Abre Alas! Pela primeira vez, povos indígenas são convidados a participar do Carnaval!

Pela primeira vez, povos indígenas são convidados a participar do Carnaval. A escolha por não estereotipar gerou críticas nas redes sociais.
povos indígenas no carnaval

Reprodução: Instagram Hutukara Associação Yanomami (HAY).

O Carnaval de 2024 marcou uma virada significativa ao compreender, pela primeira vez de maneira marcante, a importância de inserir não só as vozes e as lutas dos povos indígenas nas festividades, mas os povos e seus representantes. Este reconhecimento ganhou destaque na Acadêmicos do Salgueiro, uma das escolas mais tradicionais do Rio de Janeiro, que escolheu como enredo “Hutukara”, uma homenagem à luta do povo Yanomami.

O samba enredo, construído em parceria com importantes figuras indígenas, como o xamã Davi Kopenawa, buscou ir além da narrativa de tragédia muitas vezes associada aos povos indígenas. Em uma frase provocativa, Davi Kopenawa desafiou o Salgueiro a retratar os Yanomami não como vítimas, mas como um povo guerreiro, resistindo ao projeto genocida imposto pela sociedade não indígena.

“Esse pedido foi, vamos dizer assim, um soco na nossa cara, porque o nosso propósito era falar sobre o povo Yanomami. Claro que quando a gente concebeu a ideia do enredo, a gente estava vendo aquela tragédia passando na televisão”, explicou Igor Ricardo, enredista do Salgueiro.

O refrão do samba, entoando “Ya temi xoa, aê, êa!”, que significa “eu ainda estou vivo” na língua Yanomae, destaca a resistência do povo Yanomami contra o genocídio promovido pela sociedade não indígena, especialmente com a ascensão da extrema direita ao poder nos últimos anos.

No desfile, o último carro da Salgueiro trouxe treze lideranças Yanomami: Dário Kopenawa Yanomami, Joseca Mokahesi Poroaunahikitheri, Ehuana Yaira Yanomami, Morzaniel Iramari Aranariutheri, Manoel Yanomami, Pedrinho Yanomami, Geraldo Kuisiteri, Otávio Ironasiteri Yanomami, Carlinha Lins Santos, Julião Komixipiweitheri Yanomami, João da Silva Figueiredo e Júlio Ye’kwana conduzidas por Davi Kopenawa, que realizou um ritual religioso de preparo antes de entrar na avenida. Além de lideranças indígenas que estavam presentes como Ailton Krenak,  Beto Marubo, Joenia Wapichana (Presidente da Funai) e Sonia Guajajara (Ministra dos Povos Indígenas).

Em entrevista ao G1, o líder indígena Ailton Krenak compartilhou seu sentimento: “É uma cosmovisão de um povo da floresta traduzido em samba-enredo. Isso consegue afetar milhares de pessoas. É a primeira vez que um samba consegue tratar de uma narrativa integral sobre a criação do mundo e como a gente está lidando com esse planeta Terra em tempos de mudanças climáticas. Estou muito comovido, é a primeira vez que estou aqui”.

Além disso, a escola também levou para o desfile Alessandra Soares, mulher do jornalista Dom Philips, que morreu durante uma expedição no Vale do Javari. Ela estava ao lado da jornalista Sônia Bridi no último carro alegórico da escola.

O Carnaval de Pernambuco também não ficou de fora dessa conexão entre samba e política. O Homem da Meia-Noite, icônico personagem do Carnaval de Pernambuco, celebrou seu 92º aniversário em um desfile extraordinário, honrando os povos indígenas com o tema “Terra Indígena”. Vestido em um traje deslumbrante confeccionado pela estilista Dai Molina, o calunga de 2 metros de altura tornou-se um veículo poderoso de conscientização, transmitindo mensagens sobre a luta indígena, destacando a demarcação de terras e celebrando a diversidade étnica. Na cartola, mensagens sobre a importância de demarcar as terras indígenas. “Demarcação já! Salve a mata. Democracia é demarcar território. Povos indígenas diversos. Pernambuco terra ancestral” eram alguns dos dizeres do adereço.No fraque branco, um mapa do Brasil, com a seguinte frase: “Brasil, terra indígena”. Na parte de baixo, setas, apontando para a parte de cima, para o colar de palhas do Sertão, elemento usado no artesanato indígena, que representou a riqueza da região.

Além disso, o calunga também usou colares de sementes, representando as várias etnias indígenas de Pernambuco.

