Texto: Zumbi Resiste. Fotos da marcha: Gabriel de Moura. Outras fotos: Gabriel Carcavalli
A poucos metros da Faculdade Zumbi dos Palmares, no bairro do Bom Retiro, está localizada a Rua Jorge Velho, ponto de passagem de alguns alunos da instituição. Mas o que muita gente não sabe é que essa rua esconde uma história que torna esse fato um desrespeito com a comunidade negra: Jorge Velho foi o bandeirante que ordenou a morte de Zumbi dos Palmares.
Após essa descoberta os alunos da Universidade se reuniram para criar o movimento Zumbi Resiste, que tem como objetivo transferir a homenagem de Jorge Velho para Zumbi dos Palmares, além de transformar o local em um espaço de resistência da cultura negra.
“Uma rua é um pouco de nós e o nome dela não pode ser contra nós. Se é, não devemos mudar de rua, precisamos mudar o nome da Rua. Mudar o nome das ruas, nunca mais mudar de rua.” – disse, José Vicente, reitor da faculdade.
Ocupação da rua
No dia 20 de Novembro, durante a Marcha da Consciência Negra, um chamamento foi feito pelos alunos da Universidade, em plena Avenida Paulista, promovendo uma ocupação na Rua Jorge Velho para pressionar as autoridades pela mudança do nome da rua.
A ocupação aconteceu no última dia 23. Os alunos da faculdade interditaram a rua e exigiram, através de discursos e manifestações artísticas, que a mudança seja feita e encarada com urgência pelas autoridades públicas.
“Acho de extrema relevância a mudança desse nome, por todo processo histórico, pelo assassinato de Zumbi e pela forma que as elites se organizaram para exterminar um líder revolucionário. Essa mudança fará jus ao verdadeiro herói nacional.” – Jupiara Castro, fundadora do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo.
Zumbi dos Palmares nasceu na Serra da Barriga e se tornou líder do Quilombo dos Palmares, tornando-se símbolo de resistência contra a opressão portuguesa. Denominado “O senhor das guerras”, Zumbi foi responsável pela libertação de um incontável número de escravos, se apoderando também das armas e munições, que posteriormente eram usadas na defesa do quilombo. Zumbi virou assim uma lenda entre os afro-descendentes que viviam no país, criando inclusive o mito de que seria imortal.
Foi então que Domingos Jorge Velho recebeu a incubência de destruir o Quilombo dos Palmares, em troca de dinheiro e terras. Velho e sua tropa comandaram diversos ataques ao Quilombo dos Palmares com métodos altamente brutais e sendo descrito por pessoas da época como “um dos maiores selvagens que já haviam visto”. Até que em 1694, as tropas de Jorge Velho, com mais de 6 mil homens, obtiveram êxito e promoveram um verdadeiro banho de sangue no Quilombo dos Palmares, assassinando a maior parte da população que ali vivia e prendendo mulheres e crianças.
Zumbi, mesmo ferido, conseguiu escapar da invasão e em 20 de Novembro de 1695 foi apanhado em seu esconderijo, sendo morto pelas tropas de Jorge Velho que dias depois expressou em ofício a Sua Majestade que Zumbi havia sido morto por um partida de gente do seu terço. Após isso, a cabeça de Zumbi ainda foi cortada, salgada e exposta em praça pública para que fosse usada como exemplo a todos os afro-descendentes da época.
Pressão nas autoridades
Através da #zumbiresiste, uma mobilização está atingindo de forma direta os políticos da cidade de São Paulo, exigindo que a homenagem dessa rua passe a ser de Zumbi dos Palmares. Um petição pública também está disponível para que qualquer pessoa do país possa assinar e reivindicar essa homenagem. Todas as informações estão no site zumbiresiste.com.br.
“Trazer esse absurdo à tona é mostrar o quanto ainda deve ser corrigido. Essa é uma rua, mas quantos Domingos Jorge Velhos são homenageados por aí?” – Alex André, aluno da faculdade.
