Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.
Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…
O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus
Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.
Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.
Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.
Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.
Obrigada, querido companheiro!
Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.
Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres
Imagine uma epidemia que se alastra rapidamente e mata entre 10% e 20% dos infectados. Imagine que essa epidemia mata principalmente crianças e em especial as da periferia, com menor acesso ao saneamento básico e à saúde. Agora, imagine que por três anos os meios de comunicação sejam censurados nas reportagens sobre a epidemia, que os médicos sejam proibidos de dar entrevistas e que o Ministério da Saúde, controlado por militares, não divulgue os números corretos sobre a doença e as mortes. Isso já aconteceu no Brasil, e não faz tanto tempo assim.
Entre 1971 e 1974, pelo menos 60 mil pessoas de sete estados brasileiros (40 mil só em São Paulo, o epicentro da epidemia) foram infectadas pela bactéria causadora da meningite. Até hoje é impossível precisar quantos morreram. Mas para impedir o que achavam ser uma histeria dos médicos, os militares decidiram esconder esses fatos, e os mortos, da população. Centenas, talvez milhares de crianças, aliás, foram enterradas na mesma vala comum clandestina do cemitério de Perus, na capital paulista, onde eram jogados os corpos de dissidentes políticos torturados e mortos pelo Doi Codi.
Um ótimo vídeo curto sobre a epidemia de meningite e a maquiagem de dados da ditadura militar está disponível no canal Meteoro.doc. Ontem, o canal publicou um novo vídeo, tratando especificamente da atual maquiagem de dados e da disputa de narrativas entre o novo governo militar, que teoricamente ainda não é uma ditadura, e os meios de comunicação para se informar ou desinformar a população.
O tratamento governamental da epidemia de meningite dos anos 1970 só vai mudar em 1974, com um novo general no poder e a aquisição pelo governo de 80 milhões de doses da vacina. Sim, já havia vacina para a meningite e o governo sabia que se tivesse feito uma campanha de vacinação anos antes, teria poupado milhares de vidas. Mas pra que admitir um genocídio se podia dizer que havia um “milagre econômico”? É como disse a ex-secretária da Cultura, Regina SemArte: é muito peso carregar essa fileira de mortos.
Telegrama da Polícia Federal ordenando a censura nos dados sobre a epidemia de meningite. Fonte: Twitter do historiador Lucas Pedretti @lpedret. Como os telegramas não tinham pontuação, usavam a sigla VG para vírgula e PT para ponto final.
Assim, em julho de 1974, com a admissão oficial de que havia uma epidemia, o jornalista Clovis Rossi, então trabalhando no jornal O Estado de São Paulo, preparou uma grande reportagem de capa, intitulada Epidemia de Silêncio, na qual dizia: “Desde que, há dois anos aproximadamente, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títulos de esclarecer ampla e totalmente”. Leia a matéria completa aqui.
Mas, claro, militares não gostam que digam quais são suas obrigações e publiquem que estão desinformando a população. Assim, a matéria de Rossi foi censurada e em seu lugar o Estadão publicou um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.
Por causa da Lei da Anistia, de 1979, os militares jamais foram responsabilizados criminalmente pelas mortes na pandemia e nem pelas torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres de dissidentes políticos. Mas talvez a história não se repita com a pandemia de coronavírus. Ontem, o Supremo Tribunal Federal, atendendo a uma ação dos partidos Psol, PCdoB e Rede Sustentabilidade, determinou a divulgação diária das informações sobre os dados de Covid-19 até às 19h30, pelo Ministério da Saúde. E também ontem, o Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, decidiu analisar a denúncia do PDT de genocídio promovido pelo Governo Bolsonaro. Esse é um caso raro, já que normalmente o TPI só julga ex-governantes acusados de crimes contra a humanidade.
Da: MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres
Desde de 2019, com as manifestações contra os cortes na educação e a deforma da previdência, Cuiabá não juntava tanta gente nas ruas. E talvez nunca tenha havido tamanho contingente policial, incluindo helicóptero, para o improvável caso de “vandalismo”. Mas era mesmo de se esperar. Afinal, o racismo estrutural brasileiro em uma das capitais mais conservadoras do país exige que se trate os pretos e pretas sempre como potenciais criminosos. BASTA! O país não pode mais conviver e não conseguirá sequer viver como nação integral enquanto houver preconceitos que se refletem em práticas cotidianas e políticas públicas que oprimem e excluem a maior parte da população.
