“Era bom ser boçal inda mesmo/ viajar a milhão pelos tempos/ tentando voltar para o quente/ espaço da indignação.”
Boçalidades – Maria do Povo
“Sem um conto no bolso/ Só com ferro na cintura/ Choro de criança/ Que ecoa à luz da lua/ Sugando secos seios/ Da fome verde e amarela/ A morte em capítulos/ Da mesma novela”
Quantas histórias pra contar – Clã Nordestino
Ói só! Vê se concorda: uma pessoa não aculturada, não completamente dominada pela cultura opressora, é talvez a mais plenamente capaz de se rebelar. De matar, de morrer, de sangrar em nome do que não é aceito pelo Grande Irmão. É capaz de se erguer da forma mais dura contra o racismo, o machismo, o capitalismo e os neonazi da vida.
Há quase vinte anos, ouvi o colega Toni C, da Literarua, dizer que levou uma bela bronca de alguém por causa do termo “boçal”.
Era uma quarta-feira de Cooperifa – hoje o sarau ocorre às terças -, do remoto e tão dolorido ano de 2006. Toni C eu só conhecia por seus textos, publicados no Vermelho.org. Nesse dia ele contou que, certa vez, quando se referiu a alguém como boçal, levou uma baita comida de orelha por isso. Levou logo um pedala de alguém que lhe dizia: boçais são pessoas negras, escravizadas, que “ainda” não estão aculturadas. E a resposta dele foi: “desculpa! É que eu sou boçal ainda!”.
Naquela noite eu senti um alumbramento, e aquela história ficou guardada no meu caderninho de memórias. A partir daí, eu que já não usava mais o termo “denegrir”, por seu caráter racista, passei a rejeitar também o verbete “boçal”. Hoje em dia, nem o execelentíssimo Bozo eu chamo assim, porque ele não é boçal, nem de longe… o pateta só finge. O disgramento é só cruel mesmo.
Aconteceu que, há um tempinho atrás, os clipes This is not America, do porto riquenho Residente, This is America, do estadunidense Childish Gambino, Man Down, de Rhiana e Boa Esperança, de Emicida, cada qual me fez voltar a pensar, de novo, no que é ser boçal em nosso mundo.
Gambino com sua interpretação de uma personagem que é misto de “bom banana” e rebelde. Sua ironia cínica. Rhiana com seu contra-ataque aos feminicidas: tão cruel e, ao mesmo tempo, bem vindo… Emicida com a rebelião da senzala moderna e, finalmente, Residente, com a história de violência e resistência de toda a América Latina, tais artistas me fizeram pensar que as personas representadas nessas obras de arte têm em comum, talvez, sua boçalidade.
Ói só! Vê se concorda: uma pessoa não aculturada, não completamente dominada pela cultura opressora é talvez a mais plenamente capaz de se rebelar. De matar, de morrer, de sangrar em nome do que não é aceito pelo Grande Irmão. É capaz de se erguer da forma mais dura contra o racismo, o machismo, o capitalismo e os neonazi da vida. E quando eu digo “dura”, quero dizer “violenta”, sem massagem, como nas cenas que vemos nos clipes musicais de Rhiana, Gambino, Emicida e Residente.
Troquei uma ideia com o Du sobre isso. Entre um café e outro, ele me disse que as pessoas pobres, as mais lascadas, é comum que elas sejam também as mais “boçais”. Ele observou que na baixa escala do mundo do crime – aquela pior remunerada – e entre pessoas usuárias de crack, por exemplo, a gente, muitas vezes, encontra as atitudes menos “aculturadas”, menos “civilizadas”, menos adequadas ao que se espera de “pessoas de bem”.
E faz todo sentido: como diria o saudoso Preto Ghóez, “sem um conto no bolso” e nem um “ferro na cintura”, não tem ação cultural que salve nosso povo. Não tem escola que o dominique. Em sua indisciplinada conduta há traços insuspeitos da rebeldia de quem, de tão pisado, nada tem a perder. E eu quero muito conservar ao menos parte desse facão afiado que um dia foi chamado de boçalidade, mas que é a marca de quem se recusa a simplesmente ser peça devidamente ajustada à engrenagem machista e racista que concordamos em chamar de “capitalismo”.
Bom café com muriçoca pra vocês.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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São Paulo é uma cidade-palafita
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