Organizações da sociedade civil e órgãos públicos apresentam Projeto para criação de Comitê para Prevenção e Enfrentamento à Tortura em São Paulo

Justificativa – Projeto de Lei que institui o Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento a Tortura no Estado de São Paulo e Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo.

As organizações da sociedade civil e órgãos públicos subscritores desta manifestação vêm à presença de V.Sa. apresentar justificativa para a apresentação do Projeto de Lei em anexo que trata da criação do Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento a Tortura no Estado de São Paulo e Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo.

 

 

  1. Panorama geral das pessoas privadas de liberdade no Brasil

 

O último estudo publicado sobre a situação do sistema prisional brasileiro – INFOPEN 2016 – mostra que, atualmente, o Brasil conta com uma população prisional de mais de 726 mil pessoas. Se analisarmos as vagas disponíveis no sistema, vemos que o déficit, por outro lado, é de mais de 358 mil vagas – o que leva a uma taxa de ocupação de 197%.

 

A superlotação, por si mesma,  já configura tratamento cruel, desumano ou degradante, em alguns casos constituindo tortura. Em inúmeros locais de privação de liberdade ao redor do país, não há espaço para presos dormirem, não há instalações sanitárias apropriadas e a alimentação fornecida não tem a qualidade mínima necessária. Além disso, a submissão das pessoas privadas de liberdade à tortura física e psicológica perpetrada por parte de agentes de Estado é extremamente preocupante. Relatório da Pastoral Carcerária de 2016 , que analisa 105 casos de tortura e maus tratos em estabelecimentos prisionais, demonstra como eles são perpetuados de diferentes formas e, muitas vezes, conjugando diversos tipos de violência:

 

“[…] é comum que os casos de tortura articulem múltiplas formas de violência. Pessoas espancadas são também ofendidas e ameaçadas, e depois isoladas em celas disciplinares insalubres, privadas de atendimento médico ou assistência material básica. Presos que questionam as condições de encarceramento são achacados e espancados, e a privação de serviços básicos é instrumentalizada para agravar o sofrimento infligido.”

 

A prática da tortura (generalizada) no Brasil, porém, não é recente. Desde visita realizada em 2000 pelo Relator Especial contra Tortura da ONU tal constatação é reiterada nos documentos e afirmações realizadas pelos órgãos de prevenção e combate à tortura da Organização. Em 2000, o então Relator Especial sobre Tortura Nigel Rodley afirmou que: “O período do regime militar de 1964 a 1985, caracterizado pela tortura, desaparecimentos forçados e execuções extra-judiciais, ainda paira sobre o presente regime democrático.”  No mesmo ano, o governo brasileiro narrou ao Relator Especial, em sua visita feita ao Brasil, que “a persistência dessa situação [de tortura] significa que os policiais estão ainda utilizando a tortura para obter informação e forçar a confissão, como forma de extorsão ou punição. (…) Deve ser observado que retaliações contra presos envolvendo tortura, espancamentos, privação e humilhação são comuns.

 

Em 2008, o governo brasileiro mantém a afirmação em relatório enviado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, na Revisão Periódica Universal: “Ainda é observado, no Brasil, acusações frequentes de abuso de poder, tortura e uso excessivo da força cometidos, principalmente, por policiais e agentes penitenciários”. Ainda, em coletiva de imprensa após a visita ao Brasil realizada em 2015, o então Relator Especial sobre Tortura da ONU, Juan Mendez, declarou que “A tortura e os maus-tratos por parte da polícia e dos agentes penitenciários segue sendo um fato alarmante e de ocorrência regular, principalmente contra pessoas que pertencem a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários”.

 

A tortura é ainda utilizada como método de investigação policial, estando incorporada à cultura das forças policiais. Pesquisa conduzida por Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), Pastoral Carcerária, IBCCrim e ACAT Brasil revela que em 66% dos casos envolvendo agentes públicos como autores da tortura, a acusação era de que a teriam utilizado como forma de obter confissão ou informação. A pesquisa também concluiu que a falta de provas é o fundamento mais utilizado pelo judiciário para absolver os agentes públicos acusados da prática do crime de tortura.

 

O descrédito à palavra da vítima é um dos elementos comuns, especialmente quando se trata de pessoa presa ou suspeita de ter cometido um crime.

 

Na apuração de casos de tortura a resposta estatal é frequentemente a mesma: a omissão. O relatório acima citado, produzido pela Pastoral Carcerária, mostra que em apenas 31% dos casos analisados as vítimas de tortura foram ouvidas por Defensores Públicos, Promotores ou Juízes e em apenas 30% dos casos realizou-se oitiva de alguma testemunha, “sendo que em 79 casos (75% do total) foram identificadas possíveis testemunhas-chave que deixaram de ser ouvidas”. Com isso, em somente  22% dos casos foi instaurado inquérito policial, e em apenas 3% deles foi proposta ação civil pública para enfrentar os problemas estruturais identificados.