Por Matheus Gato, doutor em sociologia pela USP e membro do Núcleo Afro/Cebrap, que realiza pós-doutorado com bolsa de pesquisa concedida pela Fapesp.
Uma história política marcada pelo imaginário da raça é, antes de mais nada, uma história feita de silêncios, datas rasuradas, registros incompletos, apagamentos e cesuras que constituem a luta simbólica pelas formas de imaginar uma comunidade e estabelecer a sua memória coletiva. A narrativa oficial acerca da Proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889, em particular, a forma como a participação ou não da gente comum é retratada, e a insistência em tomar cidades como Rio de Janeiro e São Paulo qual metonímias explicativas sobre o que se passou em todo país muito nos têm ensinado a esquecer. Uma das imagens mais recorrentes acerca da instauração do regime republicano entre nós é aquela do povo bestializado, apático, sem tomar posição alguma frente ao golpe de Estado que encerrou o longo reinado de d. Pedro II. Se por um lado tal imagem denuncia o teor palaciano, antidemocrático, com que as elites brasileiras tradicionalmente conduzem as reformas políticas, por outro, reforça a tosca retórica sobre a ausência de virtudes cívicas e morais que se espera de um povo civilizado entre os brasileiros.
Na contramão desse senso comum erudito estão os eventos que culminaram no Massacre de 17 de Novembro em São Luís do Maranhão durante o processo de instauração do novo regime. Naquele dia, uma grande multidão, cerca de 2 a 3 mil pessoas[1], descritas como “libertos”, “homens de cor”, “cidadãos do 13 de maio” e “ex-escravos”, saiu às ruas numa passeata em protesto contra as notícias sobre a proclamação da república. Na visão dessa gente, a mudança de governo vinha para restaurar a escravidão no país. Os manifestantes percorreram as ruas do centro da cidade, dirigindo-se ao edifício do jornal republicano O Globo, que havia marcado uma conferência para o fim do dia. Uma tropa de linha formada por doze soldados fortemente armados de fuzil foi destacada para proteger a sede do periódico, mas isso não intimidou os manifestantes, que ameaçavam atacar os seus dirigentes. O pelotão realizou uma descarga de fuzil contra a multidão, deixando, segundo números oficiais, quatro mortos e vários feridos.
Pessoas mortas no Massacre de 17 de Novembro
Fonte: Relatório que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 6.
Pessoas feridas no Massacre de 17 de Novembro
Fonte: Relatório que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula passou à Administração do Estado em 7 de Julho de 1890, 1890, p. 7.
O registro hospitalar descreve os homens que morreram no conflito como homens solteiros, naturais do Maranhão, de cor preta ou parda. João de Brito, Sergio, Martinho, Raimundo Araújo Costa provavelmente estavam entre os líderes do protesto, pois foram atingidos na linha de frente. Os dados acerca dos feridos nos ajudam a interpretar a ocorrência de um verdadeiro massacre, pois as vítimas foram atingidas em partes do corpo como o peito, braço, antebraço, elemento que qualifica a intenção efetiva de matar e não apenas amedrontar ou dispersar a multidão.
Um dos aspectos que mais escandalizaram os cronistas e contemporâneos ao protesto que culminou no Massacre de 17 de Novembro foi a sua motivação: o medo de retorno à escravidão. Entretanto, as fronteiras entre o trabalho escravo e o trabalho livre eram bem mais porosas que as suas definições legais podem sugerir[2]. O perigo do retorno à escravidão era uma constante na vida dos libertos e a constância da ameaça tornava precária a liberdade. O protesto na cidade de São Luís informa que o medo da escravidão ultrapassou o marco da Abolição, indicando a fragilidade material da cidadania conquistada no 13 de Maio.
