500 dias de isolamento: meus 5 pedaços de entretenimento da quarentena, por Caio Coletti

500 dias de quarentena
Da esquerda para a direita: TAEMIN, The Walking Dead: The Telltale Series, Oscar Wilde, Star Wars: The Clone Wars e Fringe

Estamos completando 500 dias de quarentena.

Neste dia 24 de julho, a primeira medida de distanciamento social motivada pela pandemia da covid-19 no Brasil (implementada no Distrito Federal, em 11 de março de 2020) faz aniversário de 500 dias. Foi um período marcado, literalmente, por centenas de milhares de tragédias – o luto pelas vidas que perdemos e, por baixo dele, o luto pela vida (no singular, a nossa) que deixamos de viver.

Na reclusão, e em meio às mil preocupações, o entretenimento se tornou mais fundamental do que nunca. Como escape, como espelho, como ferramenta de construir e destruir barreiras, como forma de seguir tendo contato com a humanidade. Ver, ler, ouvir ou jogar o que outras pessoas fizeram é absorver um pouco de quem elas são e integrar esse pedacinho a nós, afinal.

Por isso, o Jornalistas Livres reuniu nos últimos 50 dias um time de cinco colaboradores que nos contou quais pedaços de entretenimento os ajudaram a encarar esse período de alguma forma, da mais simples à mais profunda. As listas foram ecléticas e atravessaram mídias: séries de TV antigas (E.R., Os Normais), produções de artes plásticas (Aqui é Tudo Manguezal, O Escolar), livros (de Ruby Dixon, Agatha Christie e Fernando Sabino), videogames (Fallout: New Vegas) e álbuns musicais (Ariana Grande, Gal Costa, Rina Sawayama).

Hoje, fecho esse projeto – ao menos, por enquanto – com as minhas cinco escolhas, com muita gratidão aos amigos talentosíssimos que toparam participar (foi um prazer lê-los e publicá-los), e com a esperança de ter ajudado alguém a se manter distraído, ou – paradoxalmente – alerta, através da arte, em tempos tão sombrios. Força!

Veja os outros posts dessa série aqui, aqui, aqui e aqui.

K-pop

No dia 23 de fevereiro, o BTS fez história como o primeiro artista sul-coreano a participar do MTV Unplugged (em bom português, o Acústico MTV). A versão “desplugada” de “Dynamite”, que passou pela minha timeline no dia seguinte da exibição do programa, foi o meu primeiro contato a sério com o grupo, e se provaria – junto à primeira audição do álbum Be, que eu fiz naquele mesmo dia – a porta de entrada para o meu primeiro contato profundo com o k-pop. Difícil pensar em uma decisão mais acertada que eu tenha tomado nesta época de pandemia.

O que primeiro me convenceu a incluir o k-pop no meu repertório cultural foi o uso abundante e desavergonhado de ganchos melódicos na música que é feita na indústria mainstream coreana. O “oh-ooh-life-goes-on” do BTS foi a porta de entrada, mas o you’re-the-one-that-I-want-eh-eh-ehh do NU’EST e o “pum-pum-pururum-pum-pum” do Cherry Bullett me esperavam nessa jornada. A verdade, no entanto, é que esta é só uma das maravilhas da música pop que o Ocidente (largamente) esqueceu, e a Coreia do Sul não.

Os vídeos super produzidos, que adicionam camadas de significado às canções; o procedimento clássico de reciclar tendências antigas para dizer coisas novas (você vai achar de Bee Gees a Phil Collins, passando por Motown e Diana Ross, no k-pop); o “elemento de crime” que Lady Gaga um dia mencionou… O k-pop me deu um motivo para amar música pop de novo, para pensar em música pop de novo, para escrever sobre música pop de novo. Essa paixão recuperada tem sido combustível indispensável para uma época em que tão pouca coisa empolga, alegra, motiva.

Sem contar que, em pleno 2021, quem em sã consciência se limita a ouvir música em só uma língua (ou duas, ou três…), de só um país (ou dois, ou três…)? Colonizar o próprio gosto musical, quando uma riqueza gigante de arte está a um clique de distância, me parece de uma estupidez gigante – felizmente, uma estupidez eu não cometo mais.

The Walking Dead: The Telltale Series (2012-2018)

Jogue no Steam.

Que tipo de pessoa se apega a uma narrativa apocalíptica… no meio de uma situação tão análoga, por vezes assustadoramente análoga, a um apocalipse? Aparentemente, eu. Eu sou esse tipo de pessoa.

Depois de mais de uma década evitando me envolver com a franquia The Walking Dead, eu não consegui resistir a entrar nela por uma porta “lateral”: os quatro jogos temáticos da saga lançados pela Telltale/Skybound entre 2012 e 2018. A perspectiva de me enfiar, em primeira pessoa, no meio do apocalipse zumbi, me pareceu tentadora demais quando voltei a me envolver em videogames, no começo de 2020, após anos e anos afastado dessa mídia.

O que eu não esperava era que, ao invés de encontrar um horror de sobrevivência alucinante, eu fosse achar, nos jogos de The Walking Dead, um drama de moralidade tão pungente. Se apoiando muito mais em narrativa do que em cenas de ação, e deixando que o jogador agonize sobre as decisões certas a tomar em cada pequeno diálogo, a Telltale construiu uma história fascinante sobre os dilemas e responsabilidades das relações interpessoais, especialmente aquelas que envolvem um indivíduo se colocando, intencionalmente ou não, como mentor ou figura paterna/materna do outro.

