Laços de amor ameaçados

A adoção e o apadrinhamento afetivo são ainda grandes mitos na vida das pessoas. Isso faz com que as vidas dos menores ainda sejam de rejeições e de pré-conceitos

A luta pela guarda definitiva da pequena M.E, mais conhecida como Duda, de 6 anos, aproximou ainda mais o casal de empresários Liamar de Almeida e Valbio Messias da Silva. A batalha judicial acontece desde 2011 e, após quatros anos, ela está praticamente na estaca zero. Devido à demora em solucionar o caso, Liamar e Valbio se sentem, a cada dia, mais pais da criança. “Desde os primeiros meses de convivência, Duda já nos chama de papai e de mamãe e a minha filha mais velha, a Gabriela, ela fala para os colegas da escola que é a irmã dela”, conta Liamar.

A situação da menor que agora já está aprendendo a ler, escrever e formar as primeiras frases já foi muito triste. Com apenas dois meses de vida, o Ministério Público de Minas Gerais abriu um processo contra a família biológica, com a denúncia de abandono e maus tratos e a menor foi separada deles e entregue a um abrigo. Após quase dois anos sob a tutela do Estado, o casal que mora em Contagem, conseguiu a guarda provisória de Duda para fins de adoção e começaram a partir desse momento construir os laços familiares. “A nossa gestação foi um pouco diferente da gestação biológica. Estávamos na fila de adoção há mais de cinco anos e esse foi o tempo que levou para a Duda nascer em nossas vidas”. Para Liamar, o filho adotivo não tem o DNA de sangue e sim o DNA de alma.

Porém, a família biológica da menina recorreu da decisão judicial e pediu para retomar a guarda de Duda e dos outros seis filhos e o caso tomou repercussão nacional chegando a ganhar apoio de grupos de adoção de todo o país. Segundo Valbio, a história da menor está sendo construída em dois processos judiciais. Um dos processos é do Ministério Público, aberto em 2009, contra os pais biológicos. Nesse processo, a família Silva não participa e ele vem se arrastando há anos, sendo que a conclusão foi para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, TJMG, que julgou pela devolução de todos os filhos, inclusive a Duda, para os pais biológicos. “Nós não pudemos recorrer porque não fizemos parte desse processo”, disse Valbio.

Casal Liamar e Valbio. Foto: Nivia Machado

Os advogados de defesa do casal adotivo, Rômulo Mendes e Mariana Tonucci, abriram um novo processo de destituição familiar dos genitores. Os motivos alegados no novo processo já não são mais a situação de abandono que a pequena Duda passava e sim a situação de laços afetivos que foram construídos no período de guarda provisória. Segundo Rômulo Mendes, o processo de adoção deve sempre garantir o interesse da criança atendendo ao artigo 127, da Constituição 1988. “O juiz da comarca de Contagem chegou a extinguir esse novo processo de destituição e após indeferir, o caso foi parar no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) no sentido de questionar a decisão do Juiz de Contagem”, afirma.

Em 23 de setembro de 2014 os desembargadores do TJMG, por meio do Acórdão, mandaram uma ordem judicial para o juiz da comarca de Contagem obrigando-o a aceitar o processo, afirmando que o casal adotivo tem direito a lutar pela guarda da menor. Segundo Valbio Silva, passado um ano da decisão em segunda instância, o processo se encontra parado, como se estivessem acabado de receber a Duda na fila de adoção, sendo que as partes ainda não foram chamadas. “Agora que vai começar a julgar a destituição do poder familiar dos pais biológicos, com o pedido de adoção, mas a nossa preocupação é com a Duda, onde ficam os interesses e direitos da criança nesse caso? Eu quero o que seja melhor para a vida dela, pois o maior interesse deve ser sempre o da criança e não dos adultos”.

Patrícia Pechim foi adotada quando tinha dois anos. Hoje, com 30 anos, troca experiências com os outros integrantes do GAA. Foto: Nivia Machado

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é direito do menor conviver no seio da família seja pela biológica ou pela substituta, cabendo ao juiz decidir pela reintegração familiar, ou colocação em família adotiva. Essa decisão deve ser fundamentada, com base nos laudos e relatórios de uma equipe multidisciplinar.

