Jornalistas Livres

Categoria: Intervenção Militar

  • Negro Matapacos, o revolucionário

    Negro Matapacos, o revolucionário

    Matapacos foi um famoso cão viralata que apareceu nos protestos de estudantes para a educação gratuita em 2010, desafiando o gás lacrimogêneo e os canhões de água e acompanhando os estudantes como um companheiro leal em sua luta, apenas atacando ou latindo para os “pacos” (gíria chilena para “policiais”) e nunca estudantes e manifestantes.

    A imagem do cachorro preto de bandana vermelha é compartilhada em todo o país por todas as redes sociais. Os chilenos sempre prestam homenagens ao cão que marchou com o povo e ficou ao lado deles quando enfrentavam a violência do Estado. Muitos cartazes, desenhos e pixações vistos nos protestos de hoje fazem lembrar Matapacos com frases como: “Estai Presente! (Eu estava presente!)” e “In Tu Memória (Em sua memória)” e tratam-no como um santo padroeiro dos manifestantes.

    Negro Matapacos morreu de velhice há 2 anos, mas o seu espírito rebelde vive nas ruas de Santiago e de outras cidades em todo o Chile, enquanto o povo continua a lutar pela justiça e pela igualdade.

     

  • PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    Por Zarella Neto, especial para os Jornalistas Livres
    Com fotos de Antonio Brasiliano e Zarella Neto, de Santiago, Chile

     

     

    Milhares de pessoas tomam as ruas do centro de Santiago exigindo mais direitos em todos os parâmetros sociais, pedido principalmente uma nova Constituição e a queda do presidente Sebastian Piñera.

    Na última pesquisa realizada, 87 % da população apoiam os protestos e são contra a violenta repressão policial. Apersar disso, não se vê cobertura real das grandes mídias chilenas. Nos últimos três dias de protestos na praça Itália, palco principal e foco real de resistência dos manifestantes, não se viu uma só vez uma emissora de TV. Apenas cinegrafistas e fotógrafos independentes ou de grandes agências internacionais estavam presentes.

    A participação popular é linda e crescente, diferente do estado policial, que com seu gigantesco aparato de segurança reprime com muitas bombas de gás lacrimogêneo e jatos d’água misturados com algo que parece ser gás lacrimogêneo, com o qual fomos atingidos diversas vezes e que, quando em contato com a pele, queima como fogo.

    A repressão da polícia é de uma desumanidade sem tamanho. Um aparato com mais de dez carros-tanques de repressão é usado para atacar os manifestantes que muitas vezes estão isolados e em número pequeno. Nesta semana, enquanto ocorria uma manifestação pacífica, com músicos entoando canções de resistência, com artistas nus e corpos com pinturas que lembravam os que tombaram mortos nas manifestações passadas, a polícia interveio com um forte ataque. A desigualdade de forças era tal que parecia a luta entre elefante e formiga.

    Penso, porém, que o elefante não está preparado para lutar contra um formigueiro. Enquanto manifestantes olham para frente, outros se aglomeram por detrás e, com o apoio maciço das pessoas comuns que cercam a praça, gritando, explicam para os homens de farda que hoje são eles, manifestantes, que sofrem, mas que, amanhã, poderão ser a mãe ou os filhos de quem hoje reprime…

    O Chile hoje não é um país para amadores. Os manifestantes em sua maioria pertencem à classe média, classe que segundo eles não existe mais…

    Nas manifestações não existe uma bandeira única nem partidária… Ela é plural e igualitária. E sempre se vê a onipresente bandeira do povo originário mapuche.

    É difícil Piñera resistir. O Povo do Chile, como eles mesmo dizem, não tem mais medo, e canta alegremente: “Nos tienen miedo porque no tenemos miedo”.

    Como me disse uma senhora de 63 anos que viveu a ditadura de Augusto Pinochet e com quem conversei, “os jovens de hoje não se curvaram à intolerância”. Ela disse também que no Chile nasceu o neoliberalismo na América Latina e no Chile começou a sua queda.

  • A PEDAGOGIA DO MEDO: escola militarizada no DF

    A PEDAGOGIA DO MEDO: escola militarizada no DF

     Por Dioclécio Luz

    Na primeira semana de agosto de 2019, duas escolas públicas do Distrito Federal (DF), decidiram em assembleia que não queriam se converter numa escola militarizada como pretendia o governo. Irritado com a decisão da comunidade escolar – pais, alunos, professores, servidores –  o governador Ibaneis Rocha deu a entender que iria implantar as EM na marra, e pretendia começar “justamente pelas escolas que rejeitaram o modelo”, disse à imprensa.

    A reação de Ibaneis simboliza o caráter dessa pretensa escola. O que se tem aqui é o autoritarismo tornado pedagogia, é o medo feito disciplina; a educação teve fim, a democracia foi substituída pelo autoritarismo. Isto é a escola militarizada
    Hoje o DF conta com nove escolas militarizadas e um total de 12.156 alunos e alunas matriculados. Tudo começou em janeiro de 2019, quando teve início o novo governo e seis escolas públicas foram convertidas ao novo modelo. Em agosto uma nova investida do governo capturou mais três escolas. Como se percebe, essas investidas ocorrem estrategicamente no início ou fim de semestre, quando não há atividade escolar ou elas serão paralisadas.

    Eis um projeto caracterizado por mentiras. Começa com o governo tentando mascarar o projeto militarista maquiando as escolas militarizadas como “gestão compartilhada” ou “escola cívico-militar”. Depois, tenta dar uma roupagem democrática: a Secretaria de Educação e a de Segurança Pública, responsáveis pela nova “escola”, promovem “assembleias” com a comunidade que seria soberana na decisão pela mudança. Foi quando duas escolas rejeitaram o projeto e o governador irritado disse que faria a mudança de qualquer jeito. Não espanta. Pais, alunos, representantes do Sindicato dos Professores do DF (Sinpro-DF), relatam que essas “assembleias” se dão sob pressão: quem é contra é hostilizado pelos organizadores.

