familiares de Leandro, mas é impedida de fotografar ou fazer qualquer registro, a família pede para respeitar a sua dor.
A mãe e a irmã choravam e gemiam enquanto acompanhavam o carro da funerária adentrar o Moinho. O silêncio preenchia os espaços, o barulho do trem a passar eternizava aquela cena das pessoas seguindo o carro da funerária
Alguns familiares seguiram para a entrada da capela Nossa Senhora Aparecida, dentro da comunidade. Com uma carroça de materiais recicláveis, bloquearam a entrada das pessoas que não eram do Moinho. A ordem era objetiva: “Primeiro a família”, “respeitem a dor da família”, “ninguém vai lucrar com a morte do meu filho”.
O olhar da irmã da vítima fuzilava todos que iam em direção a capela. Rostos raivosos, olhares revoltados miravam a todos. Dava para para ver a indagação: Nunca estiveram aqui, e agora, o que fazem?
A pastora e algumas irmãs da Assembléia de Deus do Moinho tentavam confortar o coração aflito daquela mãe. A cumplicidade feminina compreende esses momentos de dor –uma irmã consolava a outra. A mãe de Leandro cobrava: “Quero a Justiça de Deus.”
Com o passar dos minutos, os familiares entraram para velar o corpo, e logo depois foram os irmãos e irmãs em Cristo da Assembléia de Deus para realizar o culto fúnebre. A agonia dos que estavam do lado de fora só aumentava. Depois de algum tempo as portas foram abertas.
O sincretismo religioso foi harmônico na cerimônia. Os católicos cederam e os evangélicos conduziram o culto, ao som de louvores da Harpa Cristã e tantos outros popularmente conhecidos, tanto entre católicos e evangélicos. Seja católico ou evangélico, a dor é a mesma, e o remédio é o mesmo: se aproximar de Deus, pois outras esferas não vão resolver.
O pastor em um momento da oração disse com convicção: “Ó Senhor que ouve o clamor do pobre!”, e essa fala toca a todos, pela condição em que estão, por pertencerem a uma sociedade paralela à dos ‘homens de bem’ e do capital. A fé é a utopia que move a esperança por dias melhores, por um dia de sorte que mudará tudo, pelo milagre que retirará cada um ali da atual condição em que se encontra.
Entre louvores entoados aos prantos, alguns pedem para cantar a música da igreja que de Leandro mais gostava, e tem por título ‘Ressuscita-me’, que faz uma analogia com a passagem do Novo Testamento, João 11, quando Jesus ressuscitou Lázaro depois de 4 dias da sua morte.
Em um trecho da música fala: “Remove a minha pedra, me chama pelo nome, muda a minha história, ressuscita os meus sonhos, transforma a minha vida, me faz um milagre, me chama para fora. Ressuscita-me!” Todos cantam encharcados por rios de lágrimas que consolavam e lavavam a alma.
Uma parente de Leandro gritava: “Ressuscita, Deus, o Leandro!”, a irmã caiu em prantos e veio ao chão, como se tudo que estivesse ao seu redor desmoronasse.
O caixão de Leandro estava ao centro da igreja, com uma coroa de flores à direita. Assim como Jesus, que foi marginalizado e torturado antes de ser crucificado, o menino Leandro foi torturado antes dos tiros finais.
No fim da manhã de hoje (30/6), o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou o tucano Aecio Neves a retomar seu mandato como senador pelo Estado de Minas Gerais, ao mesmo tempo em que negou o pedido de prisão preventiva feito pelo Procurador Geral de Justiça (PGR), Rodrigo Janot, contra o mesmo Aecio.
Aecio estava proibido de exercer as funções de senador desde o dia 18/5 pelo ministro do STF Edson Fachin e foi denunciado pela PGR no último dia 2. As acusações são graves: corrupção passiva e obstrução de Justiça. Motivos não faltaram.
Aécio e sua irmã Andrea Neves passaram a ser investigados a partir da delação premiada de executivos da JBS. Eles pediram R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, um dos donos da JBS. O diálogo em que Aécio pede o dinheiro a Joesley foi gravado secretamente pelo empresário, que fechou acordo de delação premiada.
A Polícia Federal rastreou o valor e constatou que parte dele foi entregue por um executivo da JBS ao primo de Aécio Frederico Pacheco de Medeiros, que repassou o dinheiro a Mendherson de Souza Lima, na época assessor do senador Zezé Perrella, o homem do helicóptero capturado com meia tonelada de pasta base de cocaína.
Para Aecio, valem todas as garantias individuais…
Marco Aurélio Mello considerou que o senador tucano não poderia ser preso senão em flagrante. O ministro do Supremo também achou que a prisão preventiva não seria apropriada, porque Aecio não fugiria nem obstruiria a Justiça, apesar de o senador, por meio de uma série de contatos com o diretor-geral da PF, Leandro Daiello, ter deixado “clara a sua intenção de interferir” para que a investigação sobre irregularidades na licitação da Cidade Administrativa de Minas Gerais ficasse com “um delegado específico” na corporação.
Marco Aurélio errou ao livrar a cara de Aecio dessa maneira?
Não errou. Essas garantias deveriam ser asseguradas a todos os cidadãos brasileiros, independentemente de origem, raça, classe social ou status.
Moinho resiste: enterro de Leandro Souza Santos, no cemitério da Vila Formosa (zona leste)
O revoltante é que o acesso à Justiça, como se sabe, está vedado aos pobres.
Veja o caso do menino Leandro Souza Santos, de 19 anos, morador da favela do Moinho, na região central de São Paulo. Negro, usuário de drogas, pobre, carroceiro, o rapaz foi perseguido por policiais da Rota, a tropa de elite da PM estadual. Toda a favela viu Leandro fugindo desesperado pelas ruas de terra da comunidade, às 9h30 da terça-feira (27/6), se esconder no casebre de outra moradora, e ser trancafiado na residência, até a execução final, por três tiros disparados pelos policiais.
O comandante da PM disse que a ação visava a coibir o tráfico de drogas na região central da cidade. Sei…
Se Leandro transportasse 500 quilos de cocaína, como aconteceu com o senador Zezé Perrella, provavelmente estaria a salvo dos braços da lei. Zezé, como se sabe, está livre leve e solto, porque é capaz de contratar grandes escritórios de advocacia, influenciar aliados, comprar lealdades.
A mesma lógica é a que leva Aecio a se safar sempre…
Como Leandro era um menino paupérrimo, nem acesso à Primeira Instância da Justiça ele teve. As balas da PM condenaram-no, liminarmente e de forma irrecorrível, à morte. Agora, seu corpo jaz numa cova rasa no cemitério da Vila Formosa.