A América Latina está sob ataque da extrema direita e do projeto neoliberal do capital financeiro de países como os Estados Unidos. Democracias como as da Bolívia e Equador estão sendo desestabilizadas pelas elites oligárquicas, altamente racistas e reacionárias. É o neofascismo de Bolsonaro, Camacho, Trump e outros atacando mulheres, indígenas, negros e LGBTs. Na Bolívia, após o golpe de estado sofrido por Evo Morales, legitimamente reeleito, a violenta repressão golpista está deixando mortos e muitos feridos. E isso pode piorar! A mídia tradicional, comprometida com os interesses do capital, não está mostrando a realidade. Nós, Jornalistas Livres, fomos até a Bolívia e Argentina cobrir as eleições desses países, mesmo sem ter os recursos suficientes. Queremos mostrar a verdade para nossos leitores, atuando in loco nos países em crise. Para isso, precisamos da ajuda de todos e todas, para que possamos enviar correspondentes com segurança, porque agora o momento é perigoso para a imprensa, especialmente na Bolívia. Ajude-nos a fazer o que a mídia tradicional não faz: mostrar os fatos!
Categoria: Geopolítica
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EUA, BRICS e América Latina – Tudo conectado
Em artigo publicado recentemente no jornal Monitor Mercantil, o analista geopolítico Fábio Reis Vianna mostra como a crescente militarização e convulsão na América Latina faz parte dos planos de Washington para minar a influência de China e Rússia na região e controlar as velhas e novas fontes de petróleo, gás e outros produtos minerais. Vale a pena ler:
Eleições argentinas, enquadramento da América do Sul e os Brics
Por Fábio Reis Vianna
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No último dia 29 de outubro, o Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, organizado pelos professores Monica Bruckmann e Franklin Trein, recebeu no Salão Nobre do IFCS-UFRJ, no Rio de Janeiro, a ilustre presença do ex-vice-presidente do Banco de Desenvolvimento dos Brics, o professor Paulo Nogueira Batista Jr.
Em meio ao peculiar momento de convulsões sociais que se espalham pelo mundo, discutiu-se a Nova Rota da Seda, grande projeto chinês de integração geoeconômica da Eurásia por vastas redes de estradas, trens de alta velocidade, gasodutos, cabos de fibra ótica e portos, e que beneficiará milhões de pessoas (incluindo a Europa Ocidental, e incidentalmente, o continente africano e a própria América Latina).
Para isso, três instituições criadas na órbita deste projeto cumpririam papel fundamental: o Silk Road Fund, o AIIB (Banco de Investimento e Infraestrutura da Ásia) e o NBD (Banco de Desenvolvimento dos Brics).
Para EUA, era preciso separar o Brasil de Rússia e China a qualquer custo
Sendo o Estado brasileiro acionista e fundador do NBD, muitos projetos de financiamento oriundos desta instituição global já poderiam ter sido aprovados e seriam muito bem-vindos à cambaleante economia brasileira.
Porém, não obstante nos últimos anos, especificamente de 2003 a junho de 2018, empresas chinesas terem investido quase US$ 54 bilhões em mais de 100 projetos, segundo dados do próprio governo brasileiro, a partir de 2017, os investimentos caíram vertiginosamente.
Segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), os investimentos chineses no Brasil somaram US$ 8,8 bilhões em 2017 e não mais que US$ 3 bilhões em 2018. Uma queda de 66%. O aprofundamento do enquadramento brasileiro à órbita imperial norte-americana diz muito sobre isso.
Com a institucionalização da Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, promulgada em 18 de dezembro de 2017, oficializou-se o que na prática já vinha ocorrendo desde meados de 2012, com a aceleração da disputa interestatal e a escalada da competição mundial: o reposicionamento norte-americano no xadrez geopolítico mundial de maneira cada vez mais agressiva e unilateral.
Deixando de lado a retórica multilateralista promovida ao longo do século passado, os norte-americanos, diante do fortalecimento das potências “revisionistas” Rússia e China – questionadoras da centralidade americana no uso das regras e instituições criadas e geridas de maneira unilateral durante todo o século XX – agora procuram impor sua vontade, sem concessões, aos países do chamado Hemisfério Ocidental.
Região ao qual os Estados Unidos se atribuem, por direito, o pleno exercício da soberania, por considerarem sua zona de influência direta, inadmitindo assim, qualquer contestação à sua supremacia, nem mesmo qualquer aliança estratégica de países que possa criar um polo alternativo de poder; muito menos no Cone Sul do continente.
Sendo assim, a postura de total alinhamento do atual governo brasileiro aos interesses da administração Trump, em muito diz respeito a este enquadramento do Hemisfério Ocidental à estratégia de contenção do expansionismo dos atores eurasiáticos.
Se o aprofundamento do projeto eurasiático e da parceria estratégica sino-russa – dentro da teoria do controle do heartlandde Mackinder – já seria inadmissível por si só, então a participação de um grande país do Hemisfério Ocidental como protagonista de uma instituição contestadora de antigas normas estabelecidas e reguladas pelo hegemon já seria demais: era preciso separar o Brasil de Rússia e China custe o que custar, mesmo que para isso o país tenha que arcar com o preço de ver suas instituições destruídas e envolvido no labirinto de um quase fechamento militar de regime.