    A escola militarizada tem como alvo os jovens oriundos da periferia. O objetivo é controla-los. Afinal, se esses pobres decidem reivindicar seus direitos, o Estado vai ter problema em atendê-los. Portanto, na falta de um controle de natalidade mais severo para os pobres que insistem em nascer, a solução é controlar a natalidade das ideias e das reinvindicações.
    O projeto recebe o apoio do governo Bolsonaro que anunciou a expansão dessas escolas. No dia 5 de setembro deste ano ele assinou decreto com o objetivo de implantar o modelo militarizado em 216 escolas até 2023. Esse tipo de escola não fazia parte do plano de governo de Ibaneis. Mas, para agradar ao presidente, no primeiro mês de governo Ibaneis criou as escolas militarizadas do DF.


    Coisa de fascista


    A escola militarizada atua sobre os jovens da periferia para que se tornem servis e obedientes. Os militares trazem da caserna o conceito de pátria e cidadania: obediência, disciplina, submissão. Não existe rebelde numa escola assim. Não por acaso, escolas com esse formato foram implantadas pelo fascismo de Benito Mussolini, nos idos de 1922. 
    Na Alemanha, em 1933, Adolf Hitler criou a Juventude Hitlerista, responsável por mobilizar mais de 5 milhões de jovens para o seu projeto de escola cívico-militar. Como nas atuais escolas militarizadas, o ensino nas escolas nazistas valorizava o nacionalismo, a obediência e a disciplina; defende a família e as tradições.
    Adolf Hitler diante da sua criação.
    Benito Mussolini diante dos alunos
    O filósofo, ex-ministro da educação no governo Lula, e professor da USP, Renato Janine Ribeiro, em entrevista à Rádio CBN (27/02/2019) disse:
    “A escola deve incentivar o aluno a ser rebelde, a ter opinião, questionar o professor, refletir sobre a sociedade. Isso é bom para a escola e para o aluno. A escola com militares é exatamente o contrário: ela pretende educar para um tempo que não existe mais – quando o professor era autoridade inquestionável. Esse tempo se foi, não volta mais”.
    Pelo visto voltou. E não só no Distrito Federal.

    Conforme o site Uol hoje o número dessas escolas chega a 120, espalhadas por 17 estados do Brasil. A grande maioria está em Goiás, po
    r obra e graça do ex-governador Marconi Perillo. O governador estava preocupado com os “baderneiros”: professores que faziam greve e alunos que ocupavam as escolas. No dia 10 de outubro de 2018, ao prestar depoimento na PF, Perillo foi preso preventivamente na operação “Cash Delivery” da Polícia Federal, acusado de receber R$ 12 milhões em propina da construtora Norberto Odebrecht.


    Soldadinhos de chumbo


    Engana-se, porém quem acha que a escola adotada por Mussolini e Hitler fascina somente a direita. O Piauí e a Bahia, sob o comando do Partido dos Trabalhadores, embarcaram nessa também. No caso do Piauí, conforme a revista Época, o governador petista Wellington Dias chegou a defender a criação de “Pelotões mirins” e “Combatentes mirins” – jovens formados pela Secretaria de Segurança Pública nos preceitos cívico-militares, nos moldes da Juventude hitlerista.

    Soldadinhos de chumbo? Sim. A escola impõe um regimento de quartel sobre as crianças, seus “soldadinhos”. O regimento trata de disciplina, civismo (na visão militar), religião e moral. É a pedagogia do medo. Os militares criam delatores dentro da escola, os chamados “líderes de turma”, com a missão de dedurar aqueles que não se comportam como manda o regimento. Com os policiais eles fiscalizam se a farda está limpa e a camisa por dentro da calça, se não incluíram adereços proibidos, se o corte de cabelo não é o proibido, se usam batom, o que é proibido; são vetados os brincos; os jovens não podem falar na linguagem deles. Nessa pretensa escola os alunos não se cumprimentam com o tradicional “bom dia”, mas com a continência militar; na hora de conversar com a autoridade, mãos para trás. Nada de namoro, nada de beijos e abraços. Se o major-diretor promover uma homenagem a qualquer-um-poderoso é obrigação do aluno estar lá, formar fileiras, cantar o hino nacional, bater palmas para esse qualquer-um, que pode ser um pilantra ou gente de bem. Nessa falsa escola o aluno obedece e ponto final.

    O jovem de uma escola como essa não é mais dono do seu corpo. Não pode assumir a sua identidade de raça ou de gênero, não pode ter opinião – é punido quem criticar a escola e os seus comandantes. É punido quem não seguir as “tradições” ou o “comportamento adequado”. O quê por exemplo? Aquilo que dá na cabeça do comandante. O aluno pode ser punido se questionar a “aula de civismo” ou falar que houve uma ditadura nesse país.

    Aplicar a jovens e adolescentes civis um regimento destinado a militares, isto é, gente que treina para o combate, é desumano e humilhante. Ainda mais quando se sabe que esse mesmo regimento está matando os adultos, os policiais militares. Eles são as primeiras vítimas de um sistema policial repressor que não respeita a humanidade que existe em cada um, levando os policiais ao estresse, depressão e suicídio.

    O jornalista Solon Neto, do site Sputniknews (20/03/2019), relata que “hoje, no estado de São Paulo, morrem mais policiais devido a suicídio do que em confrontos nas ruas. Entre 2017 e 2018, foram 71 suicídios nas Polícias Civil e Militar paulistas, enquanto nove policiais morreram em confronto nas ruas”.

    Diz o jornal El País (03/03/2019) que em São Paulo, “entre janeiro de 2014 e junho de 2018 três PMs foram diagnosticados, por dia, com transtornos mentais. Entre janeiro e agosto de 2018, 2.500 policiais militares foram afastados por transtornos mentais, mais que o dobro dos afastados em todo o ano de 2014”.

    Os números estão dizendo que o treinamento da PM é ineficiente e está matando os policiais. É preciso uma intervenção civil sobre as forças militares.


    Bizarro


    Diz o Governo do Distrito Federal (GDF) que a escola com a PM lá dentro dá mais segurança e disciplina ao aluno. Aqui se percebe uma tentativa de burlar a lei maior. Afinal, se é função constitucional do Estado garantir a segurança de todos, por que somente dentro da escola? Porque, historicamente, o Estado garante a segurança nos bairros nobres e abandona as periferias. O Estado despreza sua obrigação constitucional.

