Ode à consciência

A civilização da solidão chegou ao paroxismo com a selfie

2016 chegou ao fim. Ufa! Foi o ano que, indiferentemente a qualquer posição política e posição geográfica (no globo inteiro) deixa qualquer um arrepiado só de lembrar. Isso por que foi o ano que  nos fez entender: século 21 é apenas uma marcação temporal. Uma prisão e controle do tempo que, de avançado e progressista, só tem a capa nova do Iphone novo. Valores, noções humanas e civilizadas não têm sincronia nenhuma com o calendário. 2016 mostrou, por meio da força, que a humanidade poderia ainda ser da época das cavernas.

Para entender esse ano tão sinistro é bom recorrer, não só nesse caso, a um bom velhinho que em terras tropicais foi transformado em demônio… No melhor estilo do Iluminismo que floresceu na França um século antes, Karl Marx  se preocupa, ao seu modo, com o progresso da razão humana, da tomada da razão pelo Homem para que esse tenha autonomia sobre si. Sua principal teoria, que deixa qualquer coxinha de cabelo em pé (por conta de uma ignorância mais sinistra que tudo, já que nunca leram nada além da capa) trata da alienação entre a mercadoria e seu criador, o trabalhador.

A mercadoria, que nada mais é do que qualquer coisa que tenha sido trabalhada por algum ser humano, pode ser colocada no “mundo do mercado” e trocada por qualquer outra mercadoria, pois todas têm um denominador em comum: o trabalho humano. Assim o trabalhador, o produtor, é quem detém a chave para a riqueza. Mas uma vez inserido no modelo de produção capitalista o trabalhador se torna ele mesmo uma mercadoria, por conta de sua força de trabalho que pode ser controlada e substituída por outro trabalhador.

Uma vez que o próprio trabalhador se torna uma mercadoria, ele perde o poder sobre si, sobre seu trabalho, sobre o objetivo de trabalho, sobre seu esforço para o trabalho, sobre sua vontade e tem que se resignar a seguir as vontades daqueles que controlam os meios de produção, para os quais ele se tornou apenas energia descartável.

 

 

Esse processo de perda de autonomia é o que Marx chama de alienação, ou separação, do trabalhador com seu trabalho e a possibilidade de ter controle sobre o que e como ele cria. Essa alienação é a base da perda progressiva de consciência do trabalhador, sua mecanização cotidiana realizando um trabalho que não quer, com o objetivo apenas de sobreviver e não de criar. E eis que ele se torna um autômato repetitivo, cada vez menos humano. Ele se perde, uma vez que não responde a suas necessidades, mas à vontade de seu controlador. Perde a consciência de si, e assim perde a capacidade de empatia. E a proposta do bom velhinho demonizado é que, uma vez livre da sanha do lucro que só produz e produz e produz sem uma necessidade para sanar (é consumismo, idiota!) visando apenas o lucro, o trabalho possa ser exercido por todos de acordo com suas necessidades e vontades, dominando o produto e não sendo seu dominado.

E cá estamos em 2017…

Estamos mais e mais fundos no sistema capitalista. Vivemos em grandes cidades, correndo, apressados, prensados, cheios de coisas e mais coisas para fazer, sem um porquê genuíno para fazê-las. A cidade se tornou (ou sempre foi) uma enorme linha de produção onde se anda ou para produzir e sobreviver, ou para fugir da repressão quando se manifesta contra isso. A alegria em conhecer, em criar, em respirar fica esquecida, uma vez que se tem que correr para evitar o trânsito, ter medo das muitas armas (policiais ou não) prontas para atirar, ou tapar o nariz da fumaça espessa que cobre a cidade.

Como previu o barbudinho do século retrasado a humanidade tem se mecanizado, se desumanizado, e se move pela obrigação de produzir. A solidariedade, o senso de coletividade e empatia vai se apagando. Afinal, o outro é meu adversário. O outro pode tirar meu emprego. O outro pode tirar minha vaga no estacionamento. O outro pode me matar. O outro é estranho. Outro é outro. O outro… O outro….

 

Luiz Ruas, espancado até a morte dentro do metrô. Ninguém o socorreu

O homem mercadoria, dominado, sem autonomia, não se vê como integrante de uma sociedade. O homem mercadoria se vê sozinho, competindo com seus irmãos (quem chama as pessoas de irmão não é o comunista, mas o outro barbudo, um tal de Jesus). Se o outro não está no meu caminho, ótimo, se está, que saia da frente. Se o Luiz está apanhando ali na minha frente, que se dane, não sou eu. Se o homem pode matar sua família, vou comentar, curtir e compartilhar (tradição, familia e propriedade é a santíssima trindade). O Carandiru, bem, o Carandiru não é chacina, muito menos se for em um presídio do norte (tudo criminoso). Se o negro é morto, que se dane, não sou eu (e ele deve ter feito coisa errada, favelado…). Se a mulher foi estuprada, pena, mas já foi (e aquela saia de puta…. até que se entende). Se o gay apanha, já foi também (é viado, tem que apanhar mesmo). Mas estamos em 2017, o Iphone novo resiste à água, o homem vai pra lua quando quer, existe maquina de impressão 3D… essas coisas todas novas e tecnológicas. Tamo bem.

 

A embalagem que cobre o homem mercadoria, sem consciência, que enxerga o mundo por uma tela e não vê nada, é moderna, prata e reluzente. Mas o interior é ignorante, não faz a mínima conexão, automaticamente engole o que vê na prateleira, acredita no que houve. Afinal, não tem tempo para qualquer outra coisa, o trânsito pode piorar se ele não correr. E pensar, refletir, questionar só exige uma coisa, preciosa, o tempo. Tempo esse que que serve mais como controle, mais como algema, de que como momento pra se viver. É necessário bater o cartão. Tempo é dinheiro, não é mesmo?

 

Então o que resta, mudar, mas como? Nisso, acho que melhor impossível é a resposta do MTST: SÓ A LUTA MUDA A VIDA. Pode vir 2017!

 

MTST: SÓ A LUTA MUDA A VIDA

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