Os últimos meses têm sido de muita agitação em várias e diversas partes do mundo; em particular na América do Sul. Mesmo que por motivos não exatamente similares, principalmente nos casos específicos de Peru e Bolívia, os protestos populares ocorridos no Equador e no Chile teriam em comum as características de uma reação, quase natural, de autoproteção destas sociedades às políticas restritivas neoliberais.
Como se fora uma velha ironia da história, bem no momento em que vivemos o esgarçamento da competição interestatal, surge uma correia de transmissão espalhando por vários países, tão distantes quanto díspares entre si, a fagulha dos protestos sociais.
Curiosamente, essa potente e perigosa combinação entre insatisfação social e acirramento de conflitos entre países, em outras épocas da história acabaria por configurar-se naquele período de transição entre os ciclos finais e de reconfiguração do grande tabuleiro do sistema mundial.
Diante disso, é importante ressaltar o risco de uma característica em comum que vem aos poucos se delineando em alguns países da América do Sul: a militarização.
Com o acirramento dos conflitos globais, o enquadramento da América do Sul à estratégia norte-americana de contenção dos adversários eurasiáticos e diante das agitações populares à deterioração dos padrões de vida, surge a lamentável opção pela imposição da ordem nua e crua, trazendo de volta ao cenário politico desses países a presença dos militares como garantidores da estabilidade institucional.
Caminha-se na região para um cenário em que governos eleitos, enfrentando a crescente agitação interna, passariam a depender dos militares para sobreviver. Os recentes acontecimentos no Peru, Equador e Chile não deixam mentir. Fora o fato de que o Brasil já vive sob a sombra de uma velada tutela militar às suas instituições.
O ponto fora da curva desta história é a Argentina e a impressionante vitória eleitoral da oposição peronista (num momento em que o uso de ferramentas de desestabilização tem sido frequentes para interferir em resultados eleitorais, como no caso da propagação em massa de fake news via Whatsapp em favor de Jair Bolsonaro no Brasil).
Contra todas as tendências, em uma região acossada pela interferência cada vez mais agressiva dos Estados Unidos – vide a atual tentativa de deslegitimar e desestabilizar a recente eleição de Evo Morales por meio da já manjada e forjada “Revolução Colorida”, que se aprofunda na Bolívia – a Argentina caminha para a retomada de um projeto de nação autônomo e soberano.
Diante da bem-sucedida, por hora, destruição da aliança estratégica Brasil-Argentina, que vinha se fortalecendo desde a redemocratização das duas nações em meados dos anos 80, caberá àquele país o complexo desafio de buscar expandir sua inserção internacional sem o seu antigo parceiro de Mercosul.
Algo interessante dito pelo professor Paulo Nogueira Batista Jr., no Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, diz respeito à atual postura chinesa diante da agressividade e truculência da administração Trump: paradoxalmente, tal agressividade estaria contendo o ímpeto expansionista chinês dos últimos anos na América do Sul, o que, segundo o professor, poderia abrir ótimas oportunidades para os países da região barganharem acordos mais favoráveis aos chineses.
Com o engessamento do Brasil e o seu alinhamento cego à Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, abre-se à Argentina a oportunidade não só de barganhar acordos comerciais favoráveis, mas ocupar o espaço deixado vago pelo Brasil no projeto de integração eurasiático.
Como bem disse o professor Paulo Nogueira Batista Jr., os Brics e em especial o seu banco de desenvolvimento (NBD) estariam caminhando para um processo de ampliação de seus participantes.
Na nova configuração geopolítica mundial, em que o acirramento da disputa global aumenta a necessidade das potências competidoras em garantir sua segurança energética, a América do Sul já é vista por muitos analistas como o novo centro de gravidade da produção mundial de petróleo, em substituição ao Oriente Médio.
A se confirmar esta tendência, não cabe outra alternativa a países baleia como Brasil e Argentina do que retomarem o projeto estratégico sul-americano sob risco de terminarem seus dias fragmentados e engolidos por interesses e disputas de potências externas à região.
Por hora, cabe a Argentina caminhar sozinha e por necessidade, ampliar os laços econômicos e geopolíticos com China e Rússia porque a tendência é o país tornar-se alvo das próximas campanhas de desestabilização, guerras de “quarta geração” e asfixia econômica desferidas sempre sorrateiramente pelo hegemon.
Fábio Reis Vianna
Escritor e analista geopolítico.
Leia o artigo original em: https://monitordigital.com.br/eleicoes-argentinas-enquadramento-da-america-do-sul-e-os-brics
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Negro Matapacos, o revolucionário
Matapacos foi um famoso cão viralata que apareceu nos protestos de estudantes para a educação gratuita em 2010, desafiando o gás lacrimogêneo e os canhões de água e acompanhando os estudantes como um companheiro leal em sua luta, apenas atacando ou latindo para os “pacos” (gíria chilena para “policiais”) e nunca estudantes e manifestantes.