    A escola militarizada não elimina a violência na região. Pais e mães da periferia est
    ão tão acostumados com a ausência e o desprezo do Estado, que aceitam a migalha oferecida. Fazem isso por amor aos filhos, porque sabem que a escola (não isto que a PM e o governo inventaram) é um lugar sagrado. Essa “escola” não resolve o problema da violência, mas “pelo menos”, vai permitir que os jovens estudem. Por isso aceitam as mentiras do governo.

    Aqui a mentira tem requintes de crueldade porque incide sobre o sonho de muitas famílias, a esperança de uma situação melhor para os filhos, para que eles tenham aquilo que os pais não puderam ter: educação e um futuro melhor.

    O GDF também mentiu ao dizer aos pais que essa escola é como o Colégio Militar. Não é. Os colégios militares recebem três vezes mais recursos que as escolas públicas civis. Por alguma razão especial eles têm essa regalia. Para escola pública os recursos são regrados.

    Com a escola sob o comando da PM, os jovens da periferia, serão diariamente punidos. O fato é que o antigo território sagrado da sociedade, a escola, já não é mais o espaço aonde os jovens constroem suas primeiras relações sociais sadias. A escola sumiu. Ela não cabe na academia. Não se sabe de nenhuma Faculdade de educação que defenda essa projeto.

    Oficialmente a escola militarizada é um Frankenstein. Essa criatura bizarra não existe na forma da lei. Não há nenhuma lei em vigor fazendo referência a escola militarizada. Não se fala em escola militarizada na Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica do Distrito Federal.
    O Plano Distrital de Educação (PDE), Lei nº 5.499/2015, estabelece prioridades e metas para o DF e é a principal referência para a elaboração de planos plurianuais nas diferentes esferas de gestão. O PDE instituiu “21 Metas para o desenvolvimento do ensino no Distrito Federal nos próximos 10 anos e 411 estratégias para o seu cumprimento”. Em nenhuma delas é citada a escola militarizada. O Conselho tutelar tampouco foi consultado.

    Considerando a dimensão do projeto imagina-se que o GDF tenha elaborado estudo aprofundado sobre a viabilidade desse tipo de escola. Fazendo uso da lei de acesso à informação, foi solicitado esse estudo à Secretaria de Educação (SED) e à de Segurança Pública (SSP). A SSP informou que não é sua obrigação produzir documento que não tem! Já a SED, em resposta, encaminhou um texto de quatro laudas mostrando de forma simplória o óbvio: que toda escola precisa de disciplina para funcionar bem. Não era um estudo sobre a implantação de escolas militarizadas. Não existe estudo.

    O fato é que a escola militarizada é ilegal. Ela fere pelo menos 17 dispositivos legais. Fere a Constituição Brasileira (CF), a Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei de gestão democrática do DF, entre outros.

    O regimento disciplinar avança sobre o comportamento e o corpo da pessoa, indo além do território escolar. É punido quem “desrespeitar em público as convenções sociais” ou “namorar na escola ou usando o uniforme da escola”. Aqui se afronta o Art. 5 inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.
    O Art. 5º é cláusula pétrea da Constituição, mas é agredido assim mesmo. O texto diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Mas ao vetar os cabelos longos dos meninos, o uso de brincos e tiaras pelas meninas, o Estado, mais exatamente a Polícia Militar, está invadindo na intimidade e privacidade dos jovens.
    No mesmo Art. 5º (inciso X) se diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Será que é desumano e degradante exigir que a criança obedeça calada as ordens do sargento, faça ordem unida como se fosse um soldado, corte o cabelo como se fosse militar? Não é humilhante impedir a garota de usar brincos e manter os cabelos soltos; impedir de falar na linguagem da sua tribo?

    Também se violenta o Art. 206 da CF que trata da gestão democrática. Os dirigentes dessa escola, policiais, escolhem os professores; os alunos não opi
    nam; a comunidade escolar deve obediência aos policiais. A PM decide tudo. Não existe mais eleição para diretoria. Não existe democracia.

    A Polícia não tem competência legal (e tampouco profissional) para a função delegada pelo governo estadual ou distrital.  Ao contrário do que diz o discurso oficial, a Polícia não está na escola para garantir segurança, mas para impor uma pedagogia – ela ensina, impondo a moral dos quartéis. Trata-se de desvio de função, como define o Art. 144 da CF.
    Tudo faz crer que o projeto de escola militarizada não se sustenta do ponto de vista legal. Mas não é esta a visão do Ministério Público. Em nota oficial, datada de 13 de fevereiro de 2019, as promotoras Cátia Gisele Martins Vergara e Márcia Pereira da Rocha, da Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (PROEDUC), do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), afirmam que a proposta atende aos requisitos legais.

    Com o aval do MP o governador Ibaneis pretende ir longe. Neste momento, em algum lugar de Brasília, uma escola deixa de ser escola para se tornar esse Frankenstein. O Sinpro-DF já se manifestou contra, mas alguns professores e diretores de escola fazem a defesa desse modelo. Alunos e alunas, os principais atingidos por este modelo, têm pouco espaço para opinar. Se antes desconhecem o objetivo dessa escola, depois que ela é implantada aprendem que não podem reclamar – o regimento pune quem critica a escola.
  • A formidável (e assustadora) biografia do ano passado

    A formidável (e assustadora) biografia do ano passado

    Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres

     

     

     

    Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres

     

    Atribui-se ao 32º presidente estadunidense, Franklin Delano Roosevelt, a perturbadora frase: “leva-se um bom tempo para trazer o passado ao presente”.

    De fato, corre tempo demais até compreendermos o porquê das pequenas e grandes tragédias cotidianas. Roosevelt pensava, por exemplo, nos equívocos e desvarios econômicos e financeiros que haviam conduzido seu país à Grande Depressão.

    O desprezo pelo passado frequentemente nos conduz ao horror e ao sofrimento, fenômeno que se apresenta aos olhos dos historiadores no período entre as duas devastadoras guerras mundiais que marcaram o Século 20.