 

No mesmo sentido, recente estudo publicado pela Conectas, que analisa a atuação das instituições que compõem o sistema de justiça criminal em audiências de custódia diante de casos de tortura contra custodiados, mostra que, dos 393 casos analisados, em apenas um deles o juiz determinou a abertura de Inquérito Policial para investigação do ocorrido.

 

Importante mencionar também os casos relatados de tortura e maus tratos no sistema socioeducativo, como no caso da Unidade Cedro da Fundação Casa, parte do Complexo Socioeducativo Raposo Tavares, na cidade e Estado de São Paulo, que está sob análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O caso trata de violações e agressões cometidas por agentes socioeducativos contra os adolescentes internados na unidade.

 

Por fim vale ressaltar, ainda, as inúmeras denúncias de tortura e de maus tratos, presentes no dossiê elaborado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, após diversas inspeções em Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos, demonstrando que um sistema de prevenção e enfrentamento a tortura é afeto a diversos espaços de privação de liberdade e não apenas o sistema prisional.

Os dados e observações acima trazidos reforçam como a prática da tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes  é pouco enfrentada no sistema prisional brasileiro, nas carceragens, no sistema socioeducativo, nas instituições manicomiais, entre outros locais de privação de liberdade, e como a resposta estatal é falha – quando existente.

 

  1. Sobre o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

 

É neste contexto que se insere a importância da implementação dos Mecanismos Estaduais de Prevenção à Tortura nos estados brasileiros.

 

Em 2013, o Estado brasileiro criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura através de lei federal nº 12.847/2013. Fruto de intensa mobilização da sociedade civil para a sua criação e construção, foi baseado na Constituição Federal brasileira, que garante em seu incisos III e XLIII do Art. 5º que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel ou degradante; bem como nos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil sobre o tema, em especial com a ratificação da Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto nº 40/1991) e seu Protocolo Facultativo (Decreto nº 6.085/2007).

 

O sistema também é fundado na aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH – 3, Objetivo estratégico III, o qual também determinava a consolidação de política nacional visando à erradicação da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

 

A escolha por um modelo de sistema de abrangência nacional para dar cumprimento às obrigações contidas no  Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura (daqui em diante, OPCAT) se deu em razão de diversos fatores: (i) a grande dimensão territorial do Estado brasileiro e o alto número de locais de privação de liberdade espalhados pelo país; (ii) a enorme população carcerária, estimada na época em mais de 620 mil presas e presos no sistema prisional (esse número não inclui aqueles privados de liberdade em outros espaços tais como unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, hospitais psiquiátricos, residências terapêuticas, abrigos, asilos e outras unidades de privação de liberdade); (iii) o entendimento de que um único mecanismo nacional centralizado para atender toda a realidade dos espaços de privação de liberdade no Brasil não seria suficiente.

 

Desta forma,  concluiu-se que para se alcançar uma política de prevenção à tortura eficaz, tal como preconizada pelo OPCAT, ensejaria a adoção de mecanismos estaduais voltados a atuar nas múltiplas regiões do país e descentralizando a prevenção da tortura para todo o território nacional.

 

Neste sentido, a Lei Federal 12.847/2013 prevê que cada ente federado crie seu próprio mecanismo de prevenção, com as mesmas atribuições previstas no OPCAT, para atuar no seu território, e que tais estruturas estaduais poderão integrar o Sistema Nacional de Prevenção à Tortura.

 

Com relação aos outros modelos do mundo, o sistema brasileiro possui certas particularidades. No Brasil o sistema se divide em duas estruturas: O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT),  órgão consultivo de composição mista entre governo federal e sociedade civil voltado para a elaboração de políticas públicas, programas e práticas para a erradicação da tortura no país, bem como para receber e encaminhar denúncias de violações ocorridas dentro dos espaços de privação de liberdade, e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), organismo composto por peritos concursados voltado para fiscalizar os locais de privação de liberdade – locais públicos ou privados, dos quais as pessoas não possam sair de modo independente de sua vontade, abrangendo locais de internação de longa permanência, centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, casas de custódia, instituições socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei e centros de detenção disciplinar em âmbito militar, dentre outros – elaborando relatórios de visita, criando recomendações para o enfrentamento da tortura nesses espaços e documentando violações observadas.

 

Importante salientar que uma das principais características do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) é sua função preventiva. Diante todas as dificuldades da apuração da tortura e maus tratos em ambientes de privação de liberdade, a presença dos peritos do mecanismo de MNPCT pode ter impacto inibidor na prática de violações ocultadas nas instituições privativas de liberdade. Além desse aspecto o MNPCT trabalhar com o sistema de recomendações às instituições visitadas, buscando o diálogo para o enfrentamento dos problemas detectados nas visita de inspeção.

