Por Bruna Benevides*
Antes de entrar na questão em si, deixo aqui marcado que pessoas trans sempre existiram e, embora ao longo da história possam ter sido nomeadas de outras formas, sempre soubemos da (re)existência de pessoas que rompem com a designação imposta e que não atendem as expectativas de gênero que são lançadas sobre todos os corpos. O que não existia, de forma tão sorrateira, explícita e vil, era a politização em torno de uma agenda antitrans para radicalizar uma guerra que posiciona as pessoas trans como uma ameaça, inimigas e/ou perigosas.
“Mulheres trans não são homens vestidos de mulher ou de peruca”. Mesmo aquelas que possam vir a usar uma peruca, não são um homem de peruca. Existe uma diferença gritante entre homens e mulheres trans: o lugar social onde cada um ocupa. Um é o topo da cadeia em um sistema patriarcal, e a outra é a não nomeada e que enfrenta processos de extrema violência e precarização sem direito a um nome, a direitos básicos, sem a possibilidade de afetos e colocadas em um lugar de extrema abjeção.”
Bruna Benevides, Secretaria de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
Ideais violentos que tentam afirmar que travestis e mulheres trans seriam perigosas são diariamente alimentados por esse tipo de narrativa. Discursos de ódio produzem e alimentam ideais violentos. E diante do ato de 8 de janeiro, aprendemos a importância de ser observada e nomeada a responsabilidade intelectual por crimes que ocorrem em decorrência da incitação feita por figuras públicas. Esses discursos alimentam as mais perigosas teorias da conspiração que vem sendo disseminadas em relação as pessoas trans. E utilizam do pânico antitrans para intensificar uma campanha falaciosa de que devem ser combatidas por supostamente “ameaçar os direitos das mulheres e meninas cisgêneras”(sic).
Imagine alguém dizer que brancos estão perdendo espaço para negros. Seria aceitável esse discurso? Bom, isso já aconteceu. Tanto que a segregação entre brancos e negros existia de forma institucionalizada e hoje segue presente, embora finjamos que vivemos uma democracia racial – uma farsa denunciada por pensadores e pesquisadores negros todos os dias. Hitler utilizou a ideia de que judeus estariam ocupando o lugar de alemães e isso foi usado para justificar o holocausto. E a raiz desse discurso racista é a mesma que irá afirmar que imigrantes estão tomando “postos de emprego” de brasileiros. O que alimenta esses ideais senão o racismo, a xenofobia e o desprezo por uma outra nacionalidade? Haveria qualquer contexto em que essas afirmações seriam aceitáveis senão através de ideais fascistas?
A publicação e divulgação constante desse tipo de pensamento, sejam por políticos de extrema direita ou por feministas transfóbicas, ou ainda por fundamentalistas religiosos, acaba por assumir um ideal supremacista vindo de pessoas cisgêneras em relação a identidades trans. A transfobia pode facilmente ser identificada a partir desses mesmos ideais que compartilham a ideia de inferiorização de um grupo devido a suas características, seja religião, raça, etnia, cor, gênero, entre outros. E quando massificado, soa como um apito de cachorro para a incitação de mais violência contra pessoas trans, e especialmente quando ocorrem dentro de casas legislativas vemos se acirrar o cenário de violência direcionada a parlamentares trans que têm sido vitimas constantes de ameaças, incluindo de morte, e as principais vítimas da violência política de gênero.
E por que será que quando nos deparamos com a reprodução do mesmo método eugenista sendo usado contra pessoas trans, muitas pessoas ainda ficam em dúvida sobre como deveriam se posicionar contra a transfobia? É aceitável deixar que aconteçam movimentações que pretendem incentivar a segregação de espaços entre pessoas cis e trans, mulheres cis e trans, crianças cis e trans? Com que intenção? Já não vivemos suficientemente isoladas e sem acesso aos espaços sociais por conta de vivermos no pior país para ser trans e o que mais nos assassina todos os anos? Não aprendemos nada com o apartheid, o holocausto e a colonização que dizimou povos e culturas ao redor do mundo?
Autodeclaração de gênero
Autodeclaração é um privilégio cisgênero, pelo qual as pessoas trans têm lutado a fim de terem seu gênero reconhecido, na busca de cidadania e acesso a direitos. Pessoas cis tem seu gênero aceito (e validado) sem qualquer questionamento, necessidade de comprovação e/ou negativa de direitos devido ao gênero que se identificam. Nesse sentido, o tratamento diferenciado e desproporcional que pessoas trans tem sido submetidas ao reivindicar o gênero que se identificam se tornam violações de seus direitos humanos.
Fica nítido por que se trata de um privilégio cis: pessoas cisgêneras não precisaram durante anos recorrer a processos judiciais, inspeções físicas vexatórias e de saúde para provar aquilo que diziam ser, se submeter a cirurgias de modificações corporais, incluindo a redesignação sexual em muitos casos, para o reconhecimento de seu gênero e, consequentemente, o acesso à cidadania que está instituída em nossa sociedade, que ainda segue generificada e binária. Essa discussão é mais um cavalo de Tróia disseminado por grupos de ódio para manipulação da opinião púbica, através da política do pânico e terror que vem sendo difundida pela falaciosa “ideologia de gênero”.
Os processos de autodeclaração de gênero existem em muitos países ao redor do mundo há anos e estão em convenções internacionais como os