“Os vizinho murmurava. Ela é sozinha. Deve ser alguma vagabunda. É crença generalizada que as pretas do Brasil são vagabundas. Mas eu nunca impressionei-me com o que pensam ao meu respeito. Quando os engraçadinhos quiseram dizer-me graçolas, eu disse: -Eu sou poetisa. Peço respeitar-me mais um pouco. Carolina Maria de Jesus Onde estaes Felicidade?
Conhecida como a “vedete da favela”, Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, local do qual saiu com pressa e muito desgosto, mas sem nenhum remorso, após ter sido presa injustamente e espancada, por duas vezes.
“Uma negrinha muito inteligente”, como Dona Vera costuma se referir a ela, não era bem vista nem quista numa cidade com tradições escravocratas tão arraigadas.
Infelizmente, a São Paulo para onde Carolina veio tocar a vida não era menos racista, nem mais acolhedora, embora, como metrópole ainda em franca expansão, na década de 1950, ela estava, de fato, em um ambiente mais propício à divulgação de sua arte. Aqui a escritora precisou lidar com os desafios de criar seus filhos sozinha, morando em um barraco construído com suas próprias mãos e tendo que trabalhar como catadora de recicláveis.
Ainda assim, seu primeiro livro, “Quarto de despejo – diário de uma favelada” – foi um grande sucesso, traduzido para mais de 14 idiomas diferentes, tornando ela a primeira autora de best seller brasileiro.
Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977, no bairro de Parelheiros, Zona Sul da cidade de São Paulo, no sítio onde decidiu morar após sair do seu “quarto de despejo” (a extinta Favela do Canindé, às margens do Rio Tietê) e da sua “Casa de Alvenaria”, comprada com dinheiro que recebeu pela primeira obra.
Para sua tristeza, como muitas artistas negras, apesar da sua incessante produção literária, ela caiu no ostracismo ainda em vida, tendo voltado inclusive a trabalhar como catadora.
O que vocês diriam a ela?
O que você diria à Carolina na data de hoje, se ela estivesse entre nós?
Fiz essa pergunta à sua filha, a professora Vera Eunice de Jesus, por ocasião do 110o aniversário de nascimento da mãe.
“Eu diria que ela está sendo muito reverenciada, e que as mulheres, principalmente as mães solo, se espelham na história dela. Que as mulheres negras estão empoderadas, porque estudam, escrevem e criam seus filhos tal qual ela fez.”
E Dona Vera me respondeu assim de pronto, gritando em letras maiúsculas porque, sim, é emocionante pensar que a luta e o sonho dessa que é uma das raras escritoras negras brasileiras que sobreviveram ao tempo – leia-se apagamento – estão se realizando.
Eu, da minha parte, diria a Carolina mil vezes obrigada, pela grande mulher que foi, pela grande escritora que é, por abrir os caminhos para que nós, as novas Carolinas (mulheres negras, periféricas, faveladas, mães solos e artistas) não precisássemos inventar roda nenhuma, só mantê-la girando.
Carolina, meu amor, continua sendo difícil existir por aqui, mas resistimos por nós, por você, por nossas filhas e pelo sonho de um país sem racismo, mais justo.
Se eu conseguisse segurar a emoção e falar com essa entidade que essa mulher se tornou, eu diria algo assim. E vocês? Diriam o quê?
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha
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