    No Brasil, há quem ainda não tenha compreendido, por exemplo, a natureza do Golpe Militar de 1964, que ceifou vidas, esperanças e amores.

    Pior é a crença patológica em um passado edulcorado, no qual a farda supostamente garantiu aos brasileiros um tempo de ordem, progresso e segurança, de gestores públicos imaculados, jamais envolvidos em casos de corrupção.

    Se o passado é moldado pela construção e reprodução de narrativas particulares, faz-se necessário garantir que o pensamento da civilidade possa concorrer com aquele da barbárie.

    O livro “Sobre Lutas e Lágrimas – Uma Biografia de 2018” (Editora Record, R$ 44,90) escrito pelo jornalista Mário Magalhães, serve brilhantemente a esse propósito.

    A obra trata do pretérito recente, esse que ainda não tivemos tempo de processar, cuja análise atenta exibe uma fieira de ocorrências espantosas, absurdas ou mesmo inacreditáveis.

    A pena virtuosa do colega Mário nos choca ao narrar, por exemplo, os eventos de abril, quando o ex-presidente Lula deixou a resistente São Bernardo e rumou ao cárcere em Curitiba, vítima estoica das tramas lavajateiras.

    Ora, um recuo modesto no tempo, que seja a 2008, exibe um país governado pelo mesmo nordestino. A economia cresce e multiplica-se a oferta de empregos, o filho do porteiro ingressa na universidade e a fome vai desaparecendo do cotidiano das famílias mais humildes.

    Na época, poucos imaginavam que o ex-metalúrgico, mandatário colecionador de sucessos na gestão pública, pudesse cair vítima de um golpe articulado por procuradores reacionários em parceria com um magistrado de cultura limitada.

    Causa estranheza que, em 2018, nos tenha faltado tempo para compreender 1968, o famoso ano rebelde que não terminou. Vivemos o ano passado de forma vertiginosa, ocupados, procurando entender o mês anterior, o dia de ontem, a hora passada.

    Neste Brasil líquido, senão gasoso, como nos reconta o genial Mário, assistimos à caça de macacos, incriminados como transmissores da febre amarela. Se houve empoderamento das mulheres, multiplicaram-se os casos de feminicídio. O Doutor Bumbum revelou sua verdadeira índole. Caminhoneiros travaram o país, a intervenção militar amedrontou o Rio de Janeiro, a direita paranoica mobilizou-se contra a Ursal, índios e jovens recorreram ao suicídio para findar a aflição dos dias todos.

    O neofascismo brasileiro, associado aos neoliberais que se desencantaram com o PSDB e o DEM, viabilizou a candidatura do ex-capitão Jair Bolsonaro. Neste medieval ano de 2018, milhões de brasileiros foram enganados pelo “tiozão” do WhatsApp, que repassou notícias sobre a “mamadeira de piroca” do Haddad, o mesmo candidato vermelho que, segundo ele, pretendia legalizar a pedofilia.

    Na obra de Mário o que mais espanta, no entanto, é a celeridade nas mudanças de cenário. Nos textos escritos no início do segundo semestre, ele ainda cogita de uma candidatura de Lula e não descarta a vitória do ex-metalúrgico. Poucos meses adiante, o que se avalia é se Bolsonaro pode ou não vencer a eleição presidencial no primeiro turno.

    O autor rememora o episódio da reportagem de Patrícia Campos Mello, da Folha, sobre o esquema ilegal de disparo de conteúdos anti-PT nas redes, bancado por empresas. Mas não faz olho militante. Investiga na minúcia os personagens de seu 2018, um ano que se converte, ele próprio, em personagem.

    Na página 261, apresenta um rascunho do candidato presidencial de esquerda, Fernando Haddad:

    • Em piscada de olho para o centro, Haddad elogiou Sergio Moro (“ajudou” o Brasil, com “saldo positivo”), mas criticou a condenação de Lula. Errou ao endossar a acusação improcedente que atribuía tortura ao general Mourão, porém se corrigiu. Criticou decisões de correligionários, como a desmesurada renúncia fiscal do governo Dilma.

    Se nos adiantamos aqui, é bem possível que façamos um curioso spoiler daquilo tudo que já sabemos, ou julgamos saber.

    Quer colar no passado e trazê-lo para decifrar o presente? Embarque nessa leitura, no fascinante jogo das frescas reminiscências. São 330 páginas, mas que passam rapidinho, como aquelas 730 de “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, obra luminosa e reveladora do mesmo Mário.

     

     

  • 1964 foi golpe, 2016 também

    1964 foi golpe, 2016 também

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Ninguém gosta de trazer a palavra “golpista” escrita na testa. É feio, não pega bem. Por isso, as experiências de ruptura políticas sempre têm sua memória disputada. Os que tomaram o poder se dizem “revolucionários”, ou “defensores da lei, da ordem e do interesse público”.

    Ninguém aqui vai duvidar que “revolucionário” e “defensor da lei” soam aos ouvidos bem melhor que “golpista”. Já os que foram derrubados produzem outra memória e gritam “golpistas”, com o dedo em riste.

    É necessário estabelecer um critério capaz de definir com mais rigor se uma determinada experiência de ruptura política pode mesmo ser definida como um golpe de Estado. É isso que tento fazer neste texto, em um exercício de síntese histórica.

    Tomo como exemplos as rupturas políticas que aconteceram no Brasil em 1964 e em 2016. Dois golpes de Estado. Golpes diferentes, sem dúvida. O tempo passa e quase tudo no mundo se transforma, até mesmo os golpes.

    Desobedecer as leis estabelecidas não é um bom critério para sabermos se uma ruptura política é ou não um golpe de Estado. Digo isso porque a lei, antes de qualquer coisa, traduz um equilíbrio de forças. Ou pra ser mais direto: a função da lei não é apenas regular o convívio social. A lei também alimenta relações de poder, dividindo a sociedade em ricos e pobres, patrões e empregados, proprietários e despossuídos.