Texto e fotos: www.mediaquatro.comTexto e fotos: www.mediaquatro.com
Chegamos a um ponto no Brasil que não é mais suficiente não ser racista. É preciso lutar contra o racismo, nas ruas, nas redes, nos campos e nas casas. E a luta antirracista é central na derrubada do governo Bolsonaro e suas políticas genocidas na economia, na segurança pública e na saúde. Foi por isso que, apesar da necessidade de se intensificar o isolamento social, fomos à Praça Alencastro e marchamos pelas avenidas Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Isaac Póvoas e BR 364 para retornarmos à Praça da República sem qualquer incidente.
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Assim como em outras cidades e estados por todo o Brasil, em Cuiabá e Mato Grosso os negros e negras são maioria e são exatamente os corpos pretos os mais encarcerados, os pior pagos, os que vivem nos lugares mais distantes, os que mais precisam trabalhar fora de casa durante a pandemia (e muitas vezes sem sequer os equipamentos de proteção adequados) e os que mais são atingidos pela Covid-19. Isso não é uma coincidência. É resultado de quase 400 anos de escravidão formal, que em Mato Grosso também vitimou indígenas em larga escala, e de uma abolição inconclusa que indenizou os “proprietários” de pessoas mas nunca pagou a dívida histórica com quem sente na pele seus efeitos até hoje.
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É fato que o assassinato do estadunidense negro George Floyd foi o estopim dos protestos antirracistas em todo mundo e também no Brasil, onde houve atos em pelo menos 20 cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Mas por aqui, as mortes do menino Miguel, do adolescente João Pedro e dos jovens em Paraisópolis, só pra citar alguns casos mais representativos nos últimos seis meses, demonstram cotidianamente o que significa ser alvo do preconceito, da polícia e das políticas.
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Desse modo, derrubar o governo o quanto antes o governo do fascista que ocupa a presidência é indispensável para conseguirmos combater a epidemia de forma minimamente eficiente. E tirar apenas o presidente não é suficiente, porque seu vice e ministério são igualmente racistas, como está provado em entrevistas antes mesmo das eleições, em pronunciamentos em eventos e na fatídica reunião ministerial.
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Enquanto não derrubarmos as políticas estúpidas da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa, da concentração de renda, do agronegócio acima da agricultura familiar, não há presente para o país. E enquanto não investirmos em políticas públicas de igualdade racial e de gênero, de proteção às minorias e à diversidade, e de promoção dos direitos humanos a TODOS e TODAS, incluindo a punição de policiais assassinos, milicianos e racistas, não haverá futuro também.
Podcast Vida em Quarentena
Ep. 06 Quarentena no Brasil Desigual
Desigualdade é uma palavra que define a realidade de um país periférico no capitalismo mundial. Agora, algo que se acentua ainda mais por conta da ausência de políticas de saúde no combate ao coronavírus nas periferias. No último episódio desta primeira temporada a gente quis saber como a quarentena tem afetado a vida de quem mora em regiões periféricas ou do interior das cinco regiões do país. Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Em uma parceria com estudantes, jornalistas e coletivos de comunicação, fomos atrás de histórias que mostram as diferentes realidades de um período que acentua ainda mais a desigualdade. Quais as vozes do Brasil na Vida em Quarentena?
Produção em parceria entre o Comunicast da UFMT com a repórter Ana Beatriz Felício da Agência Mural das Periferias; os estudantes Daniel Santos e Vick Melo Rádio Cordel da Universidade Federal de Pernambuco; o jornalista freelancer do Rio de Janeiro Marcos Furtado, a vice-cacique da Comunidade Iawá do povo Curuaia da Volta Grande do Xingu (Pará) Lorena Curuaia e os estudantes da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no Paraná, Victor Prado e Mayara Maier.
Conheça também o trabalho voluntário da Gabriela Galiassi com surdos nesta quarentena
A gente ama áudio mas entende que ele não é totalmente acessível. Se você escutou o último episódio do Vida Em Quarentena, sabe da história da Gabriela Galiassi (@gabigaliassi no Instagram). Em meio a pandemia, ela ajuda surdos e surdas a compreender alguma notícia confusa ou se comunicar com os médicos no hospital. Compartilhe o vídeo para que mais gente saiba dessa ação.
Encontro com produtores do Vida em Quarentena e correspondentes de todo o país irá debater a situação da pandemia nas periferias do Brasil e comunidades do interior. Como produzir um podcast narrativo no período de pandemia? Fontes, entrevistas, edição, roteirização e desafios dos estudantes na primeira temporada do Vida em Quarentena!
