Na fila para a tão esperada primeira dose da vacina, gera um sentimento de esperança e ansiedade. Algumas pessoas ao meu lado, comentam sobre as pessoas que compraram a vacina. Outras falam:
– É isso, aguardar sua vez, em ordem sem furar fila.
Uma outra ouve e fala assustada, já num tom mais agressivo:
– Mas alguém esta furando fila? Ahhh… sempre tem alguém que faz isso… neste país.
O fura fila em São Paulo é oficial, e organizado, chama-se “xepa”1. É uma lista prévia onde você pode deixar o seu nome. Se as doses de vacinas previstas para aquele dia sobrarem, eles te chamam pra receber a dose na xepa. Não é contravenção, nem ilegal, talvez seja sorte e um certo senso de oportunidade.
Esse país é incrível. O SUS é incrível. Um patrimônio que está garantindo vidas a despeito de todas as ações contrárias.
E pra nossa sorte, em São Paulo, liberar vacinas também virou um disputa pela presidência da República, fazendo com que o governador João Doria corresse em liberar a vacinação até agosto pra todas as pessoas até 18 anos. Enfim, chegou minha vez e, apesar de eu poder furar a fila oficialmente na xepa, já que moro a 20 passos do posto, não fiz isso.
Também houve a patrulha da comorbidade alheia. Diversas pessoas saíram correndo pra arrumar atestados de comorbidade e furar a fila. E houve outras, nas redes sociais, brigando e “denunciando” quem fez isso. A cultura do atestado falso diz muito sobre os médicos do Brasil. Mas atire a primeira pedra quem nunca utilizou um.
O ódio ao fura fila
Para o “código de ética do senso comum”, os praticantes do fura fila são como criminosos. No caso da covid, alguns pagaram com o ridículo de querer comprar doses antes de todos e serem enganados, enquanto outros ainda estão sendo cancelados e execrados nas redes, como as gêmeas ricas de Manaus, entre outros.
O fura fila é a antiga Lei de Gerson dos anos 80 e 90 que hoje não tem mais tanto lastro, porque pode ser denunciado nas redes sociais.
De qualquer forma estou eu lá, numa fila organizada e tranquila pensando se eu já poderia comemorar. Não podemos de fato. Não, depois da motociata do dia 12 junho, mesmo tendo sido borocoxô. Digo isso, por que logo depois assisto a uma cena que me chama atenção.
Atravesso a rua do posto apressada para pegar um comprovante de endereço, alguém da fila me disse que ia ser necessário. Pedi para uma moça atrás de mim ‘segurar meu lugar’ – outra prática daqueles que cultuam a ética da fila.
Do outro lado da rua, uma senhora e, provavelmente seu filho, falam alto pra todos que estão na fila da vacina ouvirem:
– Eu não tomo isso, nem pagando. Eu prefiro o DNA de um ET a tomar qualquer coisa que venha da China.
Eu penso como aquelas pessoas, daquele mundo da motociata não estão longe o suficiente do meu mundo. Pelo menos não o suficiente pra não perpetuar por mais tempo essa praga, e me contagiar.
Mas, por que raios estão pedindo um comprovante de endereço? Segundo a atendente, por que as pessoas fora do Estado e da cidade de São Paulo estão tomando a vacina. Nas palavras dela: “Esse novo prefeito pediu”.
Cheguei a fila às 13h30, péssima escolha de horário por sinal. A poucos passos de ser vacinada, a moça que guardou meu lugar solta um gritinho animado:
– Uhhh tá chegando. Nossa estou muito emocionada!
– Ninguém vai morrer! Grita ela um pouco mais exaltada.
Conversamos um pouco sobre médicos e medicina. Eu saio em defesa dos profissionais da saúde do SUS. E a moça diz:
– A classe médica é muito conservadora. Os médicos se acham Deus. Eu sofri violência obstétrica. Um sinal é o nível de violência que sofrem os calouros e as calouras nas faculdades de Medicina. Diz muito sobre como os médicos são. O tipo de respeito que tem por outro ser humano.