    Em alguns momentos da história, a lei legitimou a escravidão. Um movimento social que desobedece a lei que legitima a escravidão de seres humanos pode ser chamado de golpista? O grupo político que lidera a derrubada de um governo que mata e tortura seus adversários é golpista?

    Pra saber com clareza se a ruptura foi um golpe é necessário saber como estava a sociedade antes da coisa acontecer.

    Se as forças que derrubaram o governo tinham o interesse de manter a desigualdade social, é porque o governo derrubado tentou, de alguma forma, promover justiça social. É assim que os golpes acontecem.

    Vejamos o que estava acontecendo no Brasil nas vésperas dos golpes de 1964 e de 2016. Tínhamos nas duas ocasiões governos legitimamente eleitos e que eram alvo de críticas da sociedade civil. Dois momentos de crise, de tensão social.

    João Goulart era presidente em 1964. Dilma Rousseff era a presidenta em 2016. Ambos eram herdeiros de padrinhos a quem deviam grande parte de seu capital político. Goulart foi ungido por Getúlio Vargas. Dilma foi escolhida por Lula. Getúlio Vargas e Lula, os dois maiores personagens da história política brasileira.

    João Goulart e Dilma foram ousados, tentaram transformar as estruturas da sociedade brasileira. Goulart queria fazer as “reformas de base” (reforma agrária, reforma eleitoral, reforma urbana, reforma fiscal). O que o presidente João Goulart queria?

    – Permitir que o trabalhador rural tivesse acesso à pequena propriedade. Era uma reforma agrária tímida, que tinha como alvo terras improdutivas, em beira de estrada, e ainda propunha indenizar os proprietários com títulos da dívida pública. Nem se compara com a reforma agrária feitas em países comunistas, como Cuba e URSS. Goulart estava muito longe de ser comunista.

    – Estender o direito do voto a analfabetos e militares de baixa patente. Ou seja, aprimorar o funcionamento da democracia burguesa representativa. Muito longe do projeto de “governo do partido”, típico dos países comunistas.

    – Racionalizar a divisão do espaço urbano, garantindo para todos o direito à moradia digna. Também aqui, a proposta não era atacar a propriedade privada, mas, sim, atribuir uso social a imóveis desocupados e prédios públicos sem utilização. Nada a ver com comunismo.

    – Tornar o sistema tributário brasileiro mais justo. Ou seja, quem tem menos dinheiro paga menos impostos e quem tem mais dinheiro paga mais impostos, incluindo aí as grandes empresas estrangeiras. Nem cheiro de comunismo.

    O projeto reformista de Goulart se mostrou ousado para a realidade do capitalismo periférico brasileiro, assustando parte da sociedade. Os empresários, setores da classe média e da Igreja Católica foram às ruas protestar contra as reformas de base.

    Então, a sociedade civil estava contra João Goulart?

    De forma alguma. “Sociedade civil” é muita gente. João Goulart era bastante popular e contava com apoio da maior parte da população brasileira. É possível medir esse apoio através de dados objetivos, como os resultados eleitorais.

    João Goulart foi eleito três vezes num espaço de oito anos. Foi eleito em 1955 e em 1960 para o cargo de vice-presidente da República. Sim, na época votava-se também para vice-presidente. Em janeiro de 1963, realizou-se um plebiscito onde a grande maioria da população escolheu entregar plenos poderes presidenciais a João Goulart. Na prática, o plebiscito foi uma outra eleição.

    Em 1º de abril de 1964, portanto, a minoria derrotada nas urnas e assustada com o projeto reformista de João Goulart fez acontecer um golpe de Estado.

    Dilma

    Ao ser golpeada, Dilma Rousseff estava no seu segundo mandato. Quando iniciou seu primeiro governo, em janeiro de 2011, Dilma confrontou interesses muito poderosos. Começou fazendo uma faxina no seu Ministério, demitindo todos os ministros envolvidos com corrupção.

    A partir de então, Dilma tomaria o combate à corrupção como a grande agenda de seu governo. As instituições responsáveis por investigar crimes de colarinho branco tiveram sua autonomia respeitada. Ministério Público e Polícia Federal foram tão fortalecidos que começaram a disputar espaço e atribuições um com o outro.

    Dilma, assessorada por José Eduardo Cardozo, seu ministro da Justiça, permitiu que a Polícia Federal fosse buscar seus aliados em casa, às 6 da manhã. Para Dilma, não importava quem era o investigado. Mesmo sendo aliado, deveria pagar pelos seus malfeitos. Corajosa e, segundo alguns, imprudente.

    Dilma resolveu ainda comprar outra briga, agora com os bancos. Dizendo que a taxa de juros no Brasil não era civilizada, Dilma usou a caneta para baixar os juros dos bancos públicos (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal). Os bancos privados ficaram desesperados, é claro. Qual cliente é louco de pagar mais caro quando pode pagar menos?

    Em maio de 2013, a taxa SELIC atingiu o menor valor na série histórica. Dilma ostentava impressionantes 80% de apoio popular, índice de aprovação que nem Lula conseguiu alcançar.

    Animada com o sucesso, Dilma decretou que as riquezas do pré-sal deveriam ser distribuídas para a Educação e para a Saúde.

    Nas sombras, os políticos, os bancos, as corporações petrolíferas internacionais e a mídia hegemônica começaram a conspirar. Dilma precisava sair do Palácio do Planalto. A sangria tinha que ser estancada. Formou-se, então, um poderosíssimo bloco de oposição.

    A imagem de Dilma foi desconstruída, atacada, de todas as formas possíveis. Não foi o bastante. Dilma venceu as eleições de 2014. No segundo mandato, os ataques ficaram ainda mais violentos.

    Já que as urnas não resolveram o problema, o bloco de oposição se transformou em coalizão golpista. Como os tempos eram outros e um golpe militar clássico não era opção, foi necessário inventar um outro tipo de golpe, um golpe clean.

    Os ritos da democracia foram manipulados para dar aparência de legitimidade ao golpe de Estado.

    Inventou-se um crime de responsabilidade. Acusaram Dilma de fraude orçamentária. Técnicos negaram a autoria de Dilma, dizendo que ela era inocente.