A imagem do cachorro preto de bandana vermelha é compartilhada em todo o país por todas as redes sociais. Os chilenos sempre prestam homenagens ao cão que marchou com o povo e ficou ao lado deles quando enfrentavam a violência do Estado. Muitos cartazes, desenhos e pixações vistos nos protestos de hoje fazem lembrar Matapacos com frases como: “Estai Presente! (Eu estava presente!)” e “In Tu Memória (Em sua memória)” e tratam-no como um santo padroeiro dos manifestantes.
Negro Matapacos morreu de velhice há 2 anos, mas o seu espírito rebelde vive nas ruas de Santiago e de outras cidades em todo o Chile, enquanto o povo continua a lutar pela justiça e pela igualdade.
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A Lava Jato e os objetivos dos EUA para a América Latina e o Brasil
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty (2003-2009),
ministro de Assuntos Estratégicos (2009-2010)1. Os objetivos estratégicos dos Estados Unidos para a América Latina e, em especial
para o Brasil, são importantes para compreender a política externa e interna brasileira,
inclusive a Operação Lava Jato.
2. A América Latina foi declarada zona de influência exclusiva de fato americana pela
Doutrina Monroe, em mensagem do Presidente dos Estados Unidos ao Congresso
americano, em 02/12/1823.3. Esta Doutrina corresponde a uma visão e convicção histórica, nos Estados Unidos, de
direito ao exercício de uma hegemonia natural sobre a América Latina, como o
Corolário Roosevelt, de 1904, viria a explicitar.4. A partir da Guerra de Independência (1775-1783) e depois da formação da União em
1787-1789 os Estados Unidos passam a procurar excluir as potências europeias de
seu território continental (Louisiana – 1803, Florida – 1819, Oregon – 1845, Alaska –
1867) e a absorver esses territórios na União Americana.5. A expulsão pelos americanos dos povos indígenas de seus territórios originais se
realiza com intensidade após a revogação da Proclamation Line de 1763, em
decorrência do Tratado de Paz de Paris (1783) entre a Grã-Bretanha e a
Confederação, que separava o território das Treze Colônias das terras indígenas além
dos Apalaches, até o Mississipi.6. A influência econômica, política e militar americana sobre a América Central e os
países do Caribe foi e é avassaladora, com intervenções e ocupações militares, por
vezes longas, e o patrocínio de ditaduras, sanguinárias.7. A Guerra contra o México (1848) levou à anexação de metade do território mexicano
e, com a chegada ao Pacífico, permitiu a consolidação do território continental dos
Estados Unidos do Atlântico ao Pacífico.8. A Guerra contra a Espanha (1898) levou à ocupação de Cuba, à anexação de Porto
Rico, das Filipinas e de Guam e afirmou os Estados Unidos como potência asiática.9. A “criação” do Estado do Panamá e da Zona do Canal, que foi território americano
até 2000, permitiu a ligação marítima rápida entre a Costa Leste e a região do Golfo
com a Costa Oeste da América do Norte, tanto comercial como militar, através do
Canal concluído em 1914, e administrado soberanamente pelos EUA.10. Pelas características de sua localização geográfica, a zona estratégica mais
importante para os Estados Unidos é o Caribe, a América Central e o norte da
América do Sul.11. Os objetivos estratégicos permanentes dos Estados Unidos para a América Latina
são:
1. impedir que Estado ou aliança de Estados possa reduzir a influência americana na região;
2. ampliar sua influência cultural/ideológica sobre os sistemas de comunicação de cada Estado;
3. incorporar todas as economias da região à economia americana;
4. desarmar os Estados da região;
5. manter o sistema regional de coordenação e alinhamento político;
6. impedir a presença, em especial militar, de Potências Adversárias na região;
7. punir os Estados que contrariam os princípios da liderança hegemônica americana;
8. impedir o desenvolvimento de indústrias autônomas em áreas avançadas;
9. enfraquecer os Estados da região;
10. eleger lideres políticos favoráveis aos objetivos americanos.12. O principal Estado da região pelas dimensões de território, de recursos naturais, de
população, de localização geográfica é, sem dúvida, o Brasil. Principal também pelos
desafios que apresenta devido à possibilidade de graves turbulências futuras, sociais,
econômicas e políticas.13. Devido a este caráter principal, os objetivos dos Estados Unidos são objetivos para a
América Latina em geral, porém se aplicam em especial ao Brasil.14. O primeiro objetivo estratégico americano é impedir a emergência e
fortalecimento de qualquer Estado ou aliança de Estados que possam se opor à
presença ou afetar a influência política, econômica e militar americana na região.15. Para alcançar este objetivo tratam os Estados Unidos de aguçar e reacender
eventuais rivalidades (históricas ou recentes) entre os maiores Estados da região, isto
é, entre o Brasil e a Argentina, não estimular o conhecimento de suas histórias e
culturas, estimuladas as rivalidades através da ação de lideranças locais que buscam
obter tratamento privilegiado para seus países junto aos Estados Unidos (Carlos
Menem e Jair Bolsonaro são exemplos desse comportamento).16. O segundo objetivo americano é manter e ampliar sua presença
cultural/ideológica nos sistemas de comunicação de cada Estado da região como
instrumento para sua maior influência política, econômica, militar e cultural.17. Essa presença aumenta sua capacidade de obter melhores condições legais (fiscais e
regulatórias) para a ação de suas megaempresas (petroleiras, por exemplo); para
obter contratos de venda de equipamentos militares; para lograr alinhamento e
apoio às iniciativas americanas em nível mundial; para promover a “simpatia” pelos
Estados Unidos na sociedade local; para obter o apoio da sociedade e dos governos
para seus objetivos estratégicos.18. Este objetivo tem como instrumentos a defesa da mais ampla liberdade de imprensa
e de Internet e para a livre ação das ONGS “internacionais” e “altruístas”; dos
programas de formação de pessoal, desde os institutos de língua aos intercâmbios; às
bolsas de estudo; ao recrutamento de talentos; à aquisição de editoras para
publicaçãos de livros americanos; a hegemonia na programação de cinema e de TV;
os programas de formação de oficiais militares e lideranças políticas; e recentemente
a aquisição de instituições de ensino, em todos os níveis.