Na cidade de São Luís, foram noticiadas denúncias de que alguns senhores insistiam na escravidão, valendo-se de brechas legais para alegar que a Lei Áurea não revogava a obrigação de cumprimento das prestações de serviços pelos adolescentes e crianças alforriadas por efeito da Lei do Ventre Livre (ou Lei Rio Branco), assinada em 28 de setembro de 1871. Argumentavam que as crianças nascidas de “ventre livre” – as chamadas “ingênuas” – deveriam permanecer sob o controle dos ex-senhores de sua mãe até os 21 anos. O jornal A Pacotilha denunciou logo no dia 22 de Maio de 1888, menos de uma semana após a Abolição, “que filantropos há que, não sabemos com que direito, ou com que título, conservam reclusos, debaixo de sete chaves, como se costuma dizer, libertos pela lei de 13 de Maio. Dizem-nos que esta gentileza se dá lá pelas bandas do Caminho Grande”. O não cumprimento da lei deixava no ar o fantasma da reescravização.
O problema do não pagamento da indenização aos senhores de escravos foi outro esteio de legitimação da escravização ilegal de pessoas no imediato pós-Abolição. Uma missiva publicada em 28 de junho de 1888 no Diário do Maranhão, enviada de Vargem Grande, pedia providências ao presidente da Província indagando: “[…] é possível ter-se ainda debaixo de sujeição os ex-escravizados sob o pretexto de não ter sido o possuidor indenizado do valor dos mesmos, pois aqui tem uma entidade representativa que ainda os tem sob domínio, tendo até um deles se evadido par gozar do seu direito”. Nesse sentido, o “medo da escravidão” possuía bases muito concretas não apenas devido à experiência da reescravização e/ou não cumprimento da lei de 13 de Maio, mas, também, devido à permanência da cultura do cativeiro no pós-Abolição. Problema que esteve no centro do protesto que foi às ruas em 17 de novembro 1889. Com efeito, o simbolismo da luta contra a escravidão era forte. O protesto saiu do largo do Carmo onde se localizava o Pelourinho de São Luís. Havia sido ali também que muitos desses homens e mulheres estiveram comemorando a Abolição, pois do Largo do Carmo saíra a “passeata dos libertos” no dia 15 de Maio de 1888[3]. Assim, no dia 17 de novembro, as memórias do cativeiro e sua redenção estavam, por assim dizer, à flor da pele.
Na memória dos negros, a violência do Massacre de 17 de Novembro não se restringiu ao fuzilamento. Em depoimento ao jornalista César Teixeira, nos anos 1970, o cantador de bumba-boi Zé Igarapé contou que seu pai era monarquista e estava entre os manifestantes, razão pela qual não tinha um braço. “Foi cortado pela República”, afirmou na ocasião o brincante popular. No hospital da Santa Casa, o médico responsável em atender os feridos teria dito: “Em barulho de branco, preto não se mete!”[4]. O escritor negro Astolfo Marques (1876-1918) reconstruiu precisamente essa cena no livro A nova aurora (1913), romance dedicado à instauração do novo regime. No livro, a frase possui uma conotação ainda mais ameaçadora: “Quem se mete em coisas de brancos, tem a mesma tristíssima sorte aqui desses teus companheiros”[5]. Imaginadas e narradas nesses termos, as amputações procedidas na Santa Casa ganham fortes conotações de linchamento racial. Nessas representações construídas por negros, a república de 15 de novembro de 1889 se confunde, indelevelmente, com a experiência da subordinação racial.
O problema da tortura policial, durante o governo provisório, certamente ajudou a cristalizar essa imagem. Os suspeitos de integrarem o protesto sofreram intensa perseguição nos dias subsequentes e alguns foram presos. De acordo com o relato de Astolfo Marques, nessas ocasiões “o detido, pela menor queixa, era conservado a pão e água, quando lhe davam, por mais de 24 horas; e, antes de posto em liberdade, se infligiam […] indecorosos castigos, dos quais os menores se limitavam à aplicação de dúzias e dúzias […] de bolos (palmatoadas) e a raspagem dos cabelos”. Os jornais da época dão testemunho que nem mesmo mulheres escaparam da violência. Maria da Paz Rubim teve a cabeça raspada por se envolver em brigas com outra companheira. “A operação foi tão bem feita que lhe deixou várias escoriações ligeiras no couro cabeludo, tendo sido medicada pelo dr. Henrique Alvares Pereira”, informou o jornal A Pacotilha em 19 de dezembro de 1889. Joaquina, residente na rua da Misericórdia, e Clara Maria da Conceição, moradora da rua do Mercado, também tiveram as cabeças e sobrancelhas raspadas. A simbologia desses atos e a humilhação infligida através deles eram fortes: o chamado “raspa coco” foi uma das marcas do tratamento policial aos escravos fugidos, nos últimos anos do cativeiro[6]. Mas, nesse caso, o estigma da escravidão convertia-se em estigma racial.
