Jornalistas Livres

Categoria: Geopolítica

  • Diante da escassez de votos, Macri apela à repressão militar

    Diante da escassez de votos, Macri apela à repressão militar

    Embora esteja legalmente proibido desde o retorno da democracia na Argentina, as Forças Armadas argentinas voltarão a atuar em “assuntos estratégicos” de segurança interior, por decisão do presidente Mauricio Macri, em resposta aos cada vez mais presentes conflitos sociais no país, e às pressões do governo de Donald Trump.

    Para isso, o presidente utiliza a mesma linguagem com a qual costuma adornar e encobrir suas verdadeiras intenções: “modernizar”, “olhar estratégico”, “os desafios do Século XXI”… usando sempre a referência da “democracia”, entendida como o poder de um governo para cercear os direitos dos cidadãos que são sujeito dos direitos que ele assegura que pretende defender.

    A decisão do mandatário encerra um consenso democrático alcançado em 1983, após a longa noite da ditadura civil-militar genocida instaurada em março de 1976, e apaga a barreira entre a segurança interior e a defesa nacional. “Se a sociedade não conseguir freá-lo, é uma decisão que mudará a Argentina para sempre. E arruinará até mesmo a vida dos próprios militares”, comentou o jornalista Martín Granosvsky, do Página/12.

    Macri fez o anúncio da medida no Quartel de Campo de Maio: disse que elas estão destinadas a combater “os desafios de segurança do Século XXI, o terrorismo e o narcotráfico. É importante que intervenham na proteção de assuntos de carácter estratégico. Será fundamental a custódia e proteção das Forças Armadas em objetivos estratégicos, e blindar a segurança de nossos ativos”

    Fez uma ênfase no “apoio logístico” à segurança interior, enfocado no olhar à proteção do Atlântico Sul e das fronteiras, falou do redesenho do conceito de defesa nacional e de uma proteção dos objetivos estratégicos cruciais dos recursos naturais do país. A escassez e a pobreza de argumentos que costuma utilizar são inversamente proporcionais à brutalidade dos seus anúncios.

    O decreto, elaborado com a assessoria de especialistas estadunidenses e israelenses – e repudiado por partidos políticos e movimentos sociais antes mesmo de ser publicado oficialmente –, contempla três artigos a serem postos em execução, dentro do chamado Plano de Reestruturação das Forças Armadas. Em seu anexo documental de 27 páginas, prevê três grandes capítulos que estabelecem os contornos que a profunda reforma militar deverá seguir, segundo detalhou o meio digital governista Infobae.

    O documento está assinado pelo ministro de Defesa, Oscar Aguad, que menciona “as ameaças cibernéticas sofisticadas que provêm de organizações militares e agências de inteligência de outros estados”. Se trata do mesmo ministro que ainda não foi capaz de responder sobre a desaparição, no Atlântico Sul, do submarino ARA San Juan, com 43 tripulantes, no dia 15 de novembro de 2017.

    Aguad afirmou aos jornalistas que “não há uma ameaça concreta, mas podemos tê-las a qualquer momento. Imaginem que a Rússia interveio no resultado eleitoral dos Estados Unidos, na campanha anterior, e isso tem a ver com um ciberataque”, considerando como fato algo que nunca se pode comprovar, e que causou uma crise diplomática, ao tratar de justificar a compra de “um aparato para ciberdefesa muito moderno”, e outros equipamentos israelenses.

    Além disso, o ministro fala de cooperação com outros países, e surpreende que, no anexo sobre a análise regional, haja referência à “crise que a Venezuela atravessa”, com a denúncia de que o governo de Nicolás Maduro “insiste em seus esforços por consolidar um regime autoritário que viola de maneira sistemática as liberdades fundamentais e os direitos políticos de seus opositores”.

    Repúdios e preocupação

    O anúncio coleciona expressões de repúdios entre os organismos de direitos humanos, os quais qualificaram a decisão presidencial como uma “ameaça” à democracia, e a vincularam com as medidas de ajuste que o Executivo está implementando. Para os organismos humanitários, a medida tem um objetivo claro: reagir ao cada vez mais presente conflito social com mais política opressiva, já que não há forma de solucionar o plano econômico de ajuste e fome sem repressão.