19. O terceiro objetivo dos Estados Unidos é incorporar todas as economias dos
Estados da região à economia norte-americana, de forma neocolonial, no papel de
exportadores de matérias primas e importadores de produtos industriais.
20. Após o fracasso do projeto regional “multilateral” da ALCA, lançado em 1994 e
encerrado em 2005 na reunião em Mar del Plata, os Estados Unidos passaram a
promover a negociação de acordos bilaterais com cada Estado latino-americano com
dispositivos semelhantes aos da ALCA e até aos EUA mais favoráveis. Verdade seja
dita que o acordo de livre comércio com o Chile fora assinado em 1994 e com o
México e o Canadá (NAFTA) também em 1994.21. O instrumento para alcançar este objetivo são os acordos bilaterais de livre comércio
que levam à eliminação das tarifas aduaneiras e à abertura dos mercados dos Estados
subdesenvolvidos nas áreas de investimentos; de compras governamentais; de
propriedade intelectual; de serviços; de crédito e, às vezes, incluem cláusulas
investidor-Estado.22. Por sua vez, os Estados subdesenvolvidos da América Latina que atingiram certo grau
de industrialização não ganham acesso adicional aos mercados de produtos
industriais, pois as tarifas americanas são baixas, existe a escalada tarifária e as
medidas de defesa comercial, e o acesso a mercados agrícolas é restringido pela
legislação agrícola, americana de subsídios e de proteção.23. O acordo Mercosul/União Europeia será instrumental para a abertura de mercados
para os Estados Unidos sem ônus político pois, após sua entrada em vigor, estarão
criadas as condições para os Estados Unidos reivindicarem ao Brasil e ao Mercosul
igualdade de tratamento. Outros países altamente industrializados como o Japão, a
Coréia do Sul, o Canadá e a China farão o mesmo e o Brasil não terá mais a tarifa
como instrumento de política industrial. O Mercosul desaparecerá.24. O quarto objetivo estratégico dos Estados Unidos é desarmar os Estados da região.
25. Os instrumentos para atingir este objetivo são a promoção da assinatura do Tratado
de Não Proliferação Nuclear (TNP) e de outros tratados na área química e biológica, e
mesmo sobre armas convencionais; a venda de equipamentos militares defasados a
preços mais baixos e o “estrangulamento” de eventuais indústrias bélicas locais; os
acordos de associação à OTAN; a transformação das Forças Armadas nacionais em
forças de caráter policial, voltadas para o combate ao narcotráfico e a crimes
transnacionais e, portanto, necessitando apenas de equipamento leve.26. O quinto objetivo estratégico americano é manter o sistema de segurança
regional, a Organização dos Estados Americanos, reconhecido pela Carta da ONU,
onde tradicionalmente os Estados Unidos podem exercer sua influência, contam com
o auxílio do Canadá e de países da América Central e assim podem tratar das
questões regionais sem ir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas.27. Outro instrumento para alcançar este objetivo é promover a dissolução da UNASUL,
como foro de solução de controvérsias concorrente da OEA e como organização de
cooperação em defesa, da qual os Estados Unidos não participam.28. O sexto objetivo dos Estados Unidos na América do Sul consiste em impedir a
presença de Estados adversários de sua hegemonia, e como tal nomeados pelos
próprios EUA, quais sejam a Rússia e a China, na região latino-americana, em uma
versão atual da Doutrina Monroe.29. Segundo documentos oficiais americanos recentes a “China é um poder revisionista”
e a Rússia é um “Ator Maligno Revitalizado” (Indo-Pacific Strategic Report, do
Pentágono).30. A presença russa e chinesa é especialmente temida na área militar, inclusive por
ameaçar a Costa Sul do território americano e os acessos ao Canal do Panamá, via
comercial e militar estratégica.31. Um sétimo objetivo americano, importante para demonstrar sua determinação de
