A invasão da Ucrânia pelas tropas russas tem repercutido diretamente na região dos Bálcãs, que já viveu algo semelhante em 1999, quando a OTAN justificou empreender uma intervenção humanitária na Iugoslávia. Foram 78 dias de guerra com intenso bombardeio aéreo e, ainda que não tenha tido combatentes terrestres, a intervenção foi marcada pelo alto número de mortes de civis, pelo intenso fluxo de refugiados e pela destruição da infraestrutura da região. Muitos são os paralelos traçados entre a intervenção da OTAN na Iugoslávia e a invasão das tropas russas na Ucrânia. Não por acaso, nos últimos dias, as redes sociais ficaram marcadas por comparações entre os dois casos, especialmente no que tange à disputa entre grandes potências.
Por Victória Perino Rosa*, do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI)**, coordenado pelo professor Reginaldo Nasser
Para além dos debates nas redes sociais, desde o início da invasão da Ucrânia, autoridades dos governos da região e aliados têm se movimentado (para pressionar a favor/conter) a entrada imediata do Kosovo na OTAN, que desde 1999 encontra-se sob ocupação de forças internacionais e tem o status internacional de independência disputado (1). Isto porque, tem sido difundido o temor de que a ação da Rússia na Ucrânia possa representar uma possibilidade de desestabilização, também, nos Bálcãs.
Em carta enviada ao presidente Joe Biden e ao secretário de Estado Antony Blinken na última sexta-feira (04/03), por exemplo, o congressista democrata Ritchie Torres fez um apelo à inclusão do Kosovo como estado-membro da OTAN. Na carta enviada ao presidente Biden, Ritchie afirma que “a pequena nação dos Bálcãs é uma aliada próxima e leal dos EUA e deve aderir à aliança como forma de combater a influência russa na região”.
Na última semana, o parlamento do Kosovo também aprovou uma resolução para iniciar o processo de negociação para entrada do país na OTAN: “O parlamento do Kosovo pede ao governo que tome todas as medidas necessárias, em coordenação com os parceiros internacionais, para apresentar o pedido de adesão à OTAN, União Europeia, Conselho da Europa e outras organizações internacionais”, diz a resolução.
Em resposta às recentes mobilizações para acelerar o ingresso do Kosovo na aliança militar, o ministro do Interior da Sérvia, Aleksandar Vulin, declarou que a iniciativa representaria tanto a anulação da Resolução 1244 da ONU, quanto do acordo de Kumanovo, ambos em vigor desde o encerramento da Guerra do Kosovo em 1999 e que, dentre outros elementos, descrevem os papéis e o mandato para presença das missões da ONU (UNMIK) e da OTAN (KFOR) no Kosovo. Em sua declaração, Vulin ainda acrescentou: “Alguém suspeita que o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, ‘hesitaria’ em atacar os sérvios, especialmente no norte da província e provocar conflitos e provocações até que o estado da Sérvia seja forçado a defender seu povo?”.
Cabe destacar que, desde a Guerra do Kosovo em 1999, marcada pelo enfrentamento entre as tropas sérvias/iugoslavas e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), a OTAN e as potências ocidentais assumiram um papel de destaque nos Bálcãs. Isso porque, além de a aliança militar ter liderado o bombardeio contra a Iugoslávia, a Organização garantiu uma forte presença de suas forças na região posteriormente.
OTAN e o pretexto dos “direitos humanos” nos Bálcãs
À época da guerra, a ação da OTAN foi amplamente aceita internacionalmente, já que estava amparada na percepção de que era necessário garantir os direitos humanos dos albaneses no Kosovo. A memória do genocídio na Bósnia (1992-1995) ainda estava em mente e, dentre outros fatores, a percepção era de que as potências não poderiam permitir um novo massacre na região.
Não se pode negar o processo de intensa violência perpetrada por forças de segurança sérvias/iugoslavas contra albaneses no Kosovo durante o governo de Milosevic na Iugoslávia. De fato, na década de 1990 estava em curso uma política de limpeza étnica no Kosovo. Por outro lado, é preciso chamar atenção para o fato de que, utilizando-se da prerrogativa dos “direitos humanos” a OTAN, às margens do direito internacional, lançou mão de bombardeios sobre uma população, a pretexto de salvar outra.
Não só muitos civis foram mortos, como toda a infraestrutura na região, especialmente na Sérvia, foi atingida e destruída. Aquela que foi considerada “uma guerra para o bem do mundo”, sob liderança dos Estados Unidos, representou uma ação bem sucedida do imperialismo sob a cortina da intervenção humanitária. O caso da OTAN no Kosovo nos ajuda a lembrar que, antes de traçarmos paralelos baseados no direito internacional, ao analisarmos as ações das grandes potências, é preciso investigarmos as motivações no campo da política internacional. No caso do Kosovo, a memória da guerra e da intervenção das grandes potências ainda repercutem os efeitos.
(1) Em 2008, o parlamento do Kosovo auto-declarou a independência da Sérvia. Hoje, o país é reconhecido por mais de 100 países-membros da ONU. Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, por exemplo, reconhecem a independência. Sérvia, Rússia e Brasil ainda não reconhecem a independência kosovar
*Victória Perino Rosa é mestranda em Relações Internacionais no PPG San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). É pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI)
**Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI)
Coord – Reginaldo Nasser – Prof Livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC(SP), Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e Puc-SP), coord do GECI ( Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais) e pesquisador do INEU ( Instituto de Ciência e Tec. para Estudos sobre os EUA.)
Vice – coord – Bruno Huberman – prof Relações Internacionais da PUC(SP) e pesquisador do INEU ( Instituto de Ciência e Tec. para Estudos sobre os EUA.)
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