A Jornada Universitária pela Reforma Agrária da Universidade Federal de Mato Grosso estava planejada esse ano para o mês de maio. Com seu adiamento devido à pandemia do novo Coronavírus, professores e ativistas estão organizando atividades online sobre temas afins para fortalecer o grupo e o evento nesse momento tão difícil no país. O primeiro curso planejado abordará o Projeto Brasil Popular, conjunto de propostas de políticas públicas desenvolvidas por grupos e intelectuais de esquerda a partir da consolidação do golpe contra as forças populares em 2016.
O curso gratuito desenvolvido por ativistas e professores que estão construindo a JURA UFMT 2020 terá cinco encontros virtuais transmitidos pelo Facebook (https://www.facebook.com/juraufmt) e Youtube (https://www.youtube.com/channel/UCrok5SBn_Jnq–x1Zvr34gg) a cada 15 dias a partir de 6 de julho, sempre às 19:00hs, horário de Cuiabá (uma hora a menos que o horário de Brasília – 20:00hs). Nos dias seguintes, o vídeo da apresentação e atividades de oficina serão disponibilizados na também gratuita plataforma AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem. O áudio das apresentações também deve ser disponibilizado em formato de Podcast e transmitido por rádios populares como a CPA2, de Cuiabá.
No primeiro encontro, em 06 de julho de 2020, haverá a apresentação do curso, das atividades propostas e do que significa e como funciona o Projeto Brasil Popular. Os encontros seguintes (20 de julho e 3, 17 e 31 de agosto) serão dedicados aos quatro eixos e sub-eixos que compõe o Projeto Brasil Popular:
ECONOMIA, DESENVOLVIMENTO E DISTRIBUIÇÃO DE RENDA (Agricultura Biodiversidade e Meio Ambiente; Amazônia; Demografia e Migrantes; Desenvolvimento Regional; Caatinga e Semiárido; Ciência, Tecnologia e Inovação; Economia; Energia e petróleo ; Financeirização; Transportes e Logística; Mineração; Reforma tributária; Seguridade Social e Previdência Trabalho, Emprego e Renda);
ESTADO, DEMOCRACIA E SOBERANIA POPULAR (Democratização da Justiça e Direitos Humanos; Estado, Democracia, Participação Popular e Reforma Política; Federalismo e Administração Pública; Sistema de comunicação; Meios de comunicação; Relações Internacionais, Integração Regional e Defesa; Segurança pública); e
IGUALDADE, DIVERSIDADE E AUTONOMIA(Combate ao Racismo e Igualdade Racial; Juventude; LGBT; Mulheres; Povos Indígenas).
Cento e cinquenta dias se passaram, após um início recheado de perguntas: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?
Foram essas as perguntas que ocuparam o nosso tempo e as nossas preocupações quando decidimos publicar nossas sensações e reflexões sobre a pandemia. O que começou como um diário tomou a forma mais aberta e plural de um almanaque, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos. Outras questões e análises foram sendo incorporadas ao texto, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções, muitas vezes distintas das previstas nos primeiros esboços do livro.
O leitor também perceberá que, na nossa escrita, algumas vezes podemos passar a sensação de que está acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, e talvez possa se sentir desnorteado com o fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia.
Pois bem, a nossa tentativa foi uma escrita, de forma bastante livre, do registro dos eventos a que assistimos e ou vivenciamos, tendo como referência as perguntas que nos nortearam. Foram com esses elementos que pensamos em fazer uma espécie de diário dos 150 dias da pandemia, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro de 2019. Ao longo desse tempo, acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que reunidos formam o Almanaque. O nosso laboratório-base foi, o tempo todo, o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.
Boa parte do que escrevemos foi publicado, em primeira mão, e em português, pelo site Jornalistas Livres, e, em inglês, pelo site Brazil Solidarity Initiative. Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações constantes, fragmentárias e cada vez mais imprecisas e disputadas. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, assim, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.
A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, dos filmes sobre epidemias, como Outbreak (Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.