exercício de hegemonia na América Latina, é punir, dentro ou fora do sistema da
OEA, com ou sem o apoio de outros Estados da região, aqueles governos que
contrariarem, em maior ou menor medida, os princípios da liderança mundial
americana:
ter economia capitalista, aberta ao capital estrangeiro, com intervenção mínima do Estado;
dar tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiro;
não exercer controle sobre os meios de comunicação de massa (TV etc);
ter regime político de pluralidade partidária e eleições periódicas;
não celebrar acordos militares com os Estados Adversários, quais sejam a Rússia e a China;
apoiar as iniciativas dos Estados Unidos.32. A campanha política/econômica/midiática para promover a mudança de regime
(regime change) de um Estado da região, isto é, para promover um golpe de Estado
para derrubar um Governo que os Estados Unidos consideram hostil, inclusive com o
financiamento de grupos de oposição, se desenvolve em várias etapas (que depois se
superpõem) de denúncia do Governo “hostil” pela grande mídia regional e pela mídia
mundial, com o auxílio da Academia, como sendo:
autoritário;
corrupto;
traficante ou leniente com o tráfico de drogas;
perseguidor de inimigos políticos;
violador da liberdade de imprensa;
ineficiente;
opressor da população;
ameaça aos vizinhos;
ameaça à segurança americana.33. Um oitavo objetivo estratégico americano é impedir o desenvolvimento de
indústrias autônomas nas áreas nuclear, espacial e de tecnologia de informação
avançada na América Latina, e em especial no Brasil, país com as melhores condições
para desenvolver tais indústrias.34. Um nono objetivo estratégico americano é enfraquecer politica e economicamente
os Estados da região.35. Os instrumentos são estimular direta ou indiretamente (pela mídia) a redução do
poder regulatório em defesa dos consumidores, da população em geral e dos
trabalhadores, dos organismos do Estado, em especial aqueles que limitam ou
disciplinam a ação das megacorporações multinacionais, entre as quais prevalecem as
americanas.36. Outro instrumento para alcançar este objetivo é a campanha contra o Estado central
como ineficiente e mais corrupto e autoritário, e a defesa da descentralização
regulatória e de auto regulação dos setores pelas próprias empresas privadas.37. Um objetivo americano importante é enfraquecer o único organismo do Estado
(brasileiro) que enfrenta, todos os dias, os interesses dos demais Estados nacionais,
em especial os interesses dos Estados Unidos, de seus adversários, Rússia e China, e
das chamadas Grandes Potências, como Inglaterra, França, Alemanha e Japão, nas
negociações para aprovar normas internacionais que atendam seus interesses (e
lucros).38. Os instrumentos para atingir este fim são denunciar a ineficiência; o corporativismo;
o exclusivismo; o “globalismo”; a partidarização; a visão ideológica “esquerdista” da
Chancelaria.39. O décimo objetivo estratégico dos Estados Unidos da América, e talvez o principal
objetivo, é impedir a eleição de líderes políticos em cada Estado que manifestem
restrições a seus objetivos estratégicos e promover a eleição de líderes que a eles
sejam favoráveis.40.E aí entra o papel da Operação Lava Jato na defesa direta ou indireta dos
interesses americanos.41. A partir da eleição, em 2002, do presidente Lula, a política interna e externa brasileira
se contrapôs, ainda que não de forma sistemática, desafiadora ou revolucionária, a
alguns dos objetivos estratégicos americanos:
a. ao não apoiar a invasão do Iraque de 2003;
b. ao estabelecer o entendimento político e econômico estreito com a Argentina;
c. ao promover a coordenação com a Argentina, a Venezuela, o Uruguai, o Equador, a Bolívia e
o Paraguai para a formação da UNASUL, em substituição à OEA.
