Começo essa escrita expressando minha solidariedade e carinho a Dani Calabresa exaltando sua coragem em denunciar o moribundo ex-humorista Marcius Melhem por assédio moral e sexual na Rede Globo. Manifestando também o desejo de que não precisemos mais ressaltar e admirar a coragem de uma mulher quando ela viveu o inferno, teve sua vida despedaçada e por uma questão de sobrevivência de seu corpo fragmentado e sua alma roubada tem que gritar suas feridas. Sim, estupradores são ladrões de corpos e não se diferenciam de abusadores(as), ladrões de almas. Que nós mulheres possamos viver em um mundo onde não precisemos mais ser injustamente corajosas assim!
Por Luciana Sérvulo da Cunha*
Passar por uma relação abusiva com pessoas famosas, admiradas, adoradas e seguidas por milhões de pessoas é o pior dos infernos, pois além do fato de involuntariamente termos que trombar constantemente com essa pessoa e sua “arte” na grande mídia e nas redes sociais, engolimos a seco e revivenciamos a dor a cada vídeo, show, espetáculo e comentários nos grupos de WhatsApp, geralmente seguidos de infinitos coraçãozinhos iludidos acompanhados de um surreal “perfeita(o)”, nos trazendo uma sensação de impotência corrosiva e massacrante, sentindo na pele o que significa ter que lidar com a opressão do status e o “poder” da imagem em uma sociedade narcísica em que eles são eleitos Reis. Falo do lugar de quem viveu uma relação de abuso emocional com essas características e até conseguir entender e principalmente assumir e nomear que o que tinha acontecido comigo tem nome e ele é “violência psicológica”, levou muitos tempos. Outro tempo tão longo, tem sido a profunda busca pela cura.
A violência emocional é a violência mais comum praticada contra as mulheres e uma das mais difíceis de ser reconhecida e combatida. Seja pela cultura machista e patriarcal em que somos criadas e estamos inseridas, seja pela falta de pesquisa, informação e ferramentas de combate a esta violência tão naturalizada e enraizada no cotidiano das brasileiras ou pelas suas características específicas: o abuso emocional não deixa marcas físicas. Ele é uma violência silenciosa por ser velada e insidiosa.
A violência psicológica está centrada na questão do poder e domínio sobre o outro e pode ser executada por pessoas com perversão narcísica ou algum tipo de transtorno de personalidade. A vítima a sofre de maneira silenciosa porque se trata de uma violência não assumida e negada pelo(a) agressor(a), que sutilmente inverte a relação acusando o outro de ser o culpado pela situação. Desta forma, a vítima se sente confusa e acaba por sentir-se culpada, o que, por sua vez, inocenta o(a) agressor(a). Não se trata de uma violência física, e esta não é pontual: estende-se ao longo do tempo. Como essa não é uma perversão explícita, ao contrário, ela se mistura no dia a dia, nos pequenos atos, nas pequenas relações, passa despercebida. Assim, o(a) agressor(a) vai deturpando de maneira sutil e pejorativa a visão que a vítima tem de si, retirando sua vitalidade e vivacidade, diminuindo, humilhando, fazendo ruir sua auto-estima e sua paz interior, induzindo-a a um estado de confusão, vulnerabilidade e consequentemente, de dependência emocional, levando um longo tempo para a vítima perceber, e sobretudo para reconhecer, estupefata, que está presa numa teia.
O abuso emocional geralmente está presente em todas as outras formas de abuso e pode ser uma porta para outros tipos de violências, como a violência sexual. Ele pode começar de forma sutil, com desencorajamentos à realização de projetos próprios, por um constante apontar de erros, falhas e defeitos da vítima bem como a subestimação de sua capacidade, até chegar à xingamentos, gritos, cobranças excessivas, falsas acusações, perseguição, desautorização das decisões pessoais (roupas, escolhas, amizades, horários, estudos/trabalho), chantagens, ameaças, depreciações, ciúmes frequentes, ironias e exposição da figura. Alguns exemplos aqui dados podem parecer óbvios, mas ressalto que quando o abusador(a) lança mão deles em uma relação, seja ela amorosa ou uma relação de amizade, a presa já está enredada em sua teia e não consegue ter clareza suficiente para assim perceber. Algumas relações onde já existe um nível de entrega e confiança da parte da vítima, o abusador (a) não precisa se utilizar de uma violência mais brutal e explícita mantendo um comportamento sedutor, encantador com medidos tons de manipulação e dubiedade, uma vez que o amor da vítima já é o suficiente para ser seu suprimento narcísico por bastante tempo.
Pondero aqui que pessoas narcísicas perversas podem estar presentes em nossas vidas em um número muito maior do que possamos imaginar e elas geralmente tem por características imediatas a inteligência, a sedução, a amabilidade, a diplomacia, a boa retórica e o bom humor. Não existe abusador ou abusadora que não seja atraente e encantador(a). E no fundo, quando convivemos na intimidade com eles(as), o que percebemos é uma insegurança gritante, uma inveja incontrolável, uma solidão colossal, uma falta de empatia abismal, grande imaturidade emocional e incapacidade total de olhar pra dentro e lidar com seus próprios sentimentos e emoções. O narcisista perverso é incapaz de admitir seus erros, sempre se colocará como vítima e projetará nos outros seus monstros internos e todos os fracassos de sua vida, autojustificando as punições e crueldades cometidas ao longo de muitas relações abusivas, deixando vidas literalmente como terras arrasadas.
