We don’t need another Hero

A vida mitológica de Tina Turner e seus trabalhos para superar os desafios socias e simbólicos.

Por Jana Silva

Tina Turner atravessou o rio da vida, deixando um vazio nas referências de todos nós, como um dos seres humanos mais autênticos e inconformistas que já caminharam por este mundo. A partir de agora, Tina Turner ocupa um lugar no templo dos ancestrais, cujos passos podem ser seguidos com reverência espiritual, tal foi o impacto de suas pegadas.

Assim como Hércules e seus 12 trabalhos, Tina Turner transformou sua vida em uma saga heroica de superação, desafios e empoderamento que pavimentou o caminho para outras artistas negras que surgiram depois dela.

Tina desafiou o demônio do racismo. Nascida no Tennessee, sob o regime de segregação racial, Anna Mae Bullock teve berço humilde em uma família conturbada. Tina desafiou a sociedade ao superar uma infância difícil e pobre, quando vidas como a dela eram destinadas ao desprezo de talentos e sonhos.
Inconformista, Tina se inspirou em estrelas como Mahalia Jackson, B.B. King e Elvis Presley, criando um estilo vocal único e próprio. Ela desafiou os estereótipos raciais impostos à música, em uma época em que o rock já havia sido apropriado por artistas brancos e artistas negros eram limitados a gêneros específicos. Abraçando influências musicais diversas, ela criou seu próprio som.

Tina venceu o monstro patriarcal. Nos bastidores, Tina Turner suportou abuso físico e emocional durante seu casamento com seu primeiro marido. Ainda assim, encontrou a força para deixar o relacionamento abusivo e reconstruir sua vida e carreira.

Tina derrotou o Deus do Tempo. Depois de se libertar dos abusos, sendo mãe de dois filhos, Turner desafiou as noções convencionais sobre a idade nos anos 80, quando seu álbum “Private Dancer” se tornou um sucesso absoluto. Com mais de quarenta anos na época, ela exibia lindas pernas em vestidos curtos no palco, cantando e dançando em energia ímpar, tornando-se um símbolo sexual aos 40+ e consagrando-se como um ícone da música.

Tina tornou-se a Leoa de Nemeia. Ela criou uma estética icônica, caracterizada por cabelos volumosos e impertinentes, semelhantes a uma juba leonina. Sua maquiagem ousada e glamorosa, com glitter e paetês frequentemente incorporados aos figurinos, a tornaram uma figura inconfundível. Seus vestidos com franjas acentuavam seus movimentos de dança, dando um senso de dinamismo e energia às suas performances.
Os trabalhos hercúleos de Tina Turner poderiam ser narrados na Odisseia de uma mulher que superou inúmeros desafios sociais, pessoais e artísticos com graça e inteligência.

Apenas uma força de natureza mística poderia explicar o fato de que, em vez de a desgastarem, esses desafios abriram horizontes criativos e simbólicos para ela e diversos artistas de hoje, inspirando e embalando estéticas e autenticidades. A cada paradigma superado, seu poder pessoal e força vital aumentavam.

Tina matou o Bode da solidão da mulher negra. Em uma entrevista concedida a Oprah Winfrey em 2018, Tina Turner narrou sua história de amor em dois episódios, juntamente com seu companheiro de décadas, e revelou, emocionada, que construiu seu próprio paraíso, estando na fase mais feliz e plena de sua vida.

Tina Turner venceu o Deus da Morte ao emprestar sua voz à uma prática espiritual consistente, que permeou seu corpo e a ensinou a fluir pelas vidas, em todas as suas formas, exigindo a totalidade de sua consciência.

Tina Turner passou pela Terra, repartindo sua essência para relativizar paradigmas limitantes, em uma emulsão mística de dificuldades e traumas da vida, vivendo com amor, alegria e realização interior. Os trabalhos heróicos de Tina Turner libertaram essências e territórios de gerações inteiras, e por isso reverenciamos esses tempos com gratidão por termos vivido na época em que ainda havia semideusas caminhando por aqui.

Jana Silva é membro do Núcleo Negro do Jornalistas Livres

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