O estupro muito além do sensacionalismo

Um estupro coletivo vira manchetes. Às vezes por empatia, às vezes como forma de denúncia e muitas vezes por puro sensacionalismo.

Aprendemos que um estupro coletivo gera uma comoção imediata, passageira e pontual nesses últimos dias. Imediata pois o assunto viraliza em vários meios e somos conduzidos a pensar sobre; passageira e pontual pois boa parte dos indivíduos acredita que não faz parte de sua realidade então tende a ver como um fato isolado que só acontece com determinado grupo de pessoas e em determinadas situações.

Resumidamente, a gente se assusta, mas depois quase aceita, porque passa.

Trata-se da mesma resposta recebida por inúmeras formas de violências sofridas por grupos sociais estigmatizados no Brasil, dado que tratamos os problemas como questões individuais e não estruturais. E como isso acontece? O segredo está em sempre apresentar esses fatos de forma espetacular.

A espetacularização é um fator comum nas mídias nacionais, seja em programas de auditório como “Casos de Família”, “Programa do Ratinho” e “Brasil Urgente”, ou até mesmo nos shows de notícias mais “prestigiosos”, como o “Jornal Nacional” e o “Fantástico”. Transformar notícias em grandes espetáculos é uma forma de chamar e prender a atenção do público. Contudo, também é uma forma de tratar questões que são recorrentes e problemas sociais, como sendo problemas de indíviduos. É dessa forma que vamos acreditando que o problema da corrupção é o PT e não a forma como é concebida a estrutura política que existe há mais de séculos.

No campo do gênero isso é ainda mais perigoso. A violência é sempre transformada em algo extraordinário, mesmo que estejamos no país onde a cada quatro (sim, quatro!) minutos uma mulher é agredida e onde a cada 11 minutos (!!!) uma mulher é violentada sexualmente.

Não, não é que eu não me importe. Estamos falando de um estupro coletivo de uma jovem de 16 anos dopada, violentada, que teve fotos e vídeos expostos pelos agressores em redes sociais. Eu me importo e muito! Porém tem comportamentos que vão se repetindo: homens se dão o direito de fingir que violência de gênero não existe, ao mesmo tempo que se permitem reproduzir essas violências. E veículos de imprensa permitem-se questionar a veracidade do estupro, mesmo com os vídeos de homens manipulando uma menor de idade dopada, compartilhados por eles mesmos. Ao mesmo tempo que disputam entre si para ver quem terá a primeira entrevista da vítima como forma de ganhar na disputa por audiência.

Estou cansada de a narrativa ser sempre essa, onde só mulheres geralmente feministas se mobilizam para defender, proteger, denunciar, desmentir  e questionar.

O jornalismo já se acostumou a transformar constantemente a vítima da opressão em principal algoz de si mesma, esmiuçando sua vida e expondo seu cotidiano, fotos, e subjetividades ao limite. E, de alguma forma, já nos acostumamos a fazer sempre o papel do advogado indignado de defesa ou do passivo que aceita a narrativa unilateral que defende apenas o lado que interessa. Nesse caso ser o advogado do machismo, é a principal função dos veículos de mídia brasileiros em casos de violência de gênero.

O uso do termo “suposto” deve ser colocado em xeque. Reconheço que, por recomendação jurídica, a palavra seja usada como forma de não responsabilizar o jornalista. Assim, ao iniciar uma matéria e usar o adjetivo “suposto”, ele esvazia as bases que permitiriam que fosse processado por injúria, calúnia ou difamação, caso as acusações sejam inverídicas. Porém, convenhamos, o jornalismo se aproveita disso quando são crimes contra minorias, e convenientemente se esquece desses cuidados quando o acusado é membro dessas mesmas minorias. Sem recursos para contratar advogados, indivíduos dessas minorias sempre são acusados com muita facilidade. Se comprovada a injustiça da acusação, é só depois soltar uma pequena nota de rodapé: erramos.

Somos a todo momento manipulados pelo que lemos. Uma notícia que chama um negro periférico de “traficante” e um branco morador do Leblon de “usuário”, quando ambos foram detidos com idênticas quantidades de drogas, diz muito sobre a sociedade em que estamos inseridos e como o jornalismo não a questiona e, pior, ajuda na sua manutenção.

A menina de 16 anos, após o estupro e o compartilhamento de imagens que provavam o crime no twitter, viu seu nome ser divulgado em redes sociais, presenciou a família ser sugada em inúmeras entrevistas. Teve fotos suas espalhadas pelas redes e perfis fakes sendo criados com seu nome. Tornou-se mais culpada que qualquer outro que ousou desrespeitar seu corpo e suas escolhas.

Esse comportamento do brasileiro em redes sociais é criminoso e antiético. Porém comportamentos não se criam sozinhos, as matérias sensacionalistas sobre a vida da jovem, tornaram a legitimar essas ações nocivas da população. Acredito, inclusive, terem induzido o leitor a crer que, de fato, não só o estupro era questionável, como a vida dela era o mais relevante a ser pautado no país.

