Coisa de gente branca

O Café com Muriçoca de hoje traz a trágica história de Internetlândia, um reino onde todo mundo se metia na conversa alheia.

Proibido comentar [sem ler]

No reino de Internetlândia todo dia era dia de cuidar da vida alheia e isso, como você pode imaginar,  cara pessoa leitora, gerava todo tipo de confusão. 

Certa vez,  por exemplo,  alguém inventou de contar uma história sobre um candidato à presidência do território vizinho que teria morrido e deixado um ator, um sósia, para concorrer às eleições em seu lugar – e ainda por cima ganhou! A história foi tão bem contada que mereceu o Oscar de melhor ficção.

Em outra ocasião, uma mulher conseguiu mobilizar todo o reino, arrecadando doações milionárias para sua gravidez de quadrigêmeos, concebidos de modo natural por um pai estéril.

Houve ainda aquela vez em que uma subcelebridade precisou ir a público para provar que havia nascido saudável, sem a Síndrome de Vatér – que é quando a pessoa nasce sem o orifício do ânus.

Até nisso o povo de Internetlândia queria se meter. Vê se pode!

Um dia, a velha rainha, cansada de guerra, baixou um decreto proibindo: ficção, mentira, fuxico e, principalmente, opinar sem nem ter lido inteiras as postagens do mural oficial de Internetlândia. Disse que era coisa da branquitude essa preguiça de estudar e, mesmo assim, ter a arrogância de se intrometer – e que, em seu reino multiétnico, privilégios não mais passariam em branco.

A falta que faz a interpretação de texto

Assim que o decreto foi a público,  uma enxurrada de comentários indignados, e-mails e petições choveram nos perfis da monarca. A maioria reclamando de censura, ditadura e outras queixas justas, porém descabidas no contexto da lei que – ou não foi lida na íntegra, ou não foi compreendida em sua totalidade de camadas.

Acontece que o povo de Internetlândia até que era obediente no quesito de tentar seguir as regras. O problema foi a forma como o decreto foi escrito, pois a maior parte do reino não lia mais de duas linhas e, quem lia, não achou que a lei se aplicava a si. Constava lá:

“Para quem NÃO lê mais de duas linhas: fica terminantemente proibido ficcionar, mentir, fuxicar e, principalmente, opinar sem ter lido na íntegra as postagens do mural de Internetlândia…”

Quem, de fato, só lia textos curtinhos e desenhos deslizou os olhos somente até a palavra “fuxicar” e, não se sentindo como uma pessoa mentirosa, nem fuxiqueira, nem branca privilegiada, nem nada, achou que o decreto não se aplicava a si e tacou a criticar a mandatária.

Quem se empenhava em mais de duas linhas leu o post completo, mas não entendeu que deveria aplicá-lo a si também, afinal, lá estava escrito que a proibição era pra gente preguiçosa e arrogante, que não lia textos grandes, mas comentava mesmo assim. 

O que ninguém no reino tomou ciência foi que, no final do post, naquelas letras últimas que ninguém chega nelas, estava escrito: “LEIA o texto completo. Link na bio” – e a rainha deveria saber que quase ninguém se dá a tanto trabalho porque tem que sair da página e o dedo fica coçando pra xingar alguém rapidinho… quer dizer… não rola. Mas o texto completo da lei dizia que também era proibido dar ibope, ou seja, replicar, responder às provocações de quem NÃO lia mais de duas linhas.

A pena prevista era a forca

Como resultado, todo o reino acabou extinto e até os carcereiros se enforcaram depois de fazerem comentários maldosos sobre a nova legislação e sobre as postagens de seus finados desafetos no mural de Internetlândia.

E mesmo a rainha, depois de burlar o próprio decreto e chamar sua população de burra, por não terem compreendido o texto da lei, findou morrendo de tédio. Afinal, sem ficção, qual o destino da mente humana senão a estagnação e a morte?

Post Scriptum

No fim, queridas pessoas leitoras, até esta escriba se danou todinha, pois no reino de Internetlândia essas também são as suas últimas palavras. 

Sem carcereiros para a botarem na forca, por ter continuado a comentar nas postagens alheias,  após ler e também não compreender o decreto, saibam vocês que ela está de mudança para o reino vizinho. Um tal de Xis o governa e dizem que lá as tretas são permitidas.

Esperamos que demorem a descobrir que se trata de uma fugitiva.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha


LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

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Todavia sonhamos

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