A poeta e o monstro

"A poeta e o monstro" é o primeiro texto de uma série de contos de terror em que o Café com Muriçoca te desafia a descobrir o que é memória e o que é autoficção nas histórias contadas pela autora. Te convidamos também a refletir sobre o que pode ser mais assustador na vida de uma criança: monstros comedores de cérebro ou o rondar da fome, lobisomens ou maus tratos a animais, fantasmas ou abusadores infantis?
A poeta e o monstro
Ilustração: Júppiter, 2024

Parte 1: O fruto proibido

O que vou contar agora é motivo de desculpas,  pois quando o fato se deu eu já tinha idade pra entender que vozes que saem de laranjas e de  eletrodomésticos nunca nos convidam para as boas ações. 

Na minha casa tinha pouca comida, exceto nas festas de fim de ano, porque minha mãe e meu pai trabalhavam em condomínio. Nessas épocas, porteiros e empregadas domésticas são mais felizes. O espírito natalino brilha nas pequenas árvores artificiais e as patroas doam: roupas, presentes, perus e outros artefatos de desprezo. 

No resto do ano,  entretanto,  não tem folia nenhuma e frutas são artigos raros, disputados.

Enfim, havia um monstro que era do tamanho de um verme e morava dentro de uma laranja-pêra de cor verde reluzente que minha irmã tinha, terminantemente, me proibido de comer.  

Nem sei se era dia de pagamento,  mas, contrariando a miséria comum, naquele dia, houve uma inexplicável fartura de laranjas na gaveta mais baixa da geladeira. Eram tantas que ninguém poderia saber, caso eu roubasse alguma. Foi de lá que, por cima de uma pilha meticulosamente organizada pela mais velha,  uma voz abafada e grave me chamou. Ela falou meu nome de batismo, mais os nomes dos meus sete estômagos, e eu, convocada e seduzida, rasguei o monstro  às dentadas sem sequer raciocinar. Eu devia ter por volta de sete anos,  quando engoli esse desinfeliz.

Parte 2: O monstro

Cometi o delito sem dó e sem nojo, pois que, como nas goiabas doces que vinham da lateral da feira, tanto fazia se tivesse bicho ou não. Bicho de goiaba é goiaba. Monstro de laranja, é laranja.

Além do mais, lá no fundo, eu esperava que o verme morresse, em contato com as facas dos meus dentes e com a larva do meu suco gástrico, mas valha-me Deus! que não foi assim! O dito cujo, em vez de se sujeitar, passou foi pelo esôfago gritando coisas horríveis contra minha pessoa.

Disse que nunca mais ia embora.  Que se instalaria nos meus órgãos principais e me faria de marionete: que daquele dia em diante eu pagaria meus próprios boletos, trabalharia feito escravizada, me vestiria para agradar aos outros e choraria em público sempre que estivesse braba – porque chorar, ele dizia friamente  quando estava calmo, ia mostrar minhas fraquezas.

Diante da iminente desgraça,  sentindo, ainda agora enquanto narro, a boca seca e o coração gelado, implorei ao bicho que ao menos ficasse calado diante das outras pessoas, para que não achassem que eu estava ficando louca, por dizer coisas sem sentido e conversar com um verme – ao que ele concordou. 

Quando minha irmã chegou, no entanto,  como bem era de se esperar, vindo de um monstro, ela pisou na primeira tábua do chão de assoalho e ele gritou através da minha boca: 

Eu comi da laranja proibida! Desce o sarrafo no meu lombo!

No começo,  minha irmã achou graça por minha boca ter gritado o que meus olhos tentavam desesperadamente esconder. Mas depois ela viu que era sério: contou fruta a menos no monte e, o coro, precisava comer.

Enquanto o chicote estralava, deixando marcas ardidas nas minhas pernas e costas, meus olhos choravam compulsivamente, mas minha boca gargalhava e gritava que eu devia apanhar mais, que era ainda muito pouco.

Quanto mais eu chorava, mais o monstro gritava e ria.

Minha irmã,  no começo, ficou puta com as risadas. Depois teve medo de que a surra estivesse me enlouquecendo e parou pra me olhar nos olhos uns instantes. O que ela viu deve ter arrepiado até os cabelos da bunda: era uma angústia larga e decididamente incompatível com as risadas que eu soltava pela boca. Pensou que eu talvez estivesse possuída e então, assustada, ela desistiu de mim.

Parte 3: Metamorfose

Com o tempo, o monstro cresceu, dominou quase tudo do meu ser esfomeado e depois montou casulo no meu peito, entre o fígado e o coração. Levou anos, mas o pequeno criou asas verdes reluzentes e desenvolveu dentes afiados como os de um morcego ou dragão. 

Em noites muito quentes ele abre suas asas – elas rasgam minha pele e eu consigo até voar. Do alto dos arranha-céus, ele observa o mundo através dos meus olhos e se mete a escrever poesia.

Ele continua feio, mas ficou engraçadinho. E até que calado, caladinho assim, como há tempos ele anda, um dia ainda vai se revelar um verdadeiro poeta.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha


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