No entanto, a estilista Dai Molina, responsável pelo traje do Homem da Meia-Noite em Olinda, recebeu críticas por não incluir elementos estereotipados em sua roupa, como grafismos. Em resposta, Dai afirmou: “Por que precisa ter grafismo? Eu sou uma criadora indígena, que opto por fazer exatamente o contrário, usando a moda como ativismo. Sem estereótipos. Trazendo linguagens e narrativas próprias. Nós, povos indígenas, nos manifestamos de muitas formas. O grafismo, inclusive, está presente em rituais específicos, não tem que estar no Carnaval. O problema é que quando se fala de cultura indígena, esperam que a gente se fantasie segundo o que entendem por ‘índios’. Não quero alimentar algo que lutamos para desconstruir. Chegou o tempo que o imaginário do que é ser indígena precisa se desconstruir na cabeça do não indígena. Deixe que a gente fale das mensagens que queremos falar nos espaços que somos convidados. Enaltecer a artesanía, o sagrado, a essência, a cosmovisão, a força dos povos e todas as palavras afirmativas por uma sociedade que desejamos isso faz mais sentido. Aqui a ideia é justamente a mensagem.”

Reprodução: Instagram. O Homem da Meia Noite.

 Reprodução: Instagram.

De volta à Sapucaí, enquanto o Salgueiro celebrava a resistência dos Yanomami,  a Acadêmicos do Grande Rio escolheu contar o mito tupinambá de criação do mundo em seu enredo “Nosso destino é ser onça”. Os carnavalescos buscam mostrar a força da onça como elemento central da brasilidade, explorando a simbologia do felino nas manifestações culturais nacionais, como umbanda, candomblé, carnaval, boi-bumbá de Parintins e lutas sociais contemporâneas. A obra, baseada no livro “Meu destino é ser onça” de Alberto Mussa, propõe uma reflexão sobre as raízes mais profundas do ser brasileiro, buscando difundir mitos dos povos indígenas, muitas vezes pouco conhecidos. Os carnavalescos esperam provocar encantamento e reconhecimento no público, conectando a narrativa mítica ao universo mágico do Carnaval. 

Para o carnavalesco, a Grande Rio, que é uma associação localizada em uma cidade que era território tupinambá no passado, tem a chance de popularizar essa narrativa usando da plataforma que tem enquanto escola de samba.

“A gente precisa naturalizar esses nomes, esse imaginário, essa terminologia, como felizmente as escolas de samba contribuíram para uma popularização de termos em línguas africanas nas suas narrativas que narram as cosmogonias, as divindades afro-brasileiras do candomblé”, lembrou Leonardo Bora.

Além disso, as baianas da Grande Rio também desfilaram de “Açoiaba Manto Tupinambá”, numa fantasia que representou, em forma de denúncia, o roubo de peças fundamentais para a compreensão da nossa história. A fantasia foi influenciada pela artista Célia Tupinambá.

Para a Agência Brasil a cacique Jamopoty, primeira cacica do povo Tupinambá de Olivença e da Bahia, falou sobre a importância do manto Tupinambá que está sendo repatriado pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ela destacou que o manto não é apenas um objeto, mas uma representação viva de mais de 300 anos, conectando diretamente com seus ancestrais e cultura.

“O manto precisa ser devolvido ao povo Tupinambá como instrumento de resistência e também de luta por seu território. Fomos invadidos, tanto no nosso território quanto nas coisas que preservavámos de nossos ancestrais. Quantas peças temos fora do Brasil? São muitas. E isso precisa ser devolvido para seus povos de origem”, afirmou Jamopoty.

Segundo Jamopoty, o manto ficará no Museu Nacional do Rio de Janeiro, e não na aldeia, porque esse território ainda não foi demarcado. “O manto tem uma força espiritual dos nossos ancestrais que é para a demarcação desse território. Não devemos esquecer que esse território foi demarcado em 1926. E hoje a gente precisa demarcá-lo de novo.”

Apesar dos avanços alcançados no reconhecimento e na valorização dos povos indígenas, ainda há um longo caminho a percorrer. Em um país que muitas vezes se acostumou a se fantasiar de “nós”, contar nossas histórias com nossos corpos presentes pode parecer estranho para alguns, mas é essencial para o futuro de uma sociedade verdadeiramente inclusiva e justa. É necessário continuar lutando pela demarcação de terras, pela preservação das culturas e pela ampliação do respeito e da visibilidade dos povos indígenas em todas as esferas da sociedade. O Carnaval também é Indígena.

(*) Naiá Tupinambá é uma indígena Tupinambá de Olivença, copywriter e fundadora da BND Digital, a primeira agência de marketing social fundada por duas mulheres indígenas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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