Por: Lázaro Thor Borges, especial para o Congresso em Foco
Corrupção, fraude eleitoral e assassinato: estas são algumas das acusações feitas, durante o regime militar, contra o atual presidente da Comissão de Ética do Senado, Jayme Campos (DEM-MT). Os relatos das investigações estão em documentos arquivados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem dos militares. Nestes arquivos, Jayme e seu irmão, Júlio Campos(DEM-MT), que é candidato ao Senado na eleição suplementar decorrente da cassação do mandato da ex-senadora Selma Arruda (Podemos-MT), são apontados por investigadores do SNI como autores de diferentes crimes.
Apesar dos relatórios produzidos, das cartas, dos dossiês e outros documentos, Jayme e sua família nunca foram formalmente acusados. Os Campos são o clã político mais poderoso de Mato Grosso e grande parte deste poder foi conquistado nos 1980, quando dominavam o PDS, principal herdeiro da Arena, legenda de apoio à ditadura.
Uma das denúncias aparece em um dossiê elaborado pelo SNI em 25 de maio de 1984, que aponta o enriquecimento da família Campos às custas de dinheiro público. Caçula do clã, Jayme Campos estava no primeiro ano de mandato como prefeito de Várzea Grande, cidade contígua a Cuiabá e berço político da família.
No comando do governo de Mato Grosso estava o irmão de Jayme, Júlio Campos (DEM-MT). O documento, que foi classificado como “confidencial” na época, estava depositado no Arquivo Nacional, onde permanece até hoje. Segundo o relatório, a família Campos participava direta e indiretamente do quadro societário de pelo menos oito empresas que venceram licitações no governo do estado e que, já no primeiro ano das gestões de Júlio e Jayme, elevaram seu capital social.
A família Campos controlava, segundo o SNI, as empresas Empreendimentos Santa Laura S.A., Rádio Industrial de Várzea Grande S.A., Aquário Engenharia e Comércio S.A., Eletroeste Comércio de Produtos Elétricos S.A., JHG Recuperadora de Transformadores Ltda., Terramat Terraplanagem Matogrossense Ltda., Asteca Mineração Ltda. e Rádio e Televisão Brasil Oeste.
Jayme era sócio direto de pelo menos duas dessas empresas: Terramat e Empreendimentos Santa Laura. A Terramat foi a segunda construtora que mais ganhou contratos com o governo e, principalmente, com a prefeitura de Várzea Grande, comandada pelo próprio Jayme. De 1983 a 1984, a Terramat venceu 11 licitações, duas realizadas na prefeitura, com valores de obras que não foram divulgados.
Jayme Campos (DEM-MT), em sessão do Congresso Nacional
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
A Aquário Engenharia, outra empresa que segundo a investigação do SNI era controlada pelos Campos, venceu 12 licitações no mesmo período. Seu capital social saltou de Cr$ 236 milhões em dezembro de 1982 para Cr$ 1,3 bilhão em março de 1984. Em março de 1982, antes da eleição em que os Campos venceram, a Terramat tinha um capital social de Cr$ 58 milhões, depois da posse de prefeito e governador este valor passou para Cr$ 260 milhões e, no ano seguinte em 1984, a empresa chegou a Cr$ 850 milhões.
“Torna-se evidente, pelo número de licitações que as firmas Aquário e Terramat se saíram vencedoras em apenas um ano do governo Júlio José de Campos, que as mesmas estão sendo beneficiadas. Por outro lado, causa estranheza os súbitos e elevados aumentos de capitais que tais empresas tiveram, a partir do momento em que Júlio Campos teve certeza de ter ganho as eleições de 1982”, diz trecho do relatório do SNI.
SNI.
Os investigadores do SNI também suspeitavam que Jayme e Júlio elevaram o capital social de suas empresas em dezembro de 1982 já cientes de que ganhariam a eleição e que, com o capital aumentado, poderiam participar de licitações com o poder público. Além disso, de acordo com o relatório, essa movimentação seria um indicativo de aumento do patrimônio depois que eles já estivessem em seus cargos.
Suspeita de propina
Parte desse relatório revela que uma investigação preliminar, feita pela Agência Regional do SNI em Cuiabá, indicou a possibilidade de existência de um esquema de cobrança de propina envolvendo empreiteiras que tinham negócio com o governo comandado por Júlio Campos.
Conforme o relatório, a Dinâmica Nasser Representações Ltda., sediada em Campo Grande, no estado vizinho de Mato Grosso do Sul, intermediava irregularmente credores do estado. A empresa, ainda segundo o documento, encaminhava credores para tratarem de suas dívidas com o empresário Jorge Pires de Miranda, cunhado de Júlio, que repassava a negociação para o governador.
