Arte deveria ser tratada como direito humano… e direitos não são comercializáveis. Ou não deveriam ser. Sei também que é perigoso esse raciocínio – porque tem gente que vai achar que artistas vivem apenas de luz, e não precisam de dinheiro – mas é esta uma das muitas contradições do capitalismo e lidar com ela sem romantizar a pobreza, nem me tornar mero produto, é justamente o desafio.
“Lá, desde moleque, eu cursei o favelês
Aprendi, compreendi, que o inimigo é burguês”.
Quantas histórias pra contar – Clã Nordestino
Semana passada o Café com Muriçoca completou um ano e eu pensei em escrever sobre isso, em comemoração. Mas a vida anda difícil, escrever nunca é lisinho e não quis fazer só por fazer. Se tivesse parado a carruagem pra cumprir esse protocolo, não seria eu. O eu que me habita não tem tempo pra escritas protocolares.
Não sei se ceis notaram que minha linguagem, aqui com vocês, fica cada dia menos favela. Talvez eu não esteja ouvindo o suficiente minha vizinhança, talvez tenha conversado pouco com minha família, ou só esteja com preguiça de ser poliglota e transitar entre o pretuguês da favela e o português do coração de Pedro II.
A questão é que o favelês é minha segunda língua, já que a materna vem do Ciará réi, de Padim Padim Ciço, de papai, de mãe, das irmãs mais velhas. Antes de aprender a ler, eu já falava as duas: a de casa e a da rua e, numa delas, eu comia mandioca e abóbora, na outra era macaxêra e jirimum – com i. O inseto que me picava, na rua, era pernilongo, em casa, era muriçoca. O fósco, o galfo, a bringela, o córgo… esses eram comuns às duas falas.
Foi só quando entrei na escola que o português entrou na minha vida. Sete anos já tinham se passado e, quem lida com linguagem sabe, cada língua é um mundo diferente, um universo à parte. Vai ver por isso, por ter passado tantos anos apenas nesses dois mundos é que, na faculdade, eu me sentia Carry, a estranha – com minha fala nordestina e favelada que via “mindingos” e “treis sol” no olho de pessoas em situação de rua. E eu só percebia meu sofrimento verbal quando o busão vinha chegando na quebrada e, do lado de fora, as pessoas iam ficando menos brancas e a fala mais preta, mais indígena, mais nordestina, mais favelada.
Era só nesse momento do dia que meu corpo relaxava… se deixava embalar pela dicção coletiva.
Essa semana eu, doutora pobre que às vezes vende livros e canecas personalizadas pra sobreviver, convidei as amizades pra um café. A ideia era que comprassem e viessem beber comigo. Mas o país tá todo ferrado, né não?
Um dos meus amigos, dos mais antigos e queridos, respondeu que gostaria muito, mas que não tem dinheiro. Eu ofereci o livro, mesmo assim, porque fazia questão de que me lesse. E daí ele me disse que era injusto, pois se tratava do meu trampo, na lógica de que devo ser remunerada pela arte que produzo. E devo.
Só que é aí que o bicho pega: esse povo que amo, que me faz sentir em casa, que faz meu espírito relaxar no ritmo das minhas primeiras linguagens, não tem dinheiro pra comprar pão… que dirá consumir arte…
Arte deveria ser tratada como direito humano… e direitos não são comercializáveis. Ou não deveriam ser.
Sei também que é perigoso esse raciocínio – porque tem gente que vai achar que artistas vivem apenas de luz, e não precisam de dinheiro – mas é esta uma das muitas contradições do capitalismo e lidar com ela sem romantizar a pobreza, nem me tornar mero produto, é justamente o desafio.
E se a linguagem desta coluna anda ruim, a dos meus poemas segue livre, linda… Então, amigas, amigues, venham a mim. Se faltar café e cerveja, beberemos água e comeremos poesia.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Diário do fim do mundo (2019) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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