    “É uma decisão que nos faz retroagir à época da última ditadura, porque foi a última vez que as Forças Armadas interviram na segurança interior, portanto é uma notícia muito ruim, nos leva a pensar que o pior da história argentina pode voltar a estar presente”, definiu Carlos Pisoni, da agrupação Filhos (de desaparecidos durante a ditadura), que assegurou que “como familiar de desaparecidos, só imaginar que os militares poderão fazer missões como as que fizeram durante a ditadura dá escalafrios”.

    O bloco senatorial kirchnerista Frente para a Vitória (FpV) advertiu que esta medida é inconstitucional, e que é um decreto deve passar pelo Congresso Nacional primeiro. Em comunicado, o grupo sustentou que “desde 1983, a separação entre defesa nacional e segurança interior é uma política de Estado. Envolver as Forças Armadas em assuntos internos é ilegal”, explicando que o uso do Exército nas tarefas de segurança interior “exige a modificação de três leio piramidais da democracia argentina: defesa, segurança interior e inteligência”.

    “A experiência do mundo nos indica que termina sendo um remédio pior que a doença, como foi no México e na Colômbia”, opinou o ex-candidato presidencial do radicalismo, Ricardo Alfonsín. A Frente de Esquerda (FIT) afirmou que não tem dúvidas de que o governo pretende usar as Forças Armadas na repressão dos protestos sociais que se multiplicarão, no enfrentamento ao duro ajuste exigido pelo FMI. O deputado Gabriel Solano, representante da FIT em Buenos Aires, acredita que “se trata de um plano repressivo desenhado pelo Pentágono”.

    Vários analistas se referiram à triste experiência mexicana desde que, em 2006, o então presidente Felipe Calderón agregou os militares às operações de luta contra o narcotráfico – e, de quebra, também os utilizou para conter as crescentes manifestações sociais. Essa política terminou com um saldo de dezenas de milhares de mortes. Ademais, deve-se considerar que a questão do narcotráfico na Argentina é muito diferente em comparação ao que acontece no México, que tem uma enorme fronteira em comum com o maior consumidor de drogas do mundo – embora, no caso mexicano, o tema também tenha servido de argumento para acentuar a repressão.

    Alinhamento

    Uma “reforma do sistema de segurança nacional” quando não há uma hipótese de conflito real não é outra cosa senão uma nova decisão visando o alinhamento da Argentina com a política dos Estados Unidos em matéria de segurança internacional, incluindo um discurso que aponta aos mesmos inimigos: o terrorismo e o narcotráfico.

    Alimentar a ideia do inimigo interno é uma ação que tem múltiplos propósitos: justifica o apoio às Forças Armadas, permite desviar recursos com esse fim, ajuda a tirar os crescentes problemas internos do noticiário e, simultaneamente, faz um gesto ao governo estadunidense, um dos principais apoiadores internacionais do governo de direita da Argentina.

    “Em breve, poderemos observar que, com a justificativa de `modernizar´ a Argentina, o governo decidirá comprar mais armas da indústria militar internacional (em especial estadunidense e israelense) e, em consequência, `terá´ que capacitar suas Forças Armadas para o uso das mesmas. Não é difícil imaginar que os Estados Unidos, generosa e solidariamente, oferecerão os seus próprios especialistas para ensinar aos argentinos como usar essas armas. Mas não é só isso. Quem conhece mais sobre `narcotráfico´ e `terrorismo´ no mundo? Eles mesmos”, comenta o analista político Washington Uranga.

    Para todos esses propósitos, Macri – que continua perdendo credibilidade e intenção de voto, com respeito às eleições do ano que vem, quando tentará renovar seu mandato – que “dar mais valor à família militar”. Começou recompondo os salários do setor, com aumentos acima do corte que impôs aos demais empregados do Estado, num reconhecimento necessário para as novas tarefas repressivas que o modelo econômico, político e social do macrismo requer.

    Rubén Armendáriz é jornalista e cientista político uruguaio, analista do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

    www.estrategia.la

    Publicado no Brasil originariamente pela Carta Maior – https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Diante-da-escassez-de-votos-Macri-apela-a-repressao-militar/6/41052

  • VITÓRIA DO POVO!

    VITÓRIA DO POVO!

    A vitória do candidato esquerdista Andrés Manuel Lópes Obrador (AMLO) nas eleições presidenciais mexicanas mostra que o neoliberalismo não tem nada a oferecer ao povo pobre, a não ser a miséria, a exclusão, a usurpação das riquezas naturais e a violência Estatal aliada aos grupos paramilitares. O professor Igor Fuser, de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, explica a situação latino-americana. Mais do que nunca, nosso continente encontra-se em meio ao dilema: ou avançamos na luta popular, ou o povo sofrerá a devastação das políticas públicas e a guerra.