O protesto de 17 de novembro reagia precisamente a essa reestruturação das hierarquias sociais no pós-Abolição que esvaziava muito dos direitos conquistados com o 13 de Maio. Os rumores, o medo e a crença na possibilidade de retorno à escravidão foram a expressão cruel desse drama coletivo – uma experiência rasurada das maneiras com que os brasileiros dão sentido a sua história. Um massacre não é feito apenas da quantidade de corpos que se abandona ao relento, mas, também de palavras, rumores e, sobretudo, de memória. Para aqueles homens que entregaram a vida pelo medo de serem escravos novamente, o “massacre” nomeava toda uma gama de violências e humilhações para as quais a raça se erguia como linguagem. Massacre é o nome de uma “experiência” que faz lembrar o braço amputado de um pai e a rotina da tortura policial. O Massacre é a força estruturante do racismo na formação do Brasil moderno.
Conferência proferida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP para a abertura do seminário A Cidade e a Questão Racial, realizado em 13 de novembro de 2019.
[1] Milanez, J. L. da S. Apontamentos escritos pelo Capitão do Exército José Lourenço da Silva Milanez fl. 24.
[2] Ver: Chalhoub, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[3] Jacinto, C. “Festejando a liberdade: o 13 de Maio no Diário do Maranhão e na Pacotilha, 2018, p. 13 (mimeo).
[4] Teixeira, C. “Zé Igarapé (I): ‘O gigante do boi da Madre Deus’”, Jornal Pequeno, 14/06/2002, p. 2.
[5] Marques, A. A nova aurora. Maranhão: Tip. Teixeira, 1913, p. 77.
[6] Needell, J. D. “Brazilian Abolicionism, Its Historiography, and the Uses of Political History”, Journal of Latin American Studies, v. 42, 2010, p. 250.
É Brasil. Há uma esfera civil que os perseguidores da democracia não alcançam. Algo parece estar para acontecer. Estou em Brasília no Simpósio Internacional “Indígena-Negro, da ancestralidade ao futuro”, promovido pelo MPT e a OIT. Estou entre os meus e descubro que minha tribo me perdeu. Quando entraram aqueles parentes cantando, vibrando seus maracás nas mãos ornadas, fiquei tonta: rostos pintados cobertos de simbologia; dos cocares aos adornos de peito, mãos, quadris e pés, o corpo tela. Pigmentos, cores, tudo vindo da natureza sem a ajuda de uma papelaria para pincéis ou tintas. Segue a tonteira, a doidera, a ancestralidade gritando na cabeça. É que a maioria do povo brasileiro conta que teve uma avó pega a laço. Ora, se de um lado somos herdeiros de tais estupros, por outro, somos também filhos de uma força que existe há muito mais de 40 mil anos. E que é sabedora dos poderes da natureza mais do que qualquer um da civilização branca. Começo a chorar. O que dói no meu peito é o vácuo. Nunca conheci minha bisavó Domingas. Como se chamaria originalmente? Só ouvi dizer. Que não gostava de usar calcinha. Teria nome de flor? De pássaro? Quem saberia? Foi pega a laço, roubada de sua aldeia, sua gente, sua família. Seu corpo ficou à disposição de seu caçador. Quem sabe me dizer como se chamava antes de receber o nome Domingas?