À espera de uma família

Segundo a Psicóloga Judicial, do Juizado da Infância e Juventude de Contagem, Larissa Alexandra de Sá Teixeira, 12 crianças e adolescentes estão aptas a encontrar uma nova família para recomeçar a contar a história de vida. Dessas 12 crianças, a maioria está com idade acima dos 10 anos. Estudo feito pelo Juizado, em agosto de 2015, aponta que 40% dos adotantes não têm preferência para a cor de pele e 27% preferem crianças com cor branca. Porém, a exigência maior está relacionada à idade do adotado, 71% dão preferência às crianças menores de três anos e apenas 2,3% adotam crianças maiores de seis anos. Diante desse quadro, a realidade da maioria desses menores, que estão liberados pelo Juizado da Infância e Juventude de Contagem para a adoção, é de que não existem pessoas interessadas em adotá-los e completarão a maioridade sem ter tido algum laço familiar.

É o caso do menor Daniel, 15 anos, de Belo Horizonte. Mesmo não pertencendo à comarca de Contagem, a realidade dele é semelhante a dos adolescentes de lá. O adolescente está em situação de acolhimento em uma instituição da capital, com mais 11 meninos. Desde os 12 anos, o garoto não convive mais com os pais biológicos que segundo ele, eram agressivos e tinham problemas com consumo de álcool. “Foi a violência que mais me impulsionou a fugir de casa. A vida no abrigo não é a melhor de todas porque sinto falta de uma família, mas aqui eu posso estudar e tentar ter um futuro melhor. Hoje eu tenho dois sonhos: o primeiro é ter uma família e o segundo é me tornar um juiz de direito”.

Em contagem, cerca de 100 menores vivem em instituições de acolhimento e muitos deles, segundo a integrante do Grupo de Apoio à Adoção Amigos da Duda, GAA, Regina Puddo, já poderiam estar em processo de adoção e ainda não estão por falhas no judiciário. “Tem crianças que crescem nos abrigos, sem voltar para a família de origem e que nunca entraram no cadastro de adoção. Umas das lutas do grupo no qual faço parte é apoiar a adoção desses menores”, afirma.

A pequena Duda aprendendo o beabá. Foto: Nivia Machado

Apadrinhamento afetivo ameniza a carência dos menores, mas ainda falta legislação específica

Com o objetivo de amenizar a distância do convívio familiar, o apadrinhamento afetivo permite às crianças e adolescentes que estão em acolhimento institucional, o contato com outros referenciais de vida, além dos profissionais da instituição. Porém, segundo o diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Família, Rodrigo Cunha Pereira, os programas de apadrinhamento afetivo no país, embora reconhecidos como iniciativas louváveis de acolhimento aos menores em situação de vulnerabilidade social, ainda não possuem base legal. “O ECA prevê a criação de uma lei específica sobre apadrinhamento, mas para não deixar as crianças e os adolescentes sem nenhum direito, os municípios promovem iniciativas, porém os termos de cooperação firmados entre as instituições sociais e os órgãos governamentais criam brechas e disparidades e os maiores prejudicados nisso são os menores”.

A analista financeira Érica Freitas, já foi madrinha de uma criança acolhida em Contagem, em meados de 2007. “Fui madrinha no sistema antigo, nessa época, a gente levava a criança sem fazer nenhum tipo de registro ou cadastro de apadrinhamento. Esses documentos eram feitos dentro dos próprios abrigos. Eu apadrinhei uma menina que tinha dois irmãos que foram adotados por uma família e ela já estava em processo de adoção, dessa família, e com isso, eu me afastei para a criança ter maior contato com a família adotante”, conta.

Os adolescentes têm o direito à família e foi pensando assim, que a Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação de Contagem em conjunto com a vara da infância mudaram as regras do programa de apadrinhamento O programa tem alguns requisitos como preencher cadastro e passar por entrevistas. Outra alteração foi que agora o padrinho não poderá apenas ficar com os menores só no final do ano, ou em datas festivas, ele deverá ter regularidade de presença na vida do menor. “Quando acontecia isso de só pegar no final do ano, gerava uma expectativa para a criança no restante do ano e não resolvia o problema da carência dela” defende Érica.