Neste último estágio, prosseguia o SNI, o pagamento só era viabilizado se o credor aceitasse retornar, para as mãos de Júlio, 10% do que o estado lhe devia. “O motivo alegado para a ação corrupta é o de criar um ‘fundo’ para financiar sua campanha ao Senado Federal”, diz o documento da investigação.
Fraude nas eleições e assassinato
A convicção na vitória daquela eleição não era tão firme em novembro de 1982 quanto se tornou em dezembro do mesmo ano, quando o capital social das empresas foi elevado. Nas vésperas da disputa, os Campos temiam a derrota. Os primeiros a relatarem publicamente a angústia do clã Campos foram os policiais civis Márcio Roberto Tenuta França e Laury San Martin da Paixão, presos quatro anos depois, em 1986, acusados de comporem um “Esquadrão da Morte” que, segundo os próprios acusados, era liderado pelo governador Júlio Campos.
Márcio Tenuta e Laury Paixão contaram em depoimento prestado à polícia por conta de outros crimes que, no início de novembro daquele ano, a família Campos se reuniu na Rua 24 de Outubro, em Cuiabá, para pensar estratégias que pudessem frear o avanço dos candidatos Celso Mendes Quintela, rival de Jayme na prefeitura de Várzea Grande, e do Padre Raimundo Pombo, rival de Júlio para o governo do estado. Os dois, Quintela e Pombo, eram filiados ao MDB.
Os dois policiais contaram que o empresário Jorge Pires de Miranda, cunhado dos Campos, ofereceu, logo depois da reunião, quarenta milhões de cruzeiros para que os dois matassem Celso Mendes Quintela. Os policiais afirmaram que recusaram a proposta e que, dias depois, outro policial, a mando da família, executou o adversário emedebista.
“Foi o Jorge que ofereceu dinheiro para matar o Quintela, mas eu e o Peninha não aceitamos; no dia seguinte o Jorge me propôs um dinheiro, não lembro quanto, para matar o Padre Pombo, e eu não aceitei”, diz trecho do depoimento de Márcio Tenuta, que foi entregue ao SNI através de um relatório classificado como “urgentíssimo”.
A morte de Quintela fez surgir, no ambiente político de Mato Grosso, uma cortina de silêncio. No dia 26 de novembro de 1982, quando foi morto, o advogado iniciava uma busca desenfreada para tentar provar que as eleições em que saiu derrotado tinham sido fraudadas.
“Ele estava na Alameda Júlio Muller, em Várzea Grande, tinha conseguido pegar uma testemunha das fraudes, exigia que o sujeito falasse”, conta um membro do MDB da época, que pediu anonimato. “Um outro carro se aproximou e alguém disparou um tiro que acertou a cabeça do Quintela, todos sabiam que ele estava investigando as fraudes”, completa.
No dia 27 de novembro, um dia depois da morte do candidato, o MDB entrou com recurso na 1ª Zona Eleitoral de Cuiabá solicitando a anulação de toda disputa daquele ano. Os documentos entregues pelos diretores do MDB apontavam a existência de mais de 30 mil nomes repetidos nas urnas, além de nomes de pessoas falecidas ou não habilitadas para votar.
A repercussão da denúncia se tornou ainda mais intensa nos jornais, com a revelação de imagens de urnas eleitorais que foram encontradas boiando no rio Cuiabá. Nos registros oficiais no Tribunal Regional Eleitoral, Jayme venceu Quintella por uma diferença de 3 mil votos e Júlio venceu o Padre Raimundo Pombo por uma diferença de 14 mil votos. Mas, na visão dos que viveram intensamente aquela disputa, as fraudes comprovadas reverteram totalmente o resultado.
“Eu me lembro muito bem que, logo depois da morte do Quintela, fomos procurar o padre Raimundo Pombo para protestarmos e ele, religioso que era, pediu que desistíssemos, me falou ‘esqueça esta história, meu filho’, acho que ele estava com medo”, conta outro militante da época, que também prefere não revelar seu nome.”
Aos poucos, o silêncio foi tomando conta do cenário político. Os protestos iniciais realizados pelo MDB e monitorados pelo SNI foram desaparecendo. O caso só voltou à tona em 1986, justamente por conta do depoimento dos policiais. Depois da divulgação das denúncias na imprensa, o diretor do MDB em Várzea Grande redigiu uma carta ao ministro chefe do SNI na época, general Ivam de Souza Mendes, em que denunciou com mais detalhes como foi o assassinato de Quintela.
