Dinha*
Pra isso é necessário um país, uma sociedade e um sistema econômico que leve a sério a proteção às mulheres, na forma de políticas de combate ao feminicídio e às culturas degradantes, além de oportunidades e incentivos que corroam o machismo, o patriarcado e a misoginia. Não necessariamente nessa ordem.
“Vão invadir o meu barraco – é polícia! Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia”.
O homem na estrada – Racionais MCs
Na sexta-feira saí de casa apressada. Minhas filhas perguntaram meu destino e eu tive dúvidas antes de responder: vou namorar, trabalhar e voltar.
Uma delas grita pra outra: a mamãe é famosa! Você já viu o que o google fala dela? Um tanto de espanto e alegria tomou a casa e eu saí de lá com menos culpa por deixá-las.
O google levou 43 anos pra me reconhecer como alguém que merece estar em suas sugestões de pesquisa. Minha mãe levou, talvez, uns 7. Desde a primeira reunião na escola ela provavelmente notou que algo em mim cheirava à vida, apesar das inúmeras ameaças diretas e veladas que sofremos, todos e todas, nas favelas brasileiras. E quando ela me viu lendo em público, pela primeira vez, no antigo Osem – lar de crianças inseguras – ela deve ter tido uma epifania: que a menina beradêra, pelas bordas ou não, de boca cheia, ia devorar a vida.
O google levou 43 anos. Mas minha mãe é mais importante que o google. Desde sempre eu me esforcei pra mostrar a ela que eu sou digna do seu amor e da sua admiração. Para o google eu não fiz questão nenhuma.
Pelo contrário… vira e mexe eu me escondo pra que suas luzes não me ceguem, pra que a sociedade do espetáculo não me coloque no lugar de vítima, de mártir, de santa, de puta ou de palhaça… de tempos em tempos me recolho à minha pequenez cotidiana e gasto mais tempo com as crias do que com as criações.
Mas tem tempos em que aparecer, no meu caso, é estratégia de sobrevivência.
Quando, há dois anos, os vermes invadiram meu barraco, foi a articulação das redes que me manteve um pouco mais segura: seja divulgando o ataque que sofri, seja colaborando para que tivessem grades e câmeras no meu portão. A Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, da qual faço parte, foi fundamental na minha defesa. A rede de amigos e amigas (que chegaram em casa rapidinho pra me defender), a de jornalistas, a de gente da política, as redes sociais… todas as redes me protegeram, cada qual à sua maneira.
Sei que se manter em evidência não é suficiente pra me tirar da mira dos Promotores da Morte… Marielle Franco que o diga…
Pra isso é necessário um país, uma sociedade e um sistema econômico que leve a sério a proteção às mulheres, na forma de políticas de combate ao feminicídio e às culturas degradantes, além de oportunidades e incentivos (financeiros) que corroam o machismo, o patriarcado e a misoginia. Não necessariamente nessa ordem.
Tudo isso é o que é preciso.
Nada disso é o que tá teno…
Então, na sexta-feira, quando saí de casa e fui para o ponto de ônibus, e lá havia uma viatura e, perto dela, dois coxinhas… uma luz de alerta se acendeu no meu do peito e eu pensei se morreria…
Minhas cicatrizes me fazem pensar que eles me notam e me odeiam. Que sabem que eu somo nas lutas que querem o seu fim.
O google, certeza, me nota.
Minha mãe e minhas filhas me notam.
Eu anoto… e agradeço quando o busão, finalmente, dá a partida.
(*) Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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