Além da violência sofrida, muito está oculto no silêncio doído das vítimas e na omissão dos(as) agressores(as). Um país que ignora os altos índices de violência contra a mulher, pouco estuda cientificamente os perfis e as relações entre vítimas e agressores(as), acaba alimentando o silêncio cortante que beneficia agressores(as), levando as vítimas à depressão, em alguns casos ao suicídio ou à morte por doença degenerativa grave, mantendo assim intacto o ciclo de abusos. O pouco que se estuda no Brasil, limita-se em geral ao assédio moral no trabalho, mas que, devido ao preconceito, à misoginia e ao racismo estrutural que permeiam a nossa sociedade e a elite brasileira, faz com que os resultados desse combate sejam cada vez mais favoráveis aos agressores(as), principalmente quando uma boa parte deles podem ser pessoas dotadas de algum poderio (capital político, financeiro, religioso ou artístico) e as vítimas, além do dano psicológico sofrido, ainda devem lidar com a pressão da opinião popular, ou as ameaças e retaliações dos(as) agressores(as), seus cúmplices, fiéis seguidores e toda sua rede de poder a lhe garantir imunidade e proteção.
Por isso que hoje, por mais torto ou doído que pareça, é um dia para ser lembrado. Por maior “poder” que uma empresa ou imagem possa ter nessa nossa doente sociedade narcísica do espetáculo, quando vazia, ou melhor, quando construída com energias sugadas e almas roubadas, ela vai, ahhh se vai, um dia, ruir e murchar!
*Luciana Sérvulo da Cunha é documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora especial da Presidência da República e Diretora de Patrocínios da SECOM no governo Lula. Participou como executiva do projeto WE de Empoderamneto de Mulheres na Índia em parceria com a ONU. Foi assessora da EBC/ TV Brasil e Diretora da TV INES, primeira web TV para surdos do Brasil.
9 respostas
Sim. Já sofri assédio moral e sexual. E concordo com Luciana: “o abuso emocional não deixa marcas físicas. Ele é uma violência silenciosa por ser velada e insidiosa”. É torturante.
Parabéns pelo texto. Lúcido e verdadeiro!!!! Abs
Luta das mulheres é para todas as mulheres!
Sim mas de q é q vc ta falando afinal??? Com tanto textao assim?
Precisamos estar juntos para nos apoiar e resistir ??
Parabéns, Luciana, pela lucidez do seu texto. Essa luta precisa ser feita com inteligência e coragem. Você o fez e certamente ajudará muitas mulheres a se libertarem da teia maligna do assédio. Gratidão!
Esses casos de grande repercussão devem ser punidos exemplarmente. A sociedade precisa ser sinalizada que isso é violência. Infelizmente por esses dias a rede globo está reprisando “laços de família”, onde o personagem do ator José Mayer comente uma série de violências contra a personagem de Helena Ranaldi e isso é passado paro público como virilidade. Um absurdo.
Eu penso que s rede Globo é (ou foi) conivente com essas práticas. Não tem código de conduta não?
Cadeia pra esses vagabundos.
Luciana, parabéns pela reportagem e excelente texto. Explicação perfeita. Posso imaginar e entender o sofrimento dessas mulheres. O assédio é uma triste realidade, a prova da natureza humana de se querer controlar o outro pelo poder. Acontece massivamente com as mulheres porque somos uma sociedade machista intensa, mas o assédio é questão de comportamento humano que independe de gênero e idade.
As assediadas de cada dia e o poder do machismo estrutural
Lucia Capanema Alvares
Dani Calabresa sofreu, por um bom (ou mau, na verdade) tempo o assédio cotidiano de seu chefe. Denunciou, corajosamente, o assédio, juntando-se a um movimento de resistência de difícil construção e aceitação. Homens e mulheres pertencentes ao século XIX, dirão: “Ah… certamente deu confiança… Ah, deve ter se oferecido pra subir na Globo…”. Homens e mulheres do século XX ainda dirão: “Mas isso não é machismo… é só uma cantada” ou “mulher até gosta, se sente lisonjeada”.
Está aí esboçado o conceito de micropolítica pensado pelos filósofos Michel Foucault e Michel De Certau. A prática social construída cotidianamente pelo poder incidiu sobre a vida de Dani, sua realidade, seu corpo biológico, seus sentimentos. Mas a mesma prática que destrói sua vida permite que ela perturbe a ordem estabelecida. E nos chama a todos a combater esta ordem. É esse o papel heroico, sofrido e esperançoso, de mulheres e homens que vivenciam cotidianamente a violência do machismo estrutural.