  • Futebol e colonização simbólica

    Futebol e colonização simbólica

    Hoje jogam duas seleções europeias, das ex-metrópoles França e Bélgica, contra duas seleções sulamericanas, das ex-colônias Uruguai e Brasil. Será que superamos o colonialismo mental? Por: Liana de Paula, Professora de Sociologia da Unifesp
    Tenho acompanhado a mídia esportiva e, por estar ainda finalizando um pós-doc na Inglaterra, lendo/vendo bastante coisa publicada por jornalistas ingleses e franceses. E me chama a atenção a cuidadosa construção de heróis e anti-heróis da Copa e sua relação com uma reiteração de lugares simbólicos de colonizados e colonizadores.
    Primeiramente, campeonato de futebol não é uma academia de boas maneiras em que só os moralmente louváveis ganham o presente do Papai Noel (aquele senhor moralista) de levarem a taça por serem ‘bons meninos’. Assim fosse, nem precisa de campeonato. Uruguai seria campeão desta Copa.
    Mas, evidentemente, a mídia esportiva inglesa – e francesa – não está a tecer loas para a equipe uruguaia por sua moral. O negócio é valorizar o produto europeu.
    E, assim, a mídia esportiva inglesa apresenta Harry Kane como um dos grandes heróis: ele é o moço branco, inglês e londrino (um feito de fato, considerando a quantidade de imigrantes em Londres), ele é pai de família (segundo filho nasceu ou nascendo), e ele é o capitão do time. Percebem a associação simbólica? A mídia esportiva inglesa joga o tempo todo com essa imagem do craque inglês bom moço.
    Já Lukaku e Mbappé são figuras heroicas menos óbvias e bem mais complexas por serem negros, de famílias vindas de ex-colônias africanas e pela delicada construção de identidade que representam. Mas a mídia esportiva inglesa e francesa os simplifica brutalmente e tenta apresentá-los como a possibilidade de redenção das ex-metrópoles, como se o drama da colonização pudesse ser resolvido a partir do bom desempenho deles nos gramados. Lukaku sabe disso, e já declarou que, quando joga bem, é belga, quando joga mal, é belga de origem congolesa.
    Enfim, não podemos ter uma vida maniqueísta sem anti-herói e o escolhido do momento é o brasileiro Neymar. Neymar é pintado, na mídia esportiva inglesa e francesa, como o símbolo do ‘selvagem’ que justifica a colonização. É o colonizado mau caráter que simula sua dor, que tenta enganar para levar vantagem.
    E assim, em pleno século XXI, temos recolocado em um campeonato de futebol toda a força da ideologia colonial, que quer impor a primazia do europeu dentro e fora do campo. Se o Brasil ganhar, sua vitória será diminuida pela construção de uma imagem colonizadora do mito do mau-Neymar.

    PS: Neymar não é santo, longe disso. Kane, Lukaku e Mbappé também não são. E nenhum deles está ali buscando a beatificação. Minha crítica volta-se para a mídia esportiva, e seus moralismos coloniais.

    PPS: Por tudo isso, achei ainda mais vergonhosa a fala do Osorio, técnico do México, reiterando para a mídia esportiva internacional que Neymar é um mau exemplo para as crianças. Juan Carlos Osorio foi o colonizado útil/subserviente nessa fala.
  • “DIGA PARA AS CRIANÇAS QUE ELAS NÃO PODEM SE ABRAÇAR!”

    “DIGA PARA AS CRIANÇAS QUE ELAS NÃO PODEM SE ABRAÇAR!”

    Estão programadas mais de 700 manifestações pelos Estados Unidos para esse sábado 30/06 contra a política de “humanidade zero” da administração Trump, segundo o site commondreams.org.

    Mais de duas mil crianças foram separadas de seus pais após a adoção, pela administração Trump, da política de “tolerância zero” em abril deste ano. A política transformou em crime a tentativa de entrar no país sem autorização.

    Falamos com o brasileiro que denunciou maus-tratos em centro de detenção de filhos de imigrantes presos. Antar Davidson fala português com sotaque: mora desde pequeno nos Estados Unidos. Seu pai é mestre de capoeira. O apelido de Antar na capoeira é instrutor Aranha. E foi pela capoeira que foi trabalhar nesse centro de detenção de crianças em Tucson, Arizona.