Ainda segundo Érica, existe a possibilidade do padrinho apenas ter um compromisso financeiro com o afilhado. No apadrinhamento material, o padrinho se compromete com valores acordados e registrados. Ele não pode simplesmente deixar de colaborar de uma hora para outra. Para a artesã Regina Carla, essa possibilidade só gera mais afastamento dos adolescentes do convívio familiar, uma vez que os padrinhos só terão o compromisso financeiro deixando de lado o principal que é o afetivo.

Daniel pode ser considerado um adolescente de sorte dentro desse universo. Desde quando os pais biológicos deixaram de ter o poder da guarda dele, o adolescente encontrou apoio da madrinha que garante a ele um plano de saúde, roupas e calçados, mas para o adolescente, o que a “dinda” dá de mais valioso é o carinho e os conselhos para melhorar de vida. “Às vezes vou à casa dela e tenho convívio com a família dela, mas na verdade queria ser adotado”.

A situação da adoção de Duda ainda não foi resolvida , mas ela já chama Valbio e Liamar de papai e mamãe. Foto: Nivia Machado

Mesmo com um judiciário lento e a falta de lei específica, voluntários arregaçam as mangas

Pensando em todas as dificuldades, desafios e dúvidas referentes ao universo da adoção e do apadrinhamento e inspirados no caso da pequena Duda, o casal Liamar e Valbio percebeu que muitos casais brasileiros e principalmente, as crianças e adolescentes, passam por dificuldades semelhantes às deles e com isso, o casal resolveu criar um grupo de apoio à adoção, em Contagem. “O Grupo de Apoio à Adoção Amigos da Duda, GAA, busca dar orientação na hora que os adotantes mais precisam. Os participantes trocam experiências, dúvidas e dão conselhos. Tivemos a necessidade de reunir com pessoas que pensam da mesma forma. São os diversos olhares que fortalecem o grupo”conta Valbio.

Formado em março de 2015, o grupo tem o apoio da psicóloga Marlene Santos e de pessoas como a funcionária pública Lenir Silva que tem um filho adotivo de 13 anos; da artefinalista, Patrícia Pechim, que atualmente está com 30 anos e foi adotada quando tinha apenas dois anos de idade.

A funcionária pública, Lenir das Dores Silva adotou o pequeno Wesley quando ele tinha dois anos e hoje o garoto está com 13 anos. Segundo Lenir, Wesley é como qualquer outro adolescente: dá trabalho e também alegrias. Porém, segundo Lenir, nem todas as crianças tiveram a mesma sorte que Wesley, a adoção requer mais um pouco de cuidado porque a criança já vem com um histórico triste na vida “Quando uma criança tem dois anos ela tem um histórico de rejeição ou maus tratos em um período de dois anos. Quando essa criança tem dez, doze anos, o histórico e os traumas são maiores e os adotantes têm que estarem mais preparados para lidar com o adolescente”. Mesmo com todas essas dificuldades, Lenir acredita que não adotar um adolescente pode ser considerado uma forma de preconceito.

Grupo de Apoio à Adoção Amigos da Duda, GAA, é composto por voluntários. Foto: Nivia Machado.

Para Patrícia, poder falar da experiência de vida de uma pessoa que cresceu sabendo que foi adotada é muito importante porque elimina traumas pessoais e ajuda quem também passa pela mesma situação. “Fui morar com meus pais ainda bebê e sou a caçula de uma família de quatro irmãos. Cresci tendo o mesmo tratamento dos meus outros irmãos, mas na escola sofri alguns bullyings de colegas que estudaram comigo quando criança e falar sobre isso e ter a possibilidade de trabalhar essa temática dentro de um grupo, ajuda a romper barreiras”, conta.

O grupo não é apenas de apoio mútuo. Segundo a integrante, Débora de Paula Cortezzi, são desenvolvidos projetos voluntários com os adolescentes em situação de acolhimento na tentativa de qualificá-los para o mercado de trabalho. “Eles chegam às instituições de acolhimento com a dificuldade da adoção tardia e quando completam 18 anos, saem da instituição sem estarem qualificados profissionalmente. A intenção do nosso grupo é desenvolver o trabalho de qualificação. Queremos buscar parcerias com empresas da região e também a inclusão de novos voluntários”, finaliza.

Wesley de 13 anos encontrou amor, atenção e carinho com a mãe Lenir. Foto: Nivia Machado

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