A principal história que acabamos por contar no livro foi a de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, infiltrou-se em nossas vidas. Ao mesmo tempo, o livro apresenta o paradoxo de um presidente fake, ou seja, que não reconhece e trabalha para destruir o sistema democrático no qual foi eleito – ser desafiado pela realidade incontornável de um vírus e a doença que ele provoca.
Nosso objetivo foi apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica, entrecruzando subjetividade e objetividade, dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Procuramos pensar para além da agitação atualista, a fim de analisar as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. Mas, também, refletimos sobre o nosso presente imediato, sobre a catástrofe vivida, em especial, no Brasil, já que aqui o poder simbólico e real do vírus foi potencializado pela presença do presidente Bolsonaro.
A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais. A explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida, impede a cidadania de tomar consciência de seus reais interesses e formar um senso compartilhado de realidade que permita a ação política emancipadora. Essa estrutura, impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Muitas vezes, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Fato que contribui para a dispersão e distração que se fantasiam com as roupas do jornalismo. Esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.
O passado e o futuro são mobilizados, muitas vezes, nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.
Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os primeiros 150 dias da pandemia estão organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos que organiza o ritmo da crise, já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.
Ao navegar por esse almanaque, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.
Queremos entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos um terço de sua população. Como entender esse escândalo?
Ao final dessa jornada, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva crescente do número de mortos e consequências sociais devastadoras para os grupos minorizados. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. Ficamos com a sensação de que estamos contando a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi severamente comprometido nesses países.
A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas formam opinião orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose. Mas, como se verá, os níveis de insanidade do bolsonarismo e de Bolsonaro parecem ser insuperáveis.
Ao longo desse período, escrever foi para nós uma forma de lidar com a pandemia e com a crise política e econômica. Um ato de resistência e de conhecimento. Procuramos, assim, trabalhar com as dimensões positivas do atualismo, que em nosso livro, Atualismo 1.0, só estavam anunciadas. A atualização, em sentido próprio, se apresenta aqui como uma possibilidade de lidar de forma ativa e não reativa frente os acontecimentos e as notícias que vêm à tona. Portanto, ao invés de só repercutir, alargar e repetir incessantemente, fazendo reverberar ainda mais a agitação, propomos deslocar os eventos e as notícias com a força do passado e do futuro. Dessa maneira, esperamos que esse gesto contribua, a seu modo, para a construção de um outro tempo.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
Um estudo feito por seis organizações da sociedade civil alerta para o avanço do Arco do Desmatamento rumo ao coração da Amazônia Legal, região da qual Mato Grosso faz parte.
A preocupação também é grande em relação à Bacia do Xingu e cresce diante do fim da época de chuvas, período em que, historicamente, há um incremento das queimadas ou incêndios florestais na região.
Para se ter ideia da situação, no ano passado, a taxa de desmatamento na Amazônia foi a maior dos últimos dez anos.
Somente entre agosto de 2019 e abril deste ano, já foram desmatados 566 mil hectares, o que revela, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) uma tendência de aumento de 94% em relação ao período anterior.
Em relação às queimadas, o cenário também é de intranquilidade. Somente entre agosto do ano passado e abril deste ano, o Inpe revela que 78,4 mil focos de queimadas foram detectados, 20% a mais do que o período anterior.
TI Rikbaktsa – por helio carlos mello
Alertas como estes constam em documento assinado pela Rede Xingu +, Greenpeace Brasil e pelos Institutos Internacional de Educação do Brasil (IEB); do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon); de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e o Instituto Socioambiental (ISA).
O relatório foi entregue, no dia 17 deste mês, aos Ministérios Públicos Federal (MPF) e Estadual (MPE) e ao governo do Pará, epicentro da destruição da floresta e pede que sejam tomadas ações efetivas e urgentes a nível federal e estadual para coibir o desflorestamento.
Os dados foram construídos a partir de dados de três sistemas de monitoramento de desmatamento, sendo eles, o Deter do Inpe; o de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon; e o de Indicação Radar na Bacia do Xingu (Sirad X).