“As provas já se avolumaram de tal sorte a ponto de ninguém mais duvidar de que as eleições seriam indubitavelmente anuladas”, diz trecho da carta sobre a investigação paralela que Quintela teria realizado. “No dia 24.11.82 recebe o Dr. Celso uma estupenda oferta para abandonar a luta pela anulação da eleição […] nada mais, nada menos que Cr$ 50 milhões a alta cúpula pedessista oferecia à Quintela com um certo ar de ameaças, como quem diz: aceita ou daremos um jeito”, narra a missiva, assinada por um diretor do MDB que, ao ser procurado pela reportagem, se recusou a comentar sobre o assunto.
Em 2001, o acusado pela morte do candidato do MDB, Daniel Germano Gonçalves, foi absolvido por júri popular. Três anos depois, em 2003, ele foi condenado a cumprir pena em regime semiaberto após a Justiça determinar novo julgamento. Daniel disse aos investigadores que tentava defender seu irmão, Timóteo Gonçalves, que, segundo Quintela, tinha provas das fraudes naquelas eleições. O depoimento dos policiais do esquadrão da morte foi arquivado.
Em 2013, Júlio Campos voltou a ser relacionado a um assassinato. Nesse caso, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por homicídio, apontado como mandante das mortes do geólogo Nicolau Ladislau Eryin Haralyi e do empresário Antônio Ribeiro Filho, em 2004. Os dois foram, mortos segundo o MPF, por conta da disputa de uma terra de 87 mil hectares com diamantes em Mato Grosso. Em fevereiro deste ano o processo prescreveu e foi extinto.
Júlio Campos foi governador de Mato Grosso e deputado federal. Foto: Agência Câmara
Em 2014, quando era deputado federal, Júlio teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, acusado de compra de votos e gasto ilícito de dinheiro público na sua campanha eleitoral. A cassação, no entanto, foi derrubada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Outro lado
A reportagem do Congresso em Foco procurou as assessorias de Júlio e Jayme Campos. Os dois decidiram que o senador falaria sobre o assunto. Em contato por telefone, Jayme afirmou que as denúncias sobre assassinato político e fraude eleitoral foram provocadas pelo MDB na época porque o grupo derrotado estava insatisfeito com o resultado daquelas eleições.
“O Quintela foi morto por pistoleiros dele”, afirmou Jayme. “Eu nunca fui ouvido nem ninguém da minha família, o MDB daqui, derrotado porque ganhamos as eleições, criou este factoide contra nós. Como tem envolvimento nosso se eu nem sei quem foi o autor e quem brigou com o cara? Ninguém nosso foi ouvido, nem eu nem o Júlio Campos”, afirmou.
“Quem pode ter matado ele eram adversários dele do MDB, conosco nunca teve nada, eu tive 70% dos votos. Quem poderia ter matado eram adversários dele dentro da coligação, nunca fui ouvido nem tenho conhecimento disso daí”, completou.
Em relação aos demais relatórios do SNI, que citam as denúncias de esquemas de corrupção e a participação de empresas da família, Jayme nega todas as acusações. Ele afirma que o relatório é mentiroso. Cita, por exemplo, que a Terramat estava falida no governo Júlio Campos.
“Chegou em 1981 a empresa quebrou, espatifou, mas não trabalhou no governo Júlio Campos nem no meu”, relata. “Este relatório está mentindo, está faltando com a verdade, esta firma foi montada em 1978 e por volta de 1981 ela faliu, nunca trabalhou no governo, isso aí tudo é denúncia de adversário. Nós somos limpos”, afirmou.
Jorge Pires de Miranda, que também foi procurado, disse não querer comentar as denúncias. Segundo ele, o caso do assassinato de Quintela já foi investigado e julgado e não há nada que ligue seu nome ao assunto.
Júlio Campos (DEM) também foi ouvido pela reportagem. Ele negou as acusações e alegou que as denúncias são uma “pilhéria” e que se realmente fosse culpado teria sido investigado e julgado. Ele lembrou que nunca foi chamado pelo chefe da SNI na época, cuja sede na ocasião era em Campo Grande (MS), e que era comum que adversários políticos procurassem o órgão para provocar factóides.
“Nas eleições de 82 o povo Mato Grosso é que optou por um cara jovem, deputado federal, e um padre de 70 anos, falando em plantar mangueira e goiabeira na beira da estrada, aquelas maluquice… Eu ganhei a eleição e o MDB ficou frustrado”, afirmou o ex-governador de Mato Grosso.