Julio e o filho, Yonã
O indígena Júlio, dono do cocar mais bonito do simpósio, me apresentou seu menino Yonã e me disse com um sorriso luminoso, banhado de puro Oxóssi: significa “Aquele que caminha sobre as águas”, na língua Xucuru. O outro veio me dizendo o seu nome original, do qual agora não me recordo, e me diz que significa “Barulho que faz o rio que corre à beira dos cajueiros”. Uma outra ainda, linda, pintada de urucum meticulosamente em volta dos olhos, precisa, e absolutamente roots, como se tivesse pulado de um quadro para a realidade, me disse com olhos sorridentes que seu nome era Pekāshaya que significa “Pena linda e verdadeira”. Mas, como não era permitido que indígenas pusessem nomes indígenas nos seus filhos (seria cômico se não fosse trágico) deram-lhe o nome de Edna. Um verdadeiro poema lhe foi tirado para ser nomeada com um nome que não conta a sua história, o seu lugar na sua tribo.
Depois veio a conversa com os Kalungas, os quilombolas, o povo preto que está no mundo desde os primórdios, o primeiro homem. A mesma história se repete, nomes lindos que em sua tradução ficam parecendo versos: “A que veio para trazer a paz”, “Os olhos de Deus”, “Presente de Oxalá”, “A que traz grande honra”. Veio uma jovem escritora linda me dizendo que seu nome era Semayat, em aramaico, língua etíope, e que quer dizer “Sol ou Céu do meio dia”. Meus olhos se encheram de lágrimas de novo ao saber disso. A hora em que nasci! Me senti órfã também da história do nome africano que me antecedeu.
Estou aqui entre Guaranis, Kaiowás, Kalungas, Pataxós, Fulniôs, quilombo Buriti do Meio, Terenas, Xukuru, Shanenawas, Bororós, Xoklengs, quilombo Retiro dos Bois de Minas, Kadiweu, Kariri xocó, Quilombo de Mesquita, Tupinambás ha ha hãe, Quilombo João Borges de Uruaçu, Jardim Cascata de Aparecida, Xavantes, BarésMundurucus e quilombo Conceição das Criolas. Estou em casa. Entre memórias. Se a gente tivesse se juntado antes, índios e negros, Crivella não tinha ganhado no Rio, nem o Witzel. Faltou terreiro, faltou maracá. Pouca gente sabe, porque isso nossa história oficial não quer contar, que em Palmares viviam indígenas, pretos refugiados e até brancos legais. Consta que eles já existiam naquela época. Inconformados, Lgbts, os sensíveis em geral, orientados por Xangô, pelo Sol, pela Lua, fundaram ali uma nação justa. O Sol, deus indígena, governa para todos. O Sol é de esquerda já que ilumina sem diferenças de classes, em relação a negros, indígenas e baianos. A união dessas forças sob fundamentos tão comuns é mesmo imbatível. Para o indígena, ele é quem pertence à mata, não é dono dela, por isso é guardião. Ele cresceu brincando de fazer a própria casa com material vindo da natureza: barro, palhas, galhos, troncos, folhas. Não sobrevive sem as coisas que planta ou que caça. Da mesma maneira, um filho de Oxóssi não desmatará pois é ele próprio a mata. Uma filha de Yemanjá não ofende o mar pois é ela o próprio mar. E assim por diante.
Alguma coisa parece que vai acontecer, uma coisa nova. Sinto os tambores, a força do canto desses dois povos. Ser humano é um ser ambientalista naturalmente. Fomos separados, foram queimados os nossos nomes, fomos pulverizados em navios diferentes para que não nos juntássemos, vivemos numa hora em que essa união se tornou irreversível. Há pouco tempo raramente se via um elenco de maioria negra em cartaz. Agora, pelo menos nas principais cidades brasileiras, o que se vê é uma proliferação imparável do que estão chamando de lugar de fala. Uma ocupação de espaços nunca dantes navegados em grupo. Era sempre um único preto solitário em cada elenco, em cada trincheira. Agora que avançamos e que o sistema de cotas misturou as cartas do jogo, agora quando nós somos a maioria pela primeira vez nas Universidades, não se pode dar mais ré nisso, e podemos dizer que o Brasil está realmente se preparando para ser um novo país. No último dia do simpósio, com saudações aos orixás, à ancestralidade, às sagradas escrituras todas expostas na natureza e nela refundadas, todos tínhamos a impressão de que algumas coisa muito grande estava para acontecer. Não passou um dia e deu bem alto nos jornais virtuais e gerais que Lula estava livre! Eu sabia que alguma coisa ia acontecer.