d. ao resistir à ALCA e ao fortalecer o Mercosul;
e. ao fortalecer os instrumentos financeiros do Estado, como o BNDES, e ao utilizá-los na
politica externa;
f. ao fortalecer o programa nuclear;
g. ao exercer operações de aproximação autônoma com os países africanos e árabes;
h. ao promover a criação do BRICS, com a China e a Rússia;
i. ao fortalecer a Petrobrás e ao estabelecer o regime de parceria para exploração do pré-sal;
j. ao estabelecer a política de “conteúdo nacional” na indústria;
k. ao promover a indústria de defesa brasileira;
l. ao defender a regulamentação da mídia;
m. ao negociar, com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã;
n. ao exercer o equilíbrio em suas relações com Israel e Palestina.42. A partir dessa nova situação nas relações Brasil-Estados Unidos e da crescente
popularidade do presidente Lula, que terminaria em 2010 seu mandato com 87% de
aprovação, a estratégia americana foi:
mobilizar os meios de comunicação de massa no Brasil contra as políticas do Governo, e
condenar sua ação através do Instituto Millenium, fundado em 2005, para dar amplo apoio à
Operação Mensalão, que não conseguiu atingir o presidente Lula, mas que veio a atingir
José Dirceu, chefe da Casa Civil, e provável sucessor de Lula;
a partir do acordo de cooperação judiciária Brasil-Estados Unidos, iniciar a Operação Lava
Jato, que viria a facilitar o alcance dos objetivos estratégicos americanos em especial 2, 8, 9 e
10, listados no parágrafo 11 acima;
iniciar o processo político de preparação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff;
financiar direta e indiretamente a formação dos grupos MBL e Vem pra Rua.43. O principal objetivo da Operação Lava Jato não era a luta contra a corrupção, mas, sim,
impedir a eleição do presidente Lula em 2018. Sua ação partia das seguintes
premissas:
a grande maioria da população, devido à sua precária situação econômica e cultural, está
sujeita a ser manipulada por indivíduos populistas, socialistas, comunistas etc. que fazem aos
eleitores promessas irrealizáveis para conquistar e explorar o poder;
a sociedade brasileira é intrinsecamente corrupta;
todos os políticos e partidos são corruptos;
os governos se sustentam através da corrupção e da compra de votos;
a violação de direitos constitucionais e legais por membros do Judiciário e do Ministério
Público se justifica para combater a corrupção.44. O juiz Sérgio Fernando Moro descreveu em seu artigo intitulado Mani Pulite,
publicado em 2004 na Revista CEJ – Justiça Federal N°26, a sua decisão de violar a lei
para combater a corrupção, em uma interpretação de que “os fins justificam os
meios”.45. A “corrupção” foi enfrentada pela Operação Lava Jato, comandada por Sérgio Moro,
juiz de primeira instância que contou com a conivência e mesmo a cooperação de
membros dos Tribunais Superiores e da grande imprensa, para uma condução
processual altamente heterodoxa e ilegal.46. A divulgação quotidiana e seletiva de ações da Lava Jato através da imprensa, em
especial da televisão, foram essenciais para criar a convicção de que a Lava Jato teria
“revelado” que o partido que teria promovido e se beneficiado da corrupção no
sistema político teria sido o PT, conduzido por Luiz Inácio Lula da Silva.47. Formou-se um amplo movimento anti-petista e anti-Lula, e tornou-se, assim, um
objetivo não só político, mas ético e moral, para combater a corrupção, apresentada
como o principal mal da sociedade brasileira, impedir por todos os meios que o ex-presidente Lula pudesse se candidatar e, iludindo o povo ingênuo, ser eleito e reimplantar os mecanismos de corrupção.48. Assim, foi Lula condenado, sem provas, em primeira instância por Sérgio Moro e em
segunda instância por uma turma de três desembargadores do TRF-4 (não pelo
Tribunal pleno), desembargadores que gozam de grande familiaridade e amizade
com Sérgio Moro, que condenaram Lula à prisão em regime fechado, para não poder
exercer qualquer atividade política e, assim, não poder nem competir nem influir nas
eleições de 2018.49. A decisão arbitrária do TRF-4 correspondeu à cassação dos direitos políticos de Lula e
do povo brasileiro, que não pôde votar em Lula, o candidato à frente em todas as
pesquisas de opinião.50. A nomeação do juiz Sérgio Moro como ministro da Justiça por Jair Bolsonaro e a
declaração de Bolsonaro de que devia muito de sua eleição a Moro indicam o alto
grau de ilegalidade do comportamento de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro e sua ação
política.51. A primeira etapa para atingir o Objetivo estratégico 10 era promover o impedimento
da presidente Dilma Rousseff, o que foi conseguido em 16/4/2016. O vice-presidente Michel Temer assumiu com um programa econômico intitulado “Ponte para o Futuro”, elaborado por economistas liberais e perfeitamente compatível com
os objetivos estratégicos dos EUA, e que vem sendo aplicado de forma ainda mais
radical por Paulo Guedes. -
O que significa o Golpe de Estado na Bolívia
Companheiros e irmãs, desde Bolívia sei que existe muita informação confusa e por isso estamos tratando de informar e pedir que nos acompanhem e sigam denunciando.
Primeiro é importante ter bem claro que isso é um golpe, um golpe de estado e um golpe contra as organizações sociais. Um golpe, como já dissemos, organizado e encabeçado por organizações cívicas do Oriente, organizações empresariais e de terra-tenentes e oligarcas.
É um golpe fundamentalista, porque pretende “devolver a bíblia ao Palácio”, “colocar o país nas mãos de Deus” e todas essas coisas… É um golpe profundamente racista, porque busca e identifica as mulheres e homens originários dentro das organizações e os hostiliza.
A noite a polícia se amotinou. Essa manhã terminaram de se amotinar todos os regimentos, por um pedido específico de coisas para esse setor. Mas além disso, eles se uniram a esse golpe cívico e exigem também a renúncia de Evo Morales. A polícia já não está resguardando as cidades, já não está nas ruas.