Júlio contou que nunca soube da existência das denúncias e que, mesmo assim, “nada o abalou”. Sobre a acusação de ter enriquecido empresas em que era sócio em seu governo, Júlio lembra que a família “nunca foi pobre” e que a maioria dos bens já pertenciam a seus parentes.
A família Campos define-se publicamente como descendente de Antônio Pires de Campos, o primeiro bandeirante a chegar em Mato Grosso. Pires de Campos chegou na região à procura de índios para vender como escravos em São Paulo.
“Todos nós estudamos no Rio de Janeiro e em São Paulo, nós nunca fomos pobres”, conta. “A maioria destes bens já eram da família Campos antes da política, meia Várzea Grande é nossa hoje, era da minha avó, da minha bisavó, naquele tempo quem morava em Cuiabá e conseguiu conservar ficou bilionário”, explicou.
Com reportagem de Flávia Martinelli e Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS
Todo quilombo é memória viva. Cada espaço de resistência criado por remanescentes de escravizados é mantenedor da cultura e da história afro-brasileira. Os 2.847 territórios reconhecidos, apenas entre os certificados no Brasil, carregam em seu cotidiano aquilo que os livros não contam. São, por si só, espaços educacionais preciosos. E ainda há centenas, talvez milhares, que sequer foram mapeados – algo que o Censo de 2020, atualmente adiado, iria quantificar e é fundamental para a discussão de políticas públicas. A negligência diante do risco de contágio pelo coronavírus nessas comunidades representa (mais um) risco de extermínio institucional.
Se no passado quilombos lutaram por liberdade no regime escravista, hoje é o descaso e até a inconstitucionalidade do Estado que comprometem vidas de remanescentes, além do acesso ou preservação de suas terras, natureza e ensinamentos ancestrais. Na última sexta-feira (27), por exemplo, em meio à pandemia do covid-19, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, assinou e anunciou que o Brasil irá remover as mais de 100 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão.
O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre instalação e impactos de projetos em territórios tradicionalmente ocupados (Foto: Reprodução/Conaq)
Triste ironia, no século 19, bem à época da escravidão, as ricas famílias de fazendeiros de açúcar e algodão em decadência econômica abandonaram a cidade quando uma epidemia, provavelmente de febre amarela, se abateu no local. Apenas negros e indígenas permaneceram entre os casarões e a doença. Lá permaneceram desde então. São os donos das terras, portanto, por posse e direito adquirido, ainda que a luta por reconhecimento como terra quilombola nunca tenha chegado a um acordo.
A expulsão, que vai contra a recomendação de isolamento social, é motivada pelo convênio que o presidente Jair Bolsonaro fez com os Estados Unidos, para uso do local como mais uma base espacial norte americana. O ato viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais. Em repúdio, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) pressiona o Estado por políticas públicas adequadas, principalmente diante da pandemia.
Fábrica de bolos da comunidade quilombola do Canelatiua em Alcântara: populações expulsas em plena pandemia para construção de base espacial americana (Fotos: Reprodução Facebook)
A violência institucional se somou a outra na mesma semana, quando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento público, afirmou que há presença de SUS em 100% dos quilombos de todo o país. Não é verdade. Ainda que o trabalho de visita de profissionais do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) seja muito bem avaliado, houve impacto na saída dos médicos cubanos no Brasil nas áreas rurais e, por consequência, nos quilombos. A precariedade das dinâmicas de saúde, quando existem, ou das complicações do deslocamento para atendimento em municípios vizinhos, também continuam na pauta de reivindicações do movimento quilombola.
A política de morte que dá licença para matar
Em tempos de covid-19, todas essas dificuldades se intensificam e amedrontam quilombos que, culturalmente, reverenciam e exaltam seus sábios anciãos, os chamados griôs. “Eles são nossa memória e nossa história. Telefono aos mais velhos e explico que eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro”, conta a cientista social Marta Quintiliano, do Quilombo Vó Rita em Goiás. Ali, o posto médico mais próximo fica a 35 minutos a pé da comunidade.
Marta cita o filósofo e professor camaronês Achile Mbembe para esclarecer que as negligências tem endereço. “Sim, existe uma necropolítica e um necropoder que, juntos, escolhem os sujeitos que vão morrer e que vão viver”, menciona. A teoria escancara a crueldade das práticas de morte de governantes que priorizam a criação de políticas públicas voltadas para populações que não são as que mais necessitam delas. O poder estatal ganha, assim, licença para matar e têm alvo certeiro: povos periféricos, indígenas, negros, quilombolas e vulneráveis.