Toda dominação branca que nos acostumou a chamá-la de civilização tem muito que aprender com os fundamentos dos que tenta, há anos, dizimar.
Eu só sei dizer que quanto mais aprendemos com os povos originários, mais acessamos os antídotos para mazelas atuais, mais encontramos explicações para o que somos, de onde viemos, para onde vamos. Apartada e separatista, longe dos princípios amorosos com o planeta, a humanidade civilizada segue batendo cabeça, longe de si e louca por dinheiro, motivo de crimes,roubos e infelicidades.
Voltei mais nutrida, tomei lição de casa. Não sei se no meu nome indígena corre um rio, nem sei se há no meu nome africano uma estrela do mar, mas caminho na linhagem da ancestralidade e quanto mais pesquiso, quanto mais aprendo sobre o que mataram ou tentaram ocultar, fica mais fácil lembrar.
Matapacos foi um famoso cão viralata que apareceu nos protestos de estudantes para a educação gratuita em 2010, desafiando o gás lacrimogêneo e os canhões de água e acompanhando os estudantes como um companheiro leal em sua luta, apenas atacando ou latindo para os “pacos” (gíria chilena para “policiais”) e nunca estudantes e manifestantes.
A imagem do cachorro preto de bandana vermelha é compartilhada em todo o país por todas as redes sociais. Os chilenos sempre prestam homenagens ao cão que marchou com o povo e ficou ao lado deles quando enfrentavam a violência do Estado. Muitos cartazes, desenhos e pixações vistos nos protestos de hoje fazem lembrar Matapacos com frases como: “Estai Presente! (Eu estava presente!)” e “In Tu Memória (Em sua memória)” e tratam-no como um santo padroeiro dos manifestantes.
Negro Matapacos morreu de velhice há 2 anos, mas o seu espírito rebelde vive nas ruas de Santiago e de outras cidades em todo o Chile, enquanto o povo continua a lutar pela justiça e pela igualdade.
Três anos para a História é muito pouco. Normalmente, são de períodos mais longos que saem as grandes transformações que vão moldando a sociedade. No entanto, de 17 de abril de 2016, data da aprovação do processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, até os primeiros meses de 2019, o Brasil foi de um governo democraticamente eleito por 54 milhões de pessoas, passando pelas mãos de uma ala golpista e terminando sua caminhada em um governo de extrema direita. E é justamente para o ponto inicial dessa trama, o crucial 17 de abril, que o documentário “Tchau, Querida” olha atentamente.
Dirigido pelo documentarista Gustavo Aranda e pelo jornalista Vinicius Segalla, e produzido pelos Jornalistas Livres, o longa será exibido, com entrada gratuita, no CINUSP Maria Antônia, em São Paulo, na próxima quarta-feira, dia 17 de abril. O filme, que acompanha os bastidores das votações que culminaram com o afastamento de Dilma do Palácio do Planalto, traz uma visão equilibrada das forças atuantes no processo. Com igual espaço para os que gritavam “não vai ter golpe” e para aqueles que só queriam acabar com o “comunismo e a esquerda”, a produção acerta ao deixar que espectador tire suas próprias conclusões a respeito dos desejos e anseios de cada um dos lados.
Enquanto os vestidos com camisas da seleção brasileira posavam para selfies em espaços equipados com food truck e Djs, se diziam “diferenciados” e vendiam pixulecos “originais”, os de vermelho compartilhavam refeições comunitárias, recebiam doações e ouviam atentamente a um presidente Lula quase afônico de tanto discursar.