A nossa sociedade das selfies com pessoas mortas, dos vídeos de acidentes incansavelmente compartilhados e da busca doentia em expor vítimas, é endossada por um jornalismo sem limites.

Que faz uso do sensacionalismo, transformando a realidade da moça num espetáculo. A sua vida precisava ser mostrada porque, no fundo, ela é importante para essa dramatização –não lemos notícias e sim roteiros de uma novela. É por meio da emoção e dos sentimentos, sejam eles de afeto, empatia, ódio, raiva que se garante que o público seja mantido.

É assim que é feito na mídia nacional, não somos informados, não somos sujeitos críticos, somos apenas induzidos a acreditar no que querem que acreditemos.

“No fundo a imprensa sensacional trabalha com as emoções, da mesma forma que os regimes totalitários trabalham com o fanatismo, também de natureza puramente emocional” (in Marcondes Filho).

E é assustador, basta lembrar do caso Elóa e temos um exemplo disso.

Eloá, aos 15 anos, estava com a amiga no apartamento da família quando foi sequestrada pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, na época com 22 anos.  O caso chamou atenção pela negligência da Polícia Militar em permitir que a amiga Nayara Rodrigues, também de 15 anos, voltasse ao cárcere privado, sendo novamente mantida como refém.  Porém, o que foi marcante (pelo menos para mim), foi a ação midiática irresponsável e desmedida da jornalista Sônia Abrão, da RedeTV!, entrevistando Lindemberg e Eloá por telefone, ao vivo, por telefone. E isso em nome da audiência, já que seu programa “A Tarde É Sua” nesse dia conseguiu registrar um pico no ibope duas vezes maior que o comum. Mesmo sendo evidente para qualquer pessoa de bom senso que tal atitude era danosa, inconstitucional, violadora e exploradora, Sonia realizou a intervenção que influenciou, sim, para o fim trágico desse caso.

Em momentos em que o jornalismo se mostra extremamente violento e incapaz de ser justo e empático para com as mulheres, casos como o dela mostram como a mídia no Brasil, ainda depois de uma menina de 15 anos ser assassinada, não conseguiu se reinventar; não conseguiu entender que questões de gênero não dão matérias apenas, elas transformam redações, a visão dos leitores sobre o que são opressões, estruturas sociais e o que são vítimas, e, principalmente, a forma de se fazer jornalismo.

Assim como Sonia Abrão deu espaço para o agressor entender todo o poder de controle que tinha naquela situação; tirinhas, artigos, matérias vão desenhando e enfatizando que homens podem tudo, inclusive estuprar. Sem um olhar treinado para identificar tais absurdos, vamos aceitando manchetes em que é normal chamar de sexo consensual o estupro de uma menina de 8 anos por um homem de 40 que resultou em sua morte. Vamos achando engraçadinho dizer que só 36% das mulheres dizem dividir com marido as tarefas de casa igualmente.

Não acredito na imparcialidade da maioria das narrativas jornalísticas, mas o que vejo em casos de violência de gênero é surreal, com o papel do agressor sendo defendido a todo custo, inclusive na base do seu esquecimento. Pois é mais importante dizer que a vítima tinha hábitos noturnos e roupas curtas.  O Brasil é o sétimo país no ranking de assassinato de mulheres, dentre 84 países. Esse tipo de estatística não se faz sozinha. Ninguém acorda um dia e decide: “Vou colocar o Brasil num ranking desses, como um dos  primeiros!” Só que isso não vira manchete e raramente artigos. Preferimos não apontar a realidade da violência, o que ajuda a naturalizá-la, mas vendemos jornais com os casos de violência que acontecem.

O jornalismo que precisa de furos de reportagem, likes e compartilhamentos entende que não precisa de empatia. Então age como um cúmplice de vários delitos, pois ao mesmo tempo que espera pela notícia, ele incentiva diariamente o crime.

É “normal” ser estuprado. Criamos filhas que acreditam que não podem andar nas ruas sozinhas à noite sem ter algo para se defender nas mãos; mulheres que crescem aprendendo a ter MEDO.O que não é “normal” no país é uma mulher se mostrar indignada perante a violência que está sofrendo e ter espaço para dizer isso, ter segurança para lutar contra isso e ter apoio para sobreviver a isso de quem tem total controle das informações.

A forma como uma história é contada ou silenciada molda uma sociedade.  

A mídia brasileira é destaque num golpe de Estado, por que não seria na manutenção do machismo e da cultura do estupro? Culpar os agressores é um passo relevante. Então, é um bom começo culpar o jornalismo pelo mal que ele faz ao ajudar na manutenção da violência contra nós mulheres ao contar as narrativas em sua maioria pela perspectiva machista.

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Jornalistas Livres Entrevista: Livia Sant`Anna Vaz

O JL Entrevista conversa com a promotora de Justiça Livia Sant’Anna Vaz, do Ministério Público da Bahia. No bate-papo, Livia fala sobre feminicídio, cultura do estupro e igualdade racial, entre outros temas.