Esta manhã os militares fizeram uma declaração, desconhecendo seu comandante e depois dizendo que não vão sair o que significa que se declararam em desacato ao presidente Evo Morales. Não sairão para resguardar as pessoas, não sairão para desmobilizar, quer dizer que eles também estão com o golpe. Um golpe de civis, empresários e oligarcas.
Algo que não se está difundindo porque internamente na Bolívia os meios são propriedade dos empresários, dos grupos de poder e não está claro que é um golpe de estado e um golpe contra as organizações sociais, um golpe racista. Não estão divulgando o que está ocorrendo agora no país, que estão queimando as sedes das organizações sociais e camponesas, as sedes de organizações sociais indígenas, estão queimando espaços do Movimento ao Socialismo (MAS), que é um instrumento conformado por organizações sociais. Estão queimando as casas de autoridades indígenas, estão queimando a casa de dirigentes sociais, estão perseguindo nossas companheiras, nossas irmãs e irmãos, nos estão perseguindo nas ruas.
Estivemos nas ruas buscando formas de resistir e nos perseguiram e amedrontaram nas ruas. Esses grupos civis, grupos que dizem que pretendem recuperar a democracia, o que é falso pq não vivíamos em uma ditadura. Dizem que são organizações em resistência civil, o que é falso porque são grupos armados. São grupos que têm lanças, capacetes, escudos, que tem gases, explosivos, e que além disso estão utilizando também a violência sexual. Eu suponho que utilizam essas armas para dizer que esse é um suposto golpe civil, mas não duvidem que atrás disso estão as armas da polícia e dos militares. Então é todo um teatro que estão fazendo. E para dizer depois que não foi um golpe, mas sim, é um golpe de estado. Sim, é com violência. Sim, está gerando terror. Sim, há uma hostilidade racista pq estão indo a todas as organizações sociais indígenas, originárias e camponesas.
Tomaram a Confederação de Trabalhadores Campesinos, amarram um companheiro jornalista, diretor da Rádio que ainda estava transmitindo. Até esse momento, segue sequestrado, segue amarrado, saquearam e destruíram a emissora. Na sede da Confederação, baixaram a bandeira Whipala, içaram a bandeira tricolor, da Bolívia rezaram e cantaram o Hino Nacional. O mesmo fizeram em todas as organizações que tomaram. Baixaram a Whipala, rasgaram, queimaram, rezaram e colocaram aí a bandeira da Bolívia. Essa é uma punição racista, colonialista é um castigo contra nossas organizações por conta desse processo de mudanças. É uma perseguição e isso não está saindo nos meios.
O único que está se tentando mostrar é que toda violência foi gerada pelo MAS e pelo governo. Nesse momento o governo não tem mais o apoio da polícia, nem dos militares. Nós, das organizações sociais, estamos nos reorganizando para resistir e as organizações que mais possibilidades tem de fazer pressão, são as que estão preparando um cerco às cidades. E essas são as organizações camponesas, originárias e que já expuseram que vão tentar fazer um cerco, que vão cortar a provisão de água. É não temos outra possibilidade. Isso também vai ser denunciado seguramente como violência, mas não temos outra possibilidade.
O que se está pedindo é que vá embora da cidade Luis Fernando Camacho, que é quem está encabeçando esse golpe cívico. E todas as pessoas que chegaram no Comitê Cívico de Sta Cruz de La Sierra, que tomaram a cidade, algo que não esperávamos, não tínhamos visto que tanta gente tinha tomado a cidade. Tomaram as instituições, a televisão nacional, as rádios comunitárias com toda a violência, promovendo o terror. Ou seja, hoje eles nos tem escondidas, perseguidas, e isso não está saindo nos meios.
Peço a vocês para compartilhar que é um golpe de Estado, com violência, com perseguição às mulheres e homens indígenas, que há uma punição voltada às organizações sociais e necessitamos da pressão e denúncia internacional das organizações.
Evo convocou a um diálogo, acreditando como feministas, como militantes anti patriarcais que isso está fora de tempo, além disso a direita não vai querer nenhum diálogo. A direita quer tirar Evo nas piores condições, humilhantes, e dar a ele e seu corpo e às organizações a punição exemplar para todo o país para que siga existindo esse país sob o colonialismo, sob o racismo, controlado por oligarcas, controlado por empresáios.
Pedimos que nesse momento possam difundir essas informações, que é muito importante a pressão internacional.
Obrigada a todos
Tradução Juliana Medeiros
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Chile: falsa normalidade
Desde o governo, no trabalho, em algumas instituições de ensino e inclusive em grupos familiares ou de amigos, nos pedem que depois de mais de 20 dias de manifestações no Chile voltemos à “normalidade”. Mas desde o momento em que acordo até a hora que vou dormir percebo que esse desejo de alguns é impossível de ser realizado. É, inclusive, violento o simples fato de ser solicitado.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
Como posso voltar à normalidade quando o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) relata diariamente sobre a quantidade de pessoas que foram vítimas da violência policial durante as manifestações e o número só aumenta?