    Três irmãos brasileiros detidas, isolados da mães, choravam e se protegiam abraçados quando Antar se revoltou ao receber a ordem de dizer, em português, que eles não podiam se abraçar.

    Veja a íntegra da entrevista de Antar com Carla Locatelli para os Jornalistas Livres.

  • Histórias da ditadura militar – parte I

    Histórias da ditadura militar – parte I

    Morador do Jabaquara, na periferia de São Paulo, o menino vendia para um ferro velho papelão e cobre (não existia latinha de alumínio à época), carregava sacola de madame na feira e engraxava sapatos para fazer algum trocado.
    Eram meados dos anos 80 e a ditadura militar já agonizava, mas ainda dava as cartas.

    Para os meninos pobres da Zona Sul de São Paulo, uma das poucas alternativas de diversões disponíveis era o CEEI — Centro Educacional e Esportivo do Ibirapuera, cujo principal atrativo era sua piscina pública, disputadíssima.
    Havia regras rigorosas para acessar aquela piscina, e uma das regras determinava o tipo de calção que o banhista tinha de usar.

    Quem controlava seu acesso era um militar da reserva, um senhor de aparência rude, muito grosseiro, que não fazia a menor questão de esconder sua antipatia pelos meninos que frequentavam a piscina nos finais de semana, todos pobres e em sua maioria, negros.

    Qualquer motivo era motivo suficiente para o militar barrar o acesso a única piscina pública da região, e ele tinha seus próprios motivos para fazer valer sua autoridade.
    Certa vez o militar barrou um menino, alegando que o calção que ele usava era inadequado, que “iria cair, mostrar a bunda para todo mundo ver”.

    “Quer brincar na piscina tem de estar com shorts decente. Já não basta esse nariz ranhento escorrendo? Estou te fazendo um favor, caralh. !!!”, disse, em tom agressivo.

    O militar guardava numa sala vários calções, que ALUGAVA para os meninos.
    Ou alugava um calção, ou não entrava na piscina.

    O preço do aluguel, ouso dizer, devia ser a quantia necessária para pagar um sanduíche e uma Coca Cola, vendidos pelo ambulante que ficava em frente ao clube.
    Naquele sábado o menino brincou na piscina, mas voltou para casa com fome, sem comer o sanduíche e tomar a Coca Cola pelos quais havia juntado dinheiro a semana toda para comprar.
    Eu jamais me esqueci daquele sábado, um sábado de de sol, porque aquele menino se chamava Diógenes.
    Aquele menino era eu.

  • Como maquiar um crime

    Como maquiar um crime

    Publicado originalmente aqui 

    As capas das edições de 15 de maio de 2018 da Folha de S. Pauloe do Estadãoprestam-se a uma aula de jornalismo. Não, porém, pelas razões que se poderia supor. Prestam-se como tema de uma aula por condensar, nas suas manchetes e chamadas sobre os acontecimentos da véspera na Faixa de Gaza, todos os vícios de um jornalismo de mentalidade semicolonial, carregado de preconceitos e vieses contra o valente mas empobrecido povo palestino, que luta contra a maior potência militar do Oriente Médio: Israel.

    O truque para maquiar o massacre de mais de meia centena de palestinos pelo Exército de Israel, num único dia, foi exatamente suprimir das manchetes a palavra “Israel”. Assim, na manchete da Folha, os palestinos aparecem como os únicos responsáveis pela própria tragédia: “58 palestinos morrem em confronto na faixa de Gaza”. O outro lado desapareceu?

    Para saber-se com quem foi o “confronto”, e por quê, é preciso continuar lendo. Na linha fina, aquela frase com algum destaque situada entre a manchete e a respectiva chamada, o leitor fica sabendo (ou quase) o que ocorreu, afinal: “Embate com o Exército israelense ocorreu no mesmo dia da abertura da Embaixada dos EUA em Jerusalém”.

    Ah, bom! Então houve um “embate” com o Exército israelense, o que supõe algum equilíbrio. A chamada, em corpo menor, procura arredondar as coisas: “Confrontos entre tropas israelenses e manifestantes palestinos no dia da abertura da Embaixada dos EUA em Jerusalém deixaram 58 mortos, todos palestinos, na fronteira de Gaza com Israel”. Repassemos. Os “confrontos”, sic, “deixaram” 58 mortos, e por coincidência “todos palestinos”. Todos. Somente no final da chamada é que se lê que “a ONU considerou desproporcional a reação das forças de Israel”, imediatamente seguida da afirmação deste país de que “o Exército apenas se defendeu”.