Em relatório denominado “Ameaça e pressão de desmatamento em áreas protegidas SAD de fevereiro a abril de 2020”, o Imazon aponta, que neste período, o SAD detectou um total de 885 km2 de derrubada da floresta na Amazônia.
O cruzamento dos dados do sistema com a grade de cédulas de 10 km x 10 km revelou 1.739 células com ocorrência de desmatamento, sendo 921 (53%) indicam ameaça e 818 (47) pressão em decorrência de atividades como extração de madeira, garimpo e hidrelétrica.
No Estado, a terra indígena (TI) Aripuanã, habitada pelos povos da etnia cinta larga, aparece entre as 10 no ranking de ameaça em áreas protegidas.
Por lá, forma detectadas nove células. Entre as unidades de conservação (UC) encontra-se a Reserva Guariba Roosevelt, entre os municípios de Aripuanã e Colniza, com 10 células sob ameaça e nove sob pressão.
As APs mais ameaçadas no Pará, a exemplo da APA Tapajós, e no Amazonas, como o Parna Mapinguari.
Conforme o Imazon, ameaça é a medida do risco iminente de ocorrer desmatamento no interior de uma área de proteção (AP).
Já a pressão ocorre quando o desmatamento se manifesta no interior da AP, levando a perdas de serviços ambientais e até mesmo à redução ou redefinição de limites da área, ou seja, é um processo interno que pode levar a desestabilização legal e ambiental da AP.
Na representação entregue as autoridades públicas, as instituições destacam que as queimadas provocam aumento do material particulado emitido para a atmosfera, degradando a qualidade do ar, e, consequentemente, aumentando a incidência de doenças respiratórias na população Amazônica.
“Situação que pode se agravar ainda mais esse ano, graças ao cenário político de retrocessos na legislação ambiental e às limitações impostas pela Covid-19, dissemina rapidamente entre os povos indígenas e comunidades extrativistas da região, que historicamente carecem padecem com a precariedade do sistema de saúde”.
Vale lembrar que a exemplo de anos anteriores, Mato Grosso segue líder em queimadas. Dados do Inpe apontam que de janeiro de 2020 até ontem, dos 22.771 focos de calor detectados no país, Mato Grosso respondia pela maioria, com 6.260 dos pontos de queimadas.
Essa quantidade representa um aumento de 7% comparado ao mesmo período do ano passado ((5.811). No Estado, dentre os municípios com maior número de focos estavam Poconé (407), Nova Maringá (283) e Feliz Natal (258). Dos biomas, o cerrado e a Amazônia respondiam por 32,7% e 32,3% das queimadas, respectivamente.
TI Xingu – por helio carlos mello@
XINGU – De acordo com as seis organizações da sociedade civil as áreas protegidas da bacia do Xingu, entre Mato Grosso e o Pará, figuram entre as mais vulneráveis, com quase nove mil hectares desmatados só neste ano, perfazendo 56% a mais do que no mesmo período de 2019.
A bacia do Xingu cobre uma área de pouco mais de 50 milhões de hectares entre os dois estados. Ela abriga 28 TIs e 18 unidades de conservação (UCs), conforme o Greenpeace.
Segundo o Sistema “Sirad X”, nos quatro primeiros meses do ano, o desmatamento na bacia do Xingu aumentou 20%.
A análise aponta que 25% do desmatamento ocorreu dentro de áreas protegidas, somando quase 9 mil hectares, 56% a mais que no mesmo período de 2019.
“Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Tudo é menino, menina No olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto Ganindo pra lua Nada continua” (Caetano Veloso)
O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.
Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos –sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”
O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.
Caveirão: policiais militares ameaçam moradores
Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.
O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.
Sofrimento demais
Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:
–Você quer fugir?
Ela nem ouviu. Ela sentiu:
–Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?
–Sim!
–Quero!
“Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”
Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.
Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.
Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.
Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.
Moradia de carros
Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.
O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.
O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.
Casa sem banheiro, sem teto, sem nada
O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.
Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”
João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”
“Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.
O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.
Mas é infinitamente melhor do que a rua.”
“A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. Porque para a rua eu e meus filhos não vamos. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. Eu ofereço o meu peito para a a bala. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim” (Elisângela)