Os roteiristas do jogo acertam, particularmente, em estabelecer que, com a presunção de proteção natural de uma relação deste tipo, vem também uma presunção (implícita) de violência. E quando é que essa violência é moral, em nome do quê, e contra quem? É extraordinário que o jogo te deixe responder, e depois te apresente as consequências das suas respostas.

Oscar Wilde – O Retrato de Dorian Gray (1890)

Leia na Amazon.

É o que sempre acontece com as pessoas dotadas de temperamentos sutis e emotivos. Suas fortes paixões ou os aniquilam, ou são subjugadas. Ou matam, ou morrem.”

Acredito que O Retrato de Dorian Gray seria importante para mim em qualquer época que eu decidisse lê-lo, mas agradeço por ter esperado os meus 26 anos, no meio da quarentena, para finalmente tirá-lo da estante. Acho que a grande obra de Oscar Wilde, de alguma forma, foi um livro que se enredou pela minha mente de uma maneira que só foi possível por causa do autoconhecimento e da aceitação que marcam (ao menos, para mim) essa fase da pós-pós-adolescência, do início real da vida adulta.

Há algo na crueldade da prosa de Dorian Gray, nas provocações e insinuações que ela faz, nas sensações que ela busca levantar, que exige não exatamente uma mente mais madura ou “evoluída” (o que quer que isso signifique), mas sem dúvida uma mente mais estável, para suportá-la, absorvê-la, até se divertir com ela. Dorian Gray me divertiu imensamente – no pouco mais de um mês que eu levei para ler o livro completo, mergulhar em suas páginas durante o intervalo de almoço do trabalho era sempre um prazer inesperado, um respiro bem-vindo de sarcasmo, um gole revigorante de alguma bebida amarga, mas deliciosa.

Em uma época em que se virar para dentro, analisar a si mesmo, é tão inevitável quanto pode ser desagradável, Dorian Gray abriu meus olhos para toda uma parte diferente (ou, ao menos, pouco explorada) de mim… enquanto colocava um sorriso perverso no meu rosto.

Star Wars: The Clone Wars (2008-2020)

Veja no Disney+.

Star Wars sempre foi, para mim, uma franquia da qual gostava a alguma distância. Eu via todos os filmes, e gostava muito de alguns (O Império Contra-Ataca e Os Últimos Jedi, especificamente), mas não nutria uma paixão por este universo como tantas pessoas ligadas à cultura pop nutrem. E daí, com a chegada do Disney+ ao Brasil, The Clone Wars se apresentou como uma proposição quase irresistível para um completista como eu – e foi nela que entendi, finalmente, de onde vinha a paixão que essa saga inspirava.

A produção animada começa como uma coleção de arcos e missões soltas, uma crônica de um momento de conflito na galáxia de Star Wars, mas desde a primeira temporada há nela elementos que insinuam que esta será uma expansão irreversível para o universo da franquia. Destemido, o showrunner Dave Filoni rejeita quase totalmente a estrutura tradicional da TV, o foco em personagem e em uma linha firme de narrativa, ainda que desenvolvida em múltiplas frentes ao mesmo tempo.

The Clone Wars, ao invés disso, é um abraço empolgado das possibilidades da ficção científica, uma reflexão cautelosa (até por pressão corporativa, imagino) sobre militarismo e as falhas das instituições burocráticas, uma história de amadurecimento entrecortada por conceitos morais caros à franquia Star Wars, um espetáculo visual que nunca se cansa de criar formas novas de explorar mesmo os planetas que já conhecemos – basta ver a estonteante perseguição pelos céus de Coruscant em “Lightsaber Lost” (2×11).

Eu sempre amei ficção científica. Sempre amei me perder nas especulações e evocações que o impossível ou o improvável podem trazer para o hoje, o agora. Logo, foi um prazer descobrir finalmente, nesta saga que já é uma velha conhecida, uma paixão semelhante, que reacendeu a minha.

Smash (2012-2013) e Fringe (2008-2013)

Veja Fringe no Globoplay.

Talvez Megan Hilty cantando “They Just Keep Moving the Line” ainda seja a minha cena de televisão favorita de todos os tempos. Essa foi a minha conclusão ao rever as duas temporadas de Smash, uma série que nunca sofreu por falta de falhas dramáticas graves, mas que ainda assim era capaz de me arrebatar, de quando em quando, pelo talento dos envolvidos nela – especificamente, Hilty e os compositores Marc Shaiman e Scott Wittman.

Ela foi a primeira de duas séries “antigas” que eu vi ou revi durante a quarentena, seguida diretamente por Fringe. A produção estrelada por Anna Torv era um caso diferente, no entanto, já que eu a havia abandonado na segunda temporada (de cinco, ao todo) na época em que foi originalmente transmitida, e este resgate era mais uma tentativa de “amarrar uma ponta” do passado do que qualquer outra coisa.

No fim das contas, revisitar Fringe com olhos maduros foi encontrar: um dos pedaços de cultura pop mais corajosamente estranhos da sua época; uma performance íntegra e muito mais excepcional do que eu me lembrava de Torv; arcos dramáticos desenhados com cuidado, que discursam eloquentemente sobre responsabilidade pessoal, emocional e social. Assistindo-a (e Smash também, por todas as suas falhas e triunfos), me lembrei do prazer único que costumo encontrar no ato de buscar e compreender a história das mídias que faço tão centrais em minha vida.

Tudo o que veio antes, bom ou ruim, informa, de maneiras inesperadas, o que existe agora. É verdade sobre a arte (qualquer arte), sobre o mundo, e sobre nós. Inclusive, sobre nós em relação ao mundo, e sobre nós em relação a arte. Uma conexão saborosa em um tempo tão desconexo.

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