Entre uma entrevista e outra, o documentário vai também revelando o crescente apoio da extrema direita aos militares e até mesmo a uma possível intervenção, além do alinhamento com correntes religiosas. Não por acaso, retrato fiel do governo atual.
A produção abarca ainda a relação conturbada que a sociedade estabeleceu com a imprensa no período, discutindo por meio de pontos de vista divergentes o papel da comunicação no processo. Quando Dilma aparece na tela, já virtualmente fora do comando do país, são flores e sorrisos que ela traz nas mãos e distribui aos seus eleitores. E a frase “Tchau, Querida”, tão negativamente explorada durante muito tempo, ganha seu real e único significado.
SERVIÇO
“Tchau, Querida”
17 de abril, 19h
Centro Universitário Maria Antonia
Edifício Rui Barbosa – Sala Carlos Reichenbach
Rua Maria Antonia, 294
Após a exibição, haverá mesa redonda com os diretores e convidados
Em meados da década de 70, pouco depois de o ditador de plantão, Ernesto Geisel, iniciar seu governo, a revista “Circus”, de Belo Horizonte, foi apreendida e acabou recebendo os carimbos de vetos da censura em 50 de suas 64 páginas. E assim, acabou se tornando, certamente, em um caso único de publicação a ostentar os carimbos da censura, já que foi submetida à Polícia Federal após sair da gráfica. Na época, algumas publicações como o Pasquim, Opinião e Movimento, eram submetidas à censura prévia, que não deixava rastros.
O alvo da Polícia Federal foi a edição de número 3 da revista, que, cheia de vida, começava a chamar a atenção dos órgãos de repressão e a incomodar, não só pelo atrevimento de seus textos, mas também pela vigorosa criatividade dos ilustradores e chargistas. Nas edições anteriores, Circus já virava notícia nacional ao publicar a entrevista de um ex-integrante da TFP, a organização reacionária e direitista Tradição, Família e Propriedade, escancarando pela primeira vez seus bastidores.
Assim como incomodou, certamente, a matéria sobre o banqueiro e empresário tarado Antônio Luciano Pereira e sua estranha mania sexual. Perto dele, então homem mais rico de Belo Horizonte, hoje o médium goiano João de Deus seria fichinha. Ficou famoso por comprar a virgindade de garotas pobres, muitas vezes ‘vendidas’ por mães em dificuldades financeiras. Temeroso de ficar “brocha”, Luciano chegava ao ponto de pagar uma fortuna por ovos de urubu, por acreditar que ali estava o santo remédio para garantir a sua vitalidade e potência sexual, segundo me revelou mais tarde um dos seus inúmeros filhos (e filhas) reconhecidos e não reconhecidos.
Apreensão
O resultado é que no dia 2 de abril de 1975 agentes da Polícia Federal invadiram a casa que constava como sede da revista Circus, a residência de meus pais. Alguns exemplares encontrados foram levados e, na saída, os policiais deixaram o recado de que a revista teria de ser registrada no Departamento de Polícia Federal. Na época, existia uma portaria estabelecendo que a publicação que tivesse grampo ficava caracterizada como revista e, por ser revista, teria de ser registrada no departamento de censura da PF. Para que isso fosse efetivado, teria de ser entregue um exemplar da publicação, a fim de ser submetido à censura.
Passados alguns dias após ser entregue, o exemplar foi devolvido apresentando o carimbo da PF em praticamente todas as suas páginas. Ou seja, a revista levou bomba ao solicitar o seu registro, inviabilizando a sua continuidade. Assim, o exemplar com as marcas da censura acabou transformando-se numa raridade, já que seria o único com a mostrar as marcas da censura.
Durante o governo Dilma, a raridade foi doada ao Museu da Anistia, em construção em Belo Horizonte, mas, diante do golpe de 2016, as obras do memorial foram paralisadas por determinação dos golpistas. Portanto, resta esperar e lutar para que mais cedo ou mais tarde o exemplar da Circus esteja em exposição, para ajudar a mostrar um pouco de um triste período em que só mesmo um imbecil como Jair Bolsonaro guarda boa lembrança.