    Usando esse pretexto, o Congresso Nacional, formado pelos políticos assustados com a limpeza que Dilma vinha fazendo desde 2011, golpeou a presidenta.

    De 1964 a 2016 muita coisa mudou no Brasil. Mas, infelizmente, algo sobreviveu: a falta de apreço dos poderosos pela democracia e pela justiça social. Ao se verem acuadas por um governo que não atende à totalidade de seus interesses, as elites brasileiras deixam de lado suas diferenças e se unem em conspirações golpistas.

    Não é possível mudar o passado. Os golpeados foram golpeados e nada será capaz de reparar a injustiça e o crime. Porém, é perfeitamente possível evitar novos golpes e fortalecer nossa democracia. Pra isso, é necessário produzir memória e divulgar a nossa história, dizendo sem medo de errar: 1964 foi golpe. 2016 também.

     

  • Como a Ditadura Militar ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena (Grin)

    Como a Ditadura Militar ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena (Grin)

    Palanque das autoridades

    Aquele 5 de fevereiro de 1970 foi um dia de festa no quartel do Batalhão-Escola Voluntários da Pátria, da Polícia Militar de Minas Gerais, em Belo Horizonte. “Pelo menos mil pessoas, maioria de civis, meninos, jovens e velhos do bairro do Prado, em desusado interesse”, segundo reportagem da revista “O Cruzeiro”, assistiram à formatura da primeira turma da Guarda Rural Indígena (Grin).

    Segundo a portaria que a criou, de 1969, a tropa teria a missão de “executar o policiamento ostensivo das áreas reservadas aos silvícolas”. No palanque abarrotado, viam-se, sorridentes, autoridades federais e estaduais, civis e militares: o ministro do Interior, general José Costa Cavalcanti (um dos signatários do AI-5, de 13 de dezembro de 1968); o governador de Minas, Israel Pinheiro; o ex-vice-presidente da República e deputado federal José Maria Alkmin.

    Os 84 índios, recrutados em aldeias xerente, maxacali, carajá, krahô e gaviões, marcharam embandeirados e com fardas desenhadas para a ocasião: calça e quepe verdes, camisa amarela, coturnos pretos, três-oitão no coldre.

    Feito o juramento à bandeira, quando prometeram “defender a nossa Pátria” (conforme registrou reportagem publicada pela “Folha”), desfilaram para mostrar o que aprenderam nos três meses de formação, sob as ordens do capitão da PM Manuel dos Santos Pinheiro, sobrinho do governador e chefe da Ajudância Minas-Bahia, o braço regional da Funai.

    JUDÔ

    A primeira apresentação, de alunos de judô do tradicional Minas Tênis Clube, deu um ar benigno de confraternização infantil. Depois das crianças, foi a vez de os índios –todos adultos– exibirem seus conhecimentos de defesa pessoal. Também “deram demonstração de captura a cavalo e condução de presos com e sem armas”, conforme publicaria o “Jornal do Brasil” no dia 6, com chamada e foto na primeira página, sob o título “Os Passos da Integração”.

    O que nenhum órgão de imprensa mostrou –eram tempos de censura– foi o “gran finale”. Os soldados da Guarda Indígena marcharam diante das autoridades –e de uma multidão que incluía crianças– carregando um homem pendurado em um pau de arara.

    Gravadas há 42 anos, as cenas vêm a público pelas mãos do pesquisador Marcelo Zelic, 49, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Zelic coordena uma pesquisa colaborativa feita pela internet intitulada “Povos Indígenas e Ditadura Militar: Subsídios à Comissão Nacional da Verdade”.

    ARARA

    Pesquisando no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, Zelic topou com o DVD “Arara”, fruto da digitalização de 20 rolos de filme 16 mm, sem áudio.

    A etiqueta levava a crer que se tratava de material sobre a etnia arara –índios conhecidos nas cercanias de Altamira (PA) desde 1850. Mas, em vez do “povo das araras vermelhas”, como se denominam até hoje seus 361 remanescentes (dados de 2012), era outra “arara” que nomeava a caixa.

    Tratava-se de pau de arara, a autêntica contribuição brasileira ao arsenal mundial de técnicas de tortura, usado desde os tempos da colônia para punir “negros fujões”, como se dizia. Por lembrar as longas varas usadas para levar aves aos mercados, atadas pelos pés, o suplício ganhou esse nome.

    No clássico “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” (1835), que retrata a escravidão no país, o pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), membro da Missão Francesa de artistas e cientistas que dom João 6º patrocinou para estudar e retratar o país, mostra um negro sendo castigado no pau de arara.

    Na ditadura militar (1964-85), porém, o pau de arara só aparecia sob a forma de denúncia, estampando jornais alternativos, em filmes e documentários realizados por militantes oposicionistas.

    Entranhada nos porões, a tortura jamais recebera tratamento tão alegre e solto quanto naqueles 26 minutos e 55 segundos, que exibem o pau de arara orgulhosamente à luz do dia, em ato oficial, sob os aplausos das autoridades e de uma multidão de basbaques. Fotógrafos e cinegrafistas cobriram o evento, mas a cena, que assusta pela impudência, ficou de fora dos jornais e das revistas. Sobrou, ao que se saiba, apenas camuflada sob o título inocente.

    O filme é parte do acervo sobre 60 povos indígenas, coletado durante quatro décadas pelo documentarista Jesco von Puttkamer (1919-94) e doado em 1977 ao IGPA (Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia), da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

    Descendente da nobreza alemã, mas nascido no Brasil, Von Puttkamer sabia o que era a repressão. Foi preso pela Gestapo quando concluía os estudos em química na Universidade de Breslau (Alemanha), por se recusar a se alistar no Exército durante a Segunda Guerra (1939-45). Safou-se ao provar que era cidadão brasileiro nato.

    Trabalhou como fotógrafo no Tribunal de Nuremberg (1945-46), que julgou hierarcas nazistas por crimes de guerra. Já de volta, foi um dos fotógrafos oficiais da construção de Brasília (1956-60). Nos anos 1960, integrou pela primeira vez uma expedição em busca de tribos isoladas no Brasil central. Nunca mais largou os índios.