Até agora, sabemos que 23 pessoas perderam a vida durante a crise social. Oficialmente, cinco faleceram em mãos dos agentes do Estado e outras duas enquanto estavam detidas em delegacias. Mas também há outros casos até agora sem explicação, como o de Yoshua Osorio (17 anos), quem, segundo os documentos, morreu em um incêndio. Mas, de acordo com a autópsia do Instituto Médico Legal, o corpo possuía três orifícios na região do tórax.
O INDH também informou que 1.915 pessoas foram feridas, 1.003 delas pelo disparo de diferentes tipos de balas, sendo as principais de chumbo e de borracha.
Raio X mostra Projétil de metal encravado na perna de homem que foi atingido por uma suposta bala de borracha Nesse período, o Chile quebrou um triste recorde: se transformou no país do mundo com mais pessoas com lesões por balas de borracha. 180 foram afetadas. 30% delas ficaram completamente cegas de um olho. Enquanto escrevo este texto, o jovem Gustavo Gatica (21 anos), quem perdeu a vista de um olho, está tendo o outro operado para não ficar completamente cego. Uma série de pessoas se manifestaram do lado de fora da clínica para apoiá-lo, mas foram reprimidos pela polícia.
Em paralelo, 262 pessoas iniciaram uma ação judicial contra os organismos do Estado. 171 delas por torturas e maus-tratos.
Não é possível voltar à normalidade para quem foi ferido, para quem perdeu a vista, para quem foi torturado. Para quem morreu.
Imagens de Amanda Miron E apesar de tudo isto, o Presidente do país, Sebastián Piñera, propôs na sexta-feira um projeto de lei que dá mais poder aos policiais. O mandatário reconheceu situações de excessos. Mas negou que haja uma violação aos direitos humanos.
Tampouco é possível pensar em normalidade quando caminho pelas ruas e vejo as mensagens deixadas nas paredes. “Estado assassino”; “Piñera, vai embora”; “esqueceram de nós”; “a polícia nos estupra”; “exigimos nova Constituição” (…) e alguns que despertam um sorriso “tenho mais medo da minha mãe do que de vocês” e o clássico de todos os tempos “faca amor, não faca a guerra”.
Nas ruas, de domingo a domingo, há manifestações. Algumas pacíficas, outras, violentas. Mas todas, sem exceção, terminam com esse cheiro insuportável das lacrimogêneas e de gás pimenta. Esse odor que fica impregnado no nosso cabelo, em cada um dos nossos poros. Que dá a sensação de que não poderemos voltar a respirar ou a abrir os olhos. E logo, o fogo. As barricadas. O caminhar de um lado para o outro em um labirinto sem fim entre os encapuzados e os policiais. E o metrô não está aberto. Os ônibus não passam. Isto não é normal.
De qual normalidade estão falando quando os meus colegas jornalistas denunciam que estão sendo censurados, ameaçados a não difundir as suas opiniões pessoas no Twitter ou Facebook? Como posso voltar à normalidade quando abro as redes sociais e já não sei distinguir o quê é verdadeiro do que é falso? Quando leio uma entrevista do Piñera alterando a sua própria declaração de que “estamos em guerra contra um inimigo violento” e tergiversando essa informação ao explicar que o que queria dizer é que “estamos em guerra contra a pobreza e a desigualdade”?
imagens Amanda Miron As poucas tentativas de regressar à normalidade se viram frustradas. Na segunda-feira, a Pontificia Universidad Católica de Chile —a mais importante do país— abriu suas portas para uma jornada de reflexão e logo o começo das aulas. Os alunos votaram imediatamente por uma greve indefinida. Durante a tarde, alunos de um dos edifícios denunciaram a repressão policial dentro da universidade. De noite, um grupo invadiu a sede da PUC e roubou objetos para formar uma barricada. No dia seguinte, a universidade fechou novamente.
E também existe outro lado. O das pessoas que temem a violência dos manifestantes. As que apóiam os protestos, mas que já não querem ver o comércio fechado, as ruas sujas, os edifícios prendendo fogo. As que demoram horas e horas para chegar a casa porque o transporte está interrompido. As que estão desesperadas para regressar ao trabalho porque senão lhes será impossível pagar as contas no fim do mês. Para elas também não é nada normal.E atualmente eu me pergunto, a qual normalidade querem regressar o governo, o trabalho, algumas instituições de ensino e inclusive alguns grupos familiares ou de amigos? A que existia antes já não é possível. Ou é a essa normalidade de um grupo de privilegiados que não sabia —ou fingia não saber— que o Chile é um país desigual? Ou essa normalidade “linda” que os turistas percebem quando visitam Santiago porque (surpresa!) todos os atrativos turísticos da cidade estão na parte mais bela e bem cuidada da cidade?
“Normalidade”. Sempre estivemos vivendo uma anomalia. Se insistirmos em voltar a ela, talvez, com o tempo consigamos. Mas será falsa. E sabemos onde essa falsa normalidade nos levou.