Assim como o racismo estrutural, tão bem criticado pelo Prof. Silvio de Almeida, tão bem demonstrado pelo pensador Jessé Souza, nossa sociedade vive a micropolítica do machismo estrutural. A técnica histórica de domesticar corpos e mentes para que se sujeitem ao domínio da força perpassa ambos tipos de assédio. O racismo escraviza, mata (muito), marginaliza. O machismo mata (também), oprime, deprime. Chibatadas e estupros domesticam. Não tenho o lugar de fala, mas é sempre preciso e bom lembrar a “dororidade” de Vilma Piedade que une as “Marias, Mahins, Marielles, malês” cantadas no samba. Ninguém sofreu (e/ou sofre) mais a estrutura criada no Brasil que as mulheres pretas.
Crimes graves como o de Beto Freitas ou o da criança engravidada pelo tio nos unem em humanidade por algum tempo, mas são (re)construídos a cada dia nas nossas práticas de violência e silêncio. Trago para nossa reflexão um exemplo cotidiano, quase banal, não estivesse docilizando a tantos corpos e mentes por sua característica estrutural.
A partir do reconhecimento da pandemia, muitos grupos de ajuda mútua e de socialização se formaram nas redes sociais. Aqui no Rio formamos o nosso, ligado ao Carnaval que acabara de acontecer. Gente alegre, foliã, meia idade da zona sul, posicionada à esquerda no espectro político. Seguiram-se logicamente inúmeras discussões politizadas, críticas aos costumes, picardias futebolísticas, até a grande ideia do bar virtual, sempre às sextas, que tornou-se um hábito e uma válvula de escape.
Neste ano em que pelo menos 700 brasileiras já foram vítimas de feminicídio e em que alcançamos a infeliz marca de um estupro a cada oito minutos, vivi na última sexta, antecipando o que sofreria minha amiga M um pouco dessa micropolítica doente. Ao abordar no “N Bar Virtual” uma questão política polêmica, P, um dos ‘presentes’, manda: “Você é apaixonada pelo (político)”; “está com raivinha (sic) de mim”; e emenda: “minha filha”, “meu amor” por entre longas vociferações em altíssimo tom. Quando consegui ser escutada, pontuei as quatro desqualificações da minha pessoa como interlocutora e saí da sessão. Mais tarde, quando a amiga M já estava ‘presente’, o mesmo P provoca uma discussão sobre os acontecimentos anteriores e é por ela apartado: “Não seria justo ou elegante discutir este assunto quando uma das pessoas não está aqui para se defender”. Ao que P respondeu aos berros chamando-a de “metida, convencida”, e exortou: “cala a boca, mulher”. Infelizmente, em ambas ocasiões seguiu-se o “silêncio cortante” a que se referiu Luciana Sérvulo (https://jornalistaslivres.org/a-violencia-contra-dani-calabresa-e-a-cruel-conivencia-da-globo/).
No dia seguinte, quando todos (ou quase) esperavam uma retratação verdadeira de P, se dá o contrário: ele posta nas redes uma lastimável mensagem, em que, ao modo “estuprei, mas ela mereceu”, busca culpabilizar a primeira vítima de seus ataques, como “arrogante” e fazendo “provocações”. Nada menciona sobre os também injustificáveis ataques a M. Discussões subsequentes no grupo diziam que P havia sido imparcial nos argumentos, suas construções seriam retóricas sem recorte de gênero. Rebaixar o interlocutor com o tratamento “meu filho/minha filha” e “meu querido/meu amor” seriam ataques comuns nos debates políticos desprovidos da característica de gênero. Trocando em miúdos, P não era machista…
Propus uma sessão extra do “N Bar Virtual” tendo como tema o machismo estrutural. Muit@s compareceram, permitindo às mulheres ‘presentes’ sua apresentação, sua colocação diante do Outro. São mulheres bem posicionadas profissionalmente, expondo sua colonização: “É muito duro e transforma a gente de uma maneira negativa”, disse a querida J sobre o machismo no meio artístico. Sobre o trabalho social, A mencionou: “nunca imaginei que pudesse ser assim”. R, professora, explica que quem define o racismo, o machismo ou a homofobia é quem sofre a violência e não seus perpetradores. Os homens presentes parecem ouvir e refletir. Nos dias que se seguem os mais duros resistem, se fecham na confraria, defendem-se insultando, lançam a pauta da misandria – o ódio aos homens, revivendo mais uma vez este sentimento torpe; outros se mostram capazes de aprender, de pensar em alteridade. E a gente vê uma luz no fim do túnel, ainda que tênue.
O exemplo serve apenas para corroborar nossa crença Freireana na transformação do opressor a partir da ação do oprimido: com a análise micropolítica queremos demonstrar que há uma orquestração, uma intencionalidade, um objetivo atrás ou abaixo de qualquer discriminação ou apagamento do Outro e que tais ações podem ser subvertidas também por meio da cotidianidade. Afinal, o cotidiano é parteiro e filho de toda descriminação que conhecemos.
Precisamos atentar para a banalização deste mal e nos perguntarmos todos os dias como este mundo de horrores em que vivemos é construído na cotidianidade, como e quando estamos nos calando e permitindo que este sistema arcaico resista aos gritos por igualdade de poder e desejos do século XXI. Saravá!