    Deixou 43 mil slides, 2.800 páginas de diários de campo e filmes na bitola 16 mm que, desenrolados, chegariam a 330 km. São registros delicados e muitas vezes emocionantes da aproximação dos índios e de seu encontro com as frentes de exploração –e também das epidemias e mortandades por gripe, varíola e sarampo.

    Em um documentário sobre Von Puttkamer, o sertanista Apoena Meirelles afirma: “Jesco nunca se promoveu, nunca enriqueceu, permaneceu no anonimato, mas seu trabalho possibilitou que se denunciasse e se documentasse muita coisa errada da política indigenista”. É o caso das aulas de pau de arara.

    GRIN

    A formatura foi o ponto alto de uma longa preparação. Em 23 de novembro de 1969, reportagem no “Jornal do Brasil” mostrou os índios da Grin em sala de aula e contou o que aprendiam: princípios de ordem unida, marcha e desfile, instruções gerais, continência e apresentação, educação moral e cívica, educação física, equitação, lutas de defesa e ataque, patrulhamento, abordagem, condução e guarda de presos.

     

     

     

    Em 12 de dezembro de 1969, nota no Informe JB, coluna política do “Jornal do Brasil”, fazia troça de tipo racista dos “selvagens”:

    “O presidente da Funai, Queirós Campos, dizia que a Guarda Indígena vai de vento em popa. Só há um problema, o do uniforme. Começa que não há jeito de fazer com que os futuros guardas usem botina ou qualquer tipo de sapato, […] machuca-lhes os pés. O quepe já perdeu toda a tradicional seriedade porque é logo enfeitado com uma pena atravessada. Finalmente, a fivela e os botões não param no lugar certo pois, como tudo o que brilha, são invariavelmente colocados na testa e nas orelhas.”

    Na formatura, porém, botas, fivelas e botões tiniam, tudo no lugar e sem penachos –o filme mostra o capitão Pinheiro se desdobrando para ajeitar os cintos dos soldados. A ressalva foram os cabelos: não houve quem convencesse os krahô a aparar as melenas que lhes desciam até os ombros. E assim eles desfilaram.

    O ministro Cavalcanti discursou em nome do presidente Emílio Garrastazu Médici: “Nada até hoje me orgulhou tanto quanto apadrinhar a formatura […] da Guarda Indígena, pois estou certo de que os ensinamentos recebidos por eles, neste período de treinamento intensivo, servirão de exemplo para todos os países do mundo”.

    No dia seguinte, “os índios líderes, hígidos, sadios, fortes e inteligentes”, segundo Cavalcanti, embarcaram rumo a suas respectivas aldeias. Decolaram fardados, armados e com soldo mensal de 250 cruzeiros novos (pouco mais de R$ 1.000, em valor atualizado).

    ANTROPOLOGIA

    “Nunca vi cena como essa. Já vi muitos filmes antigos, de 1920, 1930, 40, 50, 60. Mas cena como essa do pau de arara nunca apareceu”, disse Sylvia Caiuby Novaes, professora da USP, onde coordena o Lisa “”Laboratório de Imagem e Som em Antropologia. Ela assistiu ao filme “Arara” a convite da reportagem.

    “Isso, por um lado, é expressão do fato de os índios, naquele momento, muito antes dos celulares com câmeras, serem filmados o tempo todo. Desde os índios de ‘cartão-postal’ do Xingu, na época dos Villas Bôas, passando pelos ‘índios gigantes’, Silvio Santos filmando na Amazônia, os índios eram objeto no nosso olhar curioso”, diz ela. “Eles eram aquilo que nós não éramos mais. O retrato da nossa alteridade. Moravam na ‘Mata Virgem’, eram [vistos como] puros, próximos da natureza.”

    Segundo a antropóloga, a cena do pau de arara demonstra a existência de uma “face muito sombria do contato entre o Estado brasileiro e os grupos indígenas”. A face iluminada foram os esforços de “pacificação”, encetada por iniciativa governamental e levada a cabo por homens corajosos e tantas vezes voluntaristas, como os irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas.

    Primeiro como empregados e depois como líderes da Expedição Roncador-Xingu, os irmãos foram a ponta de lança do plano de ocupação do território brasileiro, a Marcha para o Oeste, anunciada à meia-noite de 31 de dezembro de 1937, em discurso radiofônico proferido por Getúlio Vargas, diretamente do Palácio Guanabara.

    “O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste”, bradou Vargas. “No século 18, de lá jorrou o caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir buscar: dos vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das entranhas da terra, o metal, com que forjar os instrumentos da nossa defesa e do nosso progresso industrial.”

    Os irmãos Villas Bôas embrenharam-se no Brasil central com a missão assinalada pelo presidente: “Encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras econômicas”. Construíram, por exemplo, 19 pistas de pouso ao longo de 1.500 km de picadas que abriram. Isso encurtou as viagens do Rio para os EUA, que, por falta de apoio em terra, eram bem mais longas, pois tinham de margear o litoral.

    Os irmãos localizaram 14 povos indígenas desconhecidos. A maioria acabaria transferida para o Parque Nacional do Xingu, idealizado pelos irmãos Villas Bôas com o apoio do marechal Cândido Rondon (1865-1958), do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-97) e do sanitarista Noel Nutels (1913-73). O presidente Jânio Quadros, em 1961, assinou o decreto de criação do parque, garantindo uma área de 27.000 km2, quase uma Bélgica.

    Já sob a ditadura, virou show midiático o trabalho de atração, contato e remoção dos índios encontrados no caminho das estradas em construção. Em abril de 1973, “O Cruzeiro” estampou na capa o título “Sensacional!”, seguido pela chamada: “Orlando Villas Bôas fotografou com exclusividade os ÍNDIOS GIGANTES”.

    A foto mostrava os panará, então isolados e chamados de kreen-akarore. Além de ter suas terras invadidas por garimpeiros, estavam no meio do traçado da BR-163 “”que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA). Depois se viu que não se tratava de gigantes coisa nenhuma.