Ela fala alto, e o atendente da triagem da vacina nos olha meio de lado. Mas eu insisto em dizer que temos que apoiar os profissionais da saúde que ficam na linha de frente, principalmente no SUS.
Saí às 14h40 totalmente jacaré e feliz.
Maníacos por fila
Este posto de saúde fica no Centro de São Paulo, uma rua de duas mãos com carros estacionados dos dois lados. A Prefeitura de São Paulo, no primeiro momento da vacinação contra covid, em fevereiro de 2020, tentou instituir o drive thru como estratégia.
A estratégia adotada pela prefeitura da capital e o governo do Estado se mostrou insuficiente e mal planejada, mas extremamente alinhada à cultura do automóvel particular, e da fila.
Símbolo de poder, de status, o carro aparentemente está no imaginário da população paulista como um lugar mais seguro e prático pra se tomar vacina. Resultado: filas intermináveis lembrando as imagens de tempos menos pandêmicos em que o jornal regional mostra quilômetros e quilômetros de avenidas, com carros em fila, exibindo suas luzinhas vermelhas, na hora do rush.
Pense em um gestor que define as ações de isolamento social pelo rodízio dos carros. Pense num gestor que não é capaz de assumir o ônus de decretar um lockdown que vai salvar vidas e inventa um rodízio relâmpago, com um pseudo lockdown ‘pra pancadão’, das 22h às 5h da manhã. Esses gestores estão em São Paulo.
Drive thru é coisa de paulista. Coisa de paulista é fila de carro.
Voltando ao postinho no centro, A prefeitura organizou uma vacinação drive thru neste lugar impossível e impraticável até para parar um carro, quanto mais fazer um corredor de carros em fila.
A pergunta é: A prefeitura desviou o trânsito? Fez indicação da mudança de mão para aquela operação?
Não, era tudo puro improviso dos “gestores”. Resultado: filas, espera de 3 a 4 horas de pessoas com mais de 80 anos no sol e calor do carro. Assim como no Pacaembu e em outros lugares.
Antônio é um guardador de carros que trabalha em frente ao posto, e foi quem ficou no comando a operação. Na véspera do primeiro dia ele me avisou:
– Oi jornalista (ele me chama assim), amanhã tem drive thru aqui. Pode trazer a sua mãe.
– Puxa, vai ser uma confusão, aqui nessa rua? Tá, bom, então.
Guarda uma senha pra mim, eu pensei.
Saí correndo pra chamar minha tia de 80 pra fazer esse esquema. Mas resolvi me certificar, fui ao posto e vi as enfermeiras aplicando vacina no meio da rua, em meio a organização da fila de carros administrada por Antônio, o guardador.
No dia seguinte, o esquema já tinha ido pro brejo. Minha tia teve que levantar a bunda e caminhar até uma fila singela de duas pessoas, não gastamos mais do que 20 minutos em toda a operação. Enquanto eu aguardava no carro, num lugar que mal dava pra parar.
O segundo efeito que notei foi o rush no estacionamento próximo ao posto. O dono havia dispensado um dos funcionários em função da pandemia, e teve que passar a manobrar ele mesmo os carros, tamanha a quantidade de gente vindo ao posto de carro se vacinar.
É porque os “ricos” (pessoas que tem carros) descobriram o SUS. Sim, a vacinação levou uma parcela considerável da população a entrar pela primeira vez num posto de saúde e descobrir que tem banco pra sentar. Não são bancos novos e confortáveis, nem são como estofados de carro, mas se você se comportar na fila sairá imunizado e feliz.
1 - Xepa é um termo mais usado definir o fim da feira livre. Horário em que se pode comprar alimentos mais baratos.
Uma resposta
Os poderes apodrecidos do país continuam colecionando motivos para defenestrar esse impreparado Presidente e seus colaboradores