Diante desse cenário, a autogestão dos riscos foi a saída dos moradores do Quilombo Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro. Ali, a própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território em três turnos, montou equipes para idas e vindas à cidade e visitas de casa em casa para saber das necessidades de todas as famílias. “Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa a educadora e moradora Cristiana Monteiro.
Já a mineira Maria das Graças Epifânio, filha da histórica Dona Tiana do quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, a 156 quilômetros de Belo Horizonte, sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais da saúde as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha.
Confia os depoimentos das três mulheres quilombolas que, diante da pandemia, lutam para proteger seus idosos e, portanto, parte de sua história e legado.
“O posto de saúde mais próximo fica a 35 minutos a pé do nosso quilombo”
“E se algo acontecer e nos contaminar? O que vamos fazer? A probabilidade do vírus se espalhar é enorme e a morte será em massa nos quilombos ou entre os indígenas”, preocupa-se Marta Quintiliano, de 37 anos, doutoranda em antropologia social na Universidade Federal de Goiás (UFG). Moradora do Quilombo Vó Rita, no município de Trindade, da região metropolitana de Goiânia (GO), ela conta que na comunidade existem de cerca de 200 pessoas; 50 são idosos. O posto de posto de saúde mais próximo, porém, fica a 35 minutos andando a pé e não há hospital para uma consulta ou atendimento especializado na região.
O local tinha características rurais, com roçado, até ser engolido pela urbanização. Na transição que a comunidade ainda vivencia, são os mais velhos que contam as histórias de Rita Felizarda de Jesus, que nasceu em 1909, neta de escravizados que deram origem ao quilombo. Vó Rita teria chegado a Goiás com a família vinda da Bahia a pé, depois de uma previsão, surgida à época, de que o mundo acabaria e que o primeiro local a ser atingido seria onde moravam antes.
Marta, doutoranda em antropologia e quilombola: “telefono aos nossos mais velhos e explico que eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro” (Foto: Isabela Alves)
No quilombo, Vó Rita teve 11 filhos que criou com o emprego em uma fábrica de farinha na cidade e lavando roupa pra fora. As filhas a ajudavam no trabalho doméstico e na fábrica, os filhos plantavam arroz, mandioca, milho e outros produtos que compartilhavam com a comunidade. Tradições como os bailes, cantigas e rezas são legados que os mais velhos ainda contam.
O avanço urbanístico na área do quilombo mudou essa rotina sem, no entanto, trazer a infraestrutura médica necessária à comunidade. “O que temos é uma agente de saúde que vem até a comunidade atender a todos. Mas, neste momento de pandemia, ela não está vindo visitar as casas, segundo ela, por questões de segurança”, explica Marta. “Quando acontece alguma coisa, se alguém está doente, a gente liga e pergunta o que é melhor fazer. Agora todo mundo está com medo.”
Marta conta que muitos na comunidade precisam se submeter a trabalhos com risco de contágio. São ofícios em jardinagem e empregos de motoristas e empregadas domésticas. “Temos um alto índice de serviços informais e desemprego. Não temos condições financeiras nem de comprar álcool gel”, pontua enquanto conta que não houve distribuição do produto no local e explica que a estratégia da comunidade é permanecer dentro de casa e fazer a lavagem adequada das mãos.
Política pública não é apenas avisar para não sair de casa
Aos mais velhos, ela explica os motivos para não mais ficarem, como de costume, indo um na casa do outro e reforça a importância de manter o isolamento. “Mas é difícil. Aqui em casa, por exemplo, tem um monte de idoso. Os que têm doenças não saem de jeito nenhum… E é isso: seguimos conversando com nossos mais velhos orientando por telefone, porque estão angustiados.”
Mas isso não é uma política pública, muito menos específica aos que, de maneira tão brasileira, marcaram a identidade do Brasil com seus benzimentos, a devoção a São Sebastião e a Santo Antônio e a manipulação de ervas na cura de enfermidades que até hoje a ciência está estudando. “Atenção à saúde com essa população precisa ir além de informação que vem da TV. Aqui, só o que dizem é pra não sair.”
“Os idosos são a nossa história, parte da nossa resistência”
A agricultora familiar e educadora Cristiana Marinho, de 35 anos, entende que o combate ao coronavírus no Brasil está vinculado ao enfrentamento da desigualdade e da negligência do Estado. Sabe também que essa combinação representa um risco enorme às comunidades periféricas e historicamente ignoradas ou mesmo vistas como inimigas por agentes do poder. Cristiana é moradora do Quilombo de Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro.
