Estratégia de sobrevivência

No Café com Muriçoca de hoje Dinha fala sobre "Estratégia de sobrevivência". Aos 43 anos de idade, um pós-doutorado e vários livros publicados, ela ainda sente a insegurança do que é ser mulher no mundo capitalista.
Estratégia de sobrevivência. Dinha no colo da mãe.
Dinha no colo da mãe. 1980. Jd. Miriam;

Dinha*

Pra isso é necessário um país, uma sociedade e um sistema econômico que leve a sério a proteção às mulheres, na forma de políticas de combate ao feminicídio e às culturas degradantes, além de oportunidades e incentivos que corroam o machismo, o patriarcado e a misoginia. Não necessariamente nessa ordem.

“Vão invadir o meu barraco – é polícia! Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia”.

O homem na estrada – Racionais MCs

Na sexta-feira saí de casa apressada. Minhas filhas perguntaram meu destino e eu tive dúvidas antes de responder: vou namorar,  trabalhar e voltar.

Uma delas grita pra outra: a mamãe é famosa! Você já viu o que o google fala dela? Um tanto de espanto e alegria tomou a casa e eu saí de lá com menos culpa por deixá-las. 

O google levou 43 anos pra me reconhecer como alguém que merece estar em suas sugestões de pesquisa.  Minha mãe levou, talvez, uns 7. Desde a primeira reunião na escola ela provavelmente notou que algo em mim cheirava à vida, apesar das inúmeras ameaças diretas e veladas que sofremos, todos e todas, nas favelas brasileiras.  E quando ela me viu lendo em público,  pela primeira vez, no antigo Osem – lar de crianças inseguras – ela deve ter tido uma epifania:  que a menina beradêra, pelas bordas ou não, de boca cheia, ia devorar a vida. 

O google levou 43 anos. Mas minha mãe é mais importante que o google. Desde sempre eu me esforcei pra mostrar a ela que eu sou digna do seu amor e da sua admiração.  Para o google eu não fiz questão nenhuma. 

Pelo contrário… vira e mexe eu me escondo pra que suas luzes não me ceguem, pra que a sociedade do espetáculo não me coloque no lugar de vítima,  de mártir, de santa,  de puta ou de palhaça… de tempos em tempos me recolho à minha pequenez cotidiana e gasto mais tempo com as crias do que com as criações. 

Pesquisa no google: As pessoas também perguntam.
Estratégia de sobrevivência. Ou: mamãe é famosa.

Mas tem tempos em que aparecer, no meu caso,  é estratégia de sobrevivência. 

Quando, há dois anos,  os vermes invadiram meu barraco, foi a articulação das redes que me manteve um pouco mais segura: seja divulgando o ataque que sofri, seja colaborando para que tivessem grades e câmeras no meu portão.  A Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio,  da qual faço parte,  foi fundamental na minha defesa. A rede de amigos e amigas (que chegaram em casa rapidinho pra me defender), a de jornalistas, a de gente da política, as redes sociais… todas as redes me protegeram, cada qual à sua maneira. 

Sei que se manter em evidência não é suficiente pra me tirar da mira dos Promotores da Morte… Marielle Franco que o diga… 

Pra isso é necessário um país, uma sociedade e um sistema econômico que leve a sério a proteção às mulheres, na forma de políticas de combate ao feminicídio e às culturas degradantes, além de oportunidades e incentivos (financeiros) que corroam o machismo, o patriarcado e a misoginia. Não necessariamente nessa ordem.

Tudo isso é o que é preciso. 

Nada disso é o que tá teno… 

Então, na sexta-feira,  quando saí de casa e fui para o ponto de ônibus, e lá havia uma viatura e, perto dela, dois coxinhas… uma luz de alerta se acendeu no meu do peito e eu pensei se morreria…

Minhas cicatrizes me fazem pensar que eles me notam e me odeiam. Que sabem que eu somo nas lutas que querem o seu fim.

O google, certeza, me nota.

Minha mãe e minhas filhas me notam.

Eu anoto… e agradeço quando o busão, finalmente, dá a partida.


(*) Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. 
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

O reizinho genocida

Olha nos olhos e enxerga o bebê

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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