 

Atualmente, dez estados já aprovaram leis para criação de seus Comitês e Mecanismos de prevenção à tortura (são eles Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe). Destes,  dois possuem um Mecanismo de fato em funcionamento (Rio de Janeiro e Pernambuco), e outros dois se encontram neste momento encerrando as etapas finais do processo de seleção dos peritos dos mecanismos estaduais e começarão a realizar visitas de monitoramento nos próximos meses (Rondônia e Maranhão).

O Subcomitê para a Prevenção da Tortura da ONU (daqui em diante, SPT) no relatório enviado ao Estado brasileiro após sua visita ao país em 2015, registrou sua preocupação neste sentido, lamentando “a falta de vontade política em criar mecanismos preventivos locais, que também está ligada à ausência de garantia de recursos financeiros adequados para os mecanismos preventivos.” Relembrando que as disposições do OPCAT devem ser cumpridas pelos entes federados, emitiu a seguinte recomendação ao Brasil:

 

“95. (…) o SPT chama a atenção do Estado Parte para o fato de que, de acordo com o artigo 29 do OPCAT, as disposições do Protocolo Facultativo deverão ser estendidas a todas as partes de Estados federais sem qualquer limitação ou exceção. Assim, o Subcomitê recomenda que as autoridades tomem todas as medidas adequadas para garantir o estabelecimento e funcionamento efetivo de mecanismos preventivos em todos os estados do país.” (grifo nosso)

 

  1. Considerações quanto à ausência de mecanismo estadual em São Paulo

 

Vale ressaltar o alarmante caso do Estado de São Paulo, que persiste na ausência de política pública voltada para a criação de um órgão na administração capaz de monitorar, prevenir e enfrentar a tortura em seus espaços de privação de liberdade, sendo que possui mais de 240 mil adultos presos em seu sistema prisional, aproximadamente 9.300 adolescentes internados em instituições privativas de liberdade, além de grande contingente de pacientes em instituições psiquiátricas e idosos em instituições com privação ou restrição à liberdade.

 

Desde 2013, diferentes iniciativas em diversas frentes foram empreendidas pela sociedade civil organizada para dialogar com o Executivo e Legislativo estadual de São Paulo sem que se tenha alcançado um resultado concreto.

 

Em 2016, a mobilização voltou a se intensificar através de um coletivo de entidades da sociedade civil e do poder público que retomou o diálogo com o Executivo estadual para pleitear a necessidade de um mecanismo de prevenção no estado. O coletivo se reuniu com autoridades públicas para pleitear que o estado integre o  Sistema Nacional de Prevenção à Tortura e abordar as preocupações quanto ao projeto de lei em tramitação, o qual não cumpre com os parâmetros do Protocolo Facultativo. Porém, São Paulo continua sem contar com legislação instituindo seu comitê e mecanismo de prevenção à tortura em consonância com o OPCAT.

 

Esta situação se torna ainda mais grave se considerarmos a crescente atuação de grupos militarizados nos presídios e unidades da Fundação Casa, que que atuam não só em situações de rebeliões e revoltas, como em revistas de rotina. Na prática, a atuação desses grupos é sempre seguida de inúmeros relatos de violações e exercida sem mecanismos de controle externo, ou mesmo legislação específica que delimitem essa atuação.

 

  1. Conclusão.

 

Considerando o acima exposto, as organizações solicitantes requerem que o Projeto de Lei em referência seja apresentado e, ao final, aprovado pela ilustre Assembléia Legislativa do estado de São Paulo, na sua integralidade.

 

São Paulo, 7 de junho de 2018

 

Assinam o presente documento:

 

  1. AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇÃO DA TORTURA – ACAT
  2. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA MULHER DA INFÂNCIA E DA
    JUVENTUDE
    ASBRAD
  3. ASSOCIAÇÃO PARA A PREVENÇÃO DA TORTURA – APT
  4. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS DE SAPOPEMBA
    – CDHS
  5. CONECTAS DIREITOS HUMANOS
  6. FRENTE ESTADUAL ANTIMANICOMIAL DE SÃO PAULO
  7. INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS – IBCCRIM
  8. INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA – IDDD
  9. INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA  – ITTC
  10. NÚCLEO ESPECIALIZADO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NCDH
  11. NÚCLEO ESPECIALIZADO DE SITUAÇÃO CARCERÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NESC
  12. NÚCLEO ESPECIALIZADO DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NEDIPED
  13. OUVIDORIA GERAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
  14. PASTORAL CARCERÁRIA DE SÃO PAULO

 

 

NESTA TERÇA-FEIRA vai acontecer o “Seminário PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA NA ATUALIDADE”

Data: 26/06/2018, das 8h30 às 21h
Local: Auditório Rui Barbosa – 2º andar da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco
Inscrições: https://goo.gl/ySAfKU

POSTS RELACIONADOS