“É muito preocupante. Se a gente perde parte desses idosos, é nossa história que se perde. Queremos cuidar deles de todas as formas para que não sejam contaminados. Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa. Ela cita a precariedade da estrutura de saúde pública da cidade da família do político que comanda o país. “O município não tem UTI e nem mesmo equipamentos de oxigênio e intubação.”
Cristiana, do Quilombo Ivaporunduva: a própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território e montou equipes para idas à cidade e visitas de casa em casa para saber das necessidades de cada família (Foto: acervo pessoal)
Os moradores de Eldorado dependem do hospital regional, de Pariquera que segundo Cristina, tem apenas 39 leitos de UTI. “Estão sendo instaladas mais dez, mas ainda é muito pouco para um número muito grande de gente. Sabemos que é perda mesmo, caso não haja cuidado”. O Vale do Ribeira abriga uma população de quase 500 mil habitantes e inclui em sua área de 31 municípios; nove paranaenses e 22 paulistas.
A resistência, como sempre, é construída no “nós por nós”
As comunidades quilombolas da região avaliam o turismo e a ida à cidades como fatores de alto risco de transmissão do vírus. Os próprios moradores de Ivaporunduva, então, bloquearam estradas locais e, por si, vigiam os acessos durante os três turnos. Ninguém entra e ninguém sai. Dentro da comunidade, de cada território, há coordenadores para lidar com a crise.
Há equipes que cuidam da divulgação de informações, outras cuidam de compras de remédios ou mantimentos na cidade. Parte da alimentação vem das roças orgânicas, mas há alimentos que ainda precisam aguardar a colheita. “Tem também um grupo que vai de casa em casa para saber o que está faltando para cada família. Estamos fazendo de tudo para que ninguém precise sair do isolamento social”, explica Cristiana. “Fiz também um apelo ao posto emergencial de saúde por causa da falta de materiais de prevenção, como álcool em gel, máscaras, luva. Isso deveria ser fornecido, mas que nem os profissionais da saúde têm.”
Mecanismos de resistência, como sempre, estão sendo construídos por e para eles. “A comunidade está unida, mais do que nunca, para vencer essa luta. Se aos que estão nas cidades já é difícil, nos territórios quilombolas é ainda mais por questões de logística, de transporte, de cuidado e de um olhar diferenciado que não existe nessa questão da saúde para o nosso povo.”
“Falta aos profissionais de saúde um protocolo de respeito às características da nossa comunidade. É uma questão de olhar, de entender as nossas tradições”
Diferente de muitas realidades, há dois anos, toda a dinâmica da saúde pública mudou para melhor no quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, em Minas Gerais, a 156 quilômetros de Belo Horizonte. “A chegada do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), foi muito boa pra comunidade toda; tanto pra nós, quilombolas, quanto para quem não é. E é um conforto que a gente tem; não precisar correr léguas para ter atendimento”, conta a moradora da comunidade e técnica de saúde bucal Maria das Graças Epifânio, de 48 anos.
Graça, do quilombo urbano de Carrapatos e Tabatinga: o racismo, enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras, impossibilita a construção de políticas direcionadas. (Foto: Isabela Alves)
Graça elogia a facilidade de acesso à equipe médica que vai até a comunidade para intervir nos fatores que colocam a saúde em risco. De fato, pesquisas apontam que a política pública promove maior adesão a tratamentos e evita intervenções de média e alta complexidade. Esse nível de atenção resolve 80% dos problemas de saúde da população. Ainda, assim, ela pontua que a população quilombola tem especificidades culturais que devem ser respeitadas pelos agentes da saúde. “Em geral, colocam tudo no mesmo balaio e vão levando. Não precisava ser assim”.
Filha da matriarca do quilombo, Dona Tiana, falecida no ano passado aos 87 anos, Graça segue a militância pelos direitos quilombolas e é coordenadora de Igualdade Racial da Secretaria de Cultura da prefeitura de Bom Despacho. Ela sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha Graça.
Dona Tiana, sua mãe, lutou pelo reconhecimento e certificado da comunidade como quilombo urbano da comunidade que, justamente, é referência na valorização da identidade e legado da cultura afro-brasileira. A líder incentivou e criou de grupos de dança afro, afoxé, teatro, capoeira, congado e até uma escola de samba. Detentora de saberes tradicionais, foi “zeladora de Santo”, filha de São Sebastião e benzedeira, reconhecida por toda comunidade de Bom Despacho, pelo poder público e entidades locais enquanto Dandara, sinônimo da resistência quilombola. Veja, abaixo, o documentário sobre sua vida e legado.