    Estadão, por sua vez, deu em manchetinha no alto da capa, sobre uma fotografia impressionante do ataque de Israel à multidão, aberta em cinco colunas: “Protestos em Gaza deixam 58 palestinos mortos”. Aqui, portanto, os palestinos deixam de ser o sujeito (como na manchete da Folha) e quem assume essa posição na frase são os “protestos”. Israel ou seu Exército? Nada.

    Há que se ler a chamada, em corpo pequeno, para saber-se (ou quase) o que ocorreu: “Pelo menos 58 palestinos morreram ontem em confrontos com as forças israelenses na Fronteira de Gaza com Israel. Não houve mortes do lado israelense”. Um modo elegante, muito elegante, de dar a entender que houve algum desequilíbrio entre as partes, não? “Não houve mortes do lado israelense”.

    Depois de informar que os protestos “ocorreram durante a inauguração da Embaixada dos EUA em Jerusalém”, que antes “ficava em Tel-Aviv”, o Estadão junta-se ao discurso de Israel: “Por meio de alto-falantes, representantes do Hamas, que governa Gaza, divulgaram o falso rumor de que a cerca na fronteira havia sido rompida”. Ah, bom! Então, se o Hamas está envolvido, e se divulgou um “falso rumor” (reportado pela correspondente do jornal em… Washington), a conta fecha, vale tudo!

    Por fim, a chamada procura explicar em que consistiu esse “confronto” entre desiguais: “Manifestantes atiraram pedras e bombas incendiárias na direção dos soldados israelenses, que responderam com tiros”. Talvez a falta de espaço tenha impedido acrescentar, aos tiros, as bombas atiradas por Israel na multidão, visíveis nas fotografias publicadas.

    Na capa do caderno internacional, o jornal repete a dose, ao manchetear: “Protesto contra embaixada dos EUA em Jerusalém deixa 58 palestinos mortos”. Foi o protesto o autor das mortes, não o Exército de Israel, certo? Maquiagem, portanto.

    Mundo afora, a conversa foi outra. O Washington Post, por exemplo, não mediu palavras: “Israelenses matam mais de 50 palestinos em protestos em Gaza, dizem fontes oficiais de saúde” (“Israelis kill more than 50 Palestinians in Gaza protests, health officials say”). Citou já no título, como fonte, as autoridades palestinas.

    Uma legenda que serve a uma série de fotografias registra: “Soldados israelenses mataram dezenas de palestinos que protestavam ao longo da cerca da fronteira”. O texto principal do Post menciona a “Marcha do Retorno”, omitida pelos jornais brasileiros, e assinala o caráter desproporcional da ação: “Nenhum soldado israelense se feriu”, “e Israel atraiu condenação generalizada por uso excessivo da força”.

    A manchete do New York Times foi ainda mais clara e direta que a do Post: “Israel mata dezenas de pessoas na fronteira de Gaza, com a abertura da embaixada americana em Jerusalém” (“Israel Kills Dozen at Gaza Borden as U.S. Embassy Opens in Jerusalem”).

    Portanto, para encerrar, voltemos ao início deste texto, quando dissemos que as capas da Folha e Estadão prestavam-se a um aprendizado sobre práticas jornalísticas condenáveis. Seus congêneres norte-americanos mostraram independência editorial muito maior. Post e NYT fizeram jornalismo ao contar aos seus leitores o que realmente aconteceu, ao passo que Folha e Estadão procuraram maquiar o crime cometido por Israel e seu Exército.

    Quando trabalhei no jornal da noite da TV Gazeta, na década de 1980, tinhamos um colega, comentarista de assuntos internacionais, que emitia opiniões favoráveis aos palestinos. Não demorou para que a Federação Israelita fizesse lobby sobre o Banespa, nosso único anunciante, que entrou em contato com a emissora para que o comentarista suprimisse os pronunciamentos que tanto incomodavam os defensores da política de Israel.

    Curvar-se a pressões desse tipo e escamotear aspectos cruciais dos acontecimentos em questão, alterando a percepção dos leitores (ou espectadores ou ouvintes) a respeito desses acontecimentos, é adulterar o jornalismo.

     

    *Pedro Pomar é jornalista e doutor em Ciências da Comunicação.