    A população (ou o que restou dela) foi removida em 1975 para o Xingu, a 250 km da terra panará. “Fizemos isso porque eles estavam morrendo por causa do contato com os brancos”, disse Orlando. Doenças e massacres já haviam eliminado dois terços dos panará.

    REFORMATÓRIO

    A Comissão Nacional de Verdade, cujos trabalhos incluem os crimes do Estado contra os índios, tem mostrado que, além de “atrair”, “pacificar” e “remover”, a política indigenista do regime de 64 também conjugou os verbos “reprimir”, “punir” e “torturar”. Obstinado em desenvolver um sistema de controle dos índios, o criador da Grin, capitão Pinheiro, ergueu em 1969 um reformatório-presídio para índios.

    O Reformatório Krenak (assim chamado por ficar em terras dos krenak), em Resplendor (MG), perto da divisa com o Espírito Santo, funcionava como colônia penal e de trabalhos forçados, para “reeducar os desajustados e confinar os revoltosos que se recusavam a sair de suas terras tradicionais”, explica Benedito Prezia, antropólogo e assessor do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), entidade ligada à Igreja Católica e responsável pelas mais contundentes denúncias de desrespeito aos direitos humanos dos índios brasileiros durante o regime militar. “Aquilo era um verdadeiro campo de concentração étnico”, diz o pesquisador.

    Nos registros oficiais consta a chegada de 94 índios ao Krenak entre 1969 e 1972, quando foram transferidos para a Fazenda Guarani, pertencente à PM de Minas Gerais, no município de Carmésia. Os motivos alegados para as prisões eram “atrito com chefe do posto indígena”, “vadiagem”, “uso de drogas”, “embriaguez”, “prostituição”, “roubo”, “saída da aldeia sem autorização”, “relações sexuais indevidas”, “pederastia”, “homicídio”, “agressão à mulher”, “problemas mentais”. Mas são registros incompletos, que não permitem que se entenda o que se passava no local.

    Para José Gabriel Silveira Corrêa, 39, professor de antropologia da Universidade Federal de Campina Grande (PB), a ditadura foi “um momento de recrudescimento das práticas de violência que eram comuns nos postos indígenas”.

    “Ao formar a Grin e o Presídio e Reformatório Agrícola Krenak”, diz Corrêa, “Pinheiro tornou sistemáticas essas práticas e ainda deu a elas uma aparência de legalidade, já que ele era o representante oficial do órgão de tutela estatal.”

    Ele diz ter escutado diversos “relatos de aprisionamentos, trabalhos forçados, regime de prisão solitária, surras e desaparecimentos de presos”. Era uma prática de violência recorrente, “mas o pior de tudo é que o capitão fez com que fosse praticada pelos próprios índios, submetidos que estavam a um regime policial”.

    Benedito Prezia aponta o “caráter perverso” de transformar índios em “agentes colaboradores no massacre de seu próprio povo”. Mas nem nisso a ditadura foi original, ele salienta. “Relatos de jesuítas no século 17 já mencionam o uso de indígenas para capturar negros da Guiné que haviam fugido do jugo da escravidão”, diz.

    Em tempos de “Brasil Grande”, de integração nacional (“integrar para não entregar”, dizia a propaganda oficial) e da construção de estradas como a Transamazônica rasgando a floresta, os índios estiveram no centro do maior projeto estratégico do regime militar.

    Apesar disso, curiosamente “a narrativa sobre os crimes da ditadura em relação aos direitos humanos quase nunca inclui a questão indígena”, observa Marcelo Zelic. Ele arrisca uma hipótese: “No fundo, isso mostra como, mesmo nos círculos democráticos mais combativos, as populações indígenas ainda não são vistas como portadoras de direitos.”

    BALANÇO

    Três anos depois da pomposa formatura da primeira turma da Grin, o jornalista José Queirós Campos, presidente da Funai, já tinha sido apeado do cargo e substituído pelo general Oscar Jerônimo Bandeira de Mello. Fazia-se o balanço das ações.

    “Tudo deu errado”, cravou o jornal “O Estado de S. Paulo” em outubro de 1973, em reportagem escondida na parte inferior da página 52, perto dos classificados.

    Sobravam denúncias de espancamentos, arbitrariedades, insubordinação e até estupros cometidos pelos guardas que retornaram às aldeias. Na ilha do Bananal, um caboclo foi pego com quatro garrafas de cachaça (o que era proibidíssimo pela Funai). Apurou-se que foi obrigado “a praticar orgias com guardas carajás”.

    Os jornais relataram a tortura cometida por guardas indígenas contra um pescador, também flagrado com cachaça para uso pessoal. Preso, foi obrigado a ir caminhando até a delegacia, a cinco quilômetros de distância, sob golpes de borduna.

    Outro agente da Grin usou o soldo que recebia para montar um bordel na aldeia. A situação chegou a tal ponto, ainda segundo “O Estado de S. Paulo”, que o cacique carajá Arutanã, da ilha do Bananal, pediu à Força Aérea Brasileira (FAB) que extinguisse a Grin.

    Em 1972, sem glórias, Pinheiro já havia sido destituído da Funai. Não se formaram novas turmas. No final da década a Guarda Rural Indígena começou a ser desmobilizada. Segundo Corrêa, isso não bastaria para extinguir suas práticas de violência. “Há relatos sobre índios que, atualmente, quando precisam punir alguém, levam-no às proximidades da casa do ‘capitão’ indígena, amarram-no em árvores e surram-no, revivendo antigas práticas ensinadas pelo órgão tutelar”.

    “O reformatório e a Guarda Indígena são apenas exemplos do muito que há a investigar pela Comissão Nacional da Verdade”, diz Zelic. “Outros casos já estão em levantamento, como o dos guarani-caiová, que sofreram algo que beira o genocídio nas remoções feitas durante a ditadura.”

    E conclui: “Só assim, com a verdade, a sociedade não-índia entenderá a necessidade de respeitarmos as terras e os direitos dos povos indígenas”.

     

     

    Reportagem de Laura Capriglione, originalmente publicada no jornal “Folha de S.Paulo”, em 11.nov.2012