Cultura não é vagabundagem

No extinto Reino de Internetlândia, então dividido em castas, gente fazedora de arte e tratadas como vagabundas, decidem entrar em greve.
Cultura não é perfumaria

Elitenata contra zépovim

Quando a Arte é tratada como perfumaria
a Cultura é tida como vagabundagem

Internetlândia era um reino violento dividido em três castas – zépovim, mediocrim e elitenata – todas elas baseadas em herança patrimonial, cujo sistema de justiça tinha um único juíz, um ser abjeto conhecido como “Exmo. Sr. Mérito Cracio”.

O Cão – sistema imperial de segurança pública do reino – tinha a incumbência de defender apenas nascidos na elitenata, enquanto ignorava os membros de mediocrim e sentava o cacete nos zépovo (que era como eram chamados os da casta zépovim).

Acontece que, independente da casta, no seio de cada família de internetlândia havia sempre uma pessoa criada para exercer a função de “Vagabunda”, ou “Boba”, como também era comum de se falar por lá. Essa pessoa era encarregada de produzir as chamadas “artes da perfumaria e  da vagabundagem imperial”, e tinham o dom de modificar os humores à sua volta.

E quando digo humores, querida pessoa leitora, não estou falando simplesmente de provocar risos, mas de uma coisa maior: elas cultivavam a faculdade de enternecer, de indignar, de fazer doer ou de elevar o estado de espírito das pessoas ao seu redor. 

Elas eram chamadas de “vagabundas” ou “bobas” porque, em um reino onde tudo era economicamente mensurável, mover o corpo ao ritmo de uma melodia qualquer, tocar instrumentos musicais, cantar, desenhar ou fazer versos era não apenas visto como inútil perfumaria, como eram atividades, por vezes, bastante mal vistas. Tão mal vistas que chegavam a ser proibidas em certos espaços, a depender do rebuliço que causavam e da classe social à qual pertenciam os “bobos e as vagals” envolvidas.

O grande desfile da discórdia

Certa vez, durante uma tradicional festa de rua que agitava o reino, zépovo convocou tudo o que era vagabundo e produtoras de perfumaria em geral para promoverem um desfile histórico. Nele seriam retratados momentos belos e terríveis da história do reino, dando destaque para a beleza resistente do povo, mas também à opressão que os Cães (braços armados dos elitenatários) causavam à casta dos zépovim.

Nesse dia o desfile foi lindeza! Daqueles eventos rebeldes que alegram, indignam, machucam e oferecem curativos, sabe? Desse jeito como só as melhores artistas saberiam fazer com a nação. 

Mais eis que, como resposta à rebeldia popular, o Cão e sua elitenata ladrou e soprou e apelou ao senhor juiz Mérito Cracio para que retaliasse a audácia do zépovim. 

E assim foi feito. 

Durante dias e meses, o Cão perseguiu todo tipo de vagabundo, pessoas produtoras de arte, especialmente as melaninadas, que tivessem participado ou mesmo aplaudido o grande desfile. E eles morderam, prenderam e assassinaram.

Como o reino foi abaixo

Um dia, cansadas de tanto desvalor e perseguição,  todas as pessoas bobas da casta zépovim decidiram entrar em greve e simplesmente pararam de produzir sua vagabundosa arte.

No começo, tanto a Rainha quanto a população achou que não fazia falta porque aquele era um reino culturalmente rico e suas obras de arte milenarmente acumuladas enchiam os olhos e o peito de quem tomasse contato com ela.

O que todo mundo desconsiderou é que a cultura é viva, precisa de alimento e que essa nutrição vem, invariavelmente, do povo. Com o passar do tempo, sem zépovim pra cuidar, nada de novo surgiu. Ao longo de décadas, a população emburreceu e, para alimentar sua necessidade humana de literatura, para garantir seu direito pleno, passaram a intervir no mural oficial do reino, gerando homéricas brigas e as mais diferentes desilusões.

E foi assim que Internetlândia se entregou à morte: tratando cultura e arte como perfumaria, artistas do povo como vagabundos e botando o Cão na cola pra reprimir tudo o  que abrisse os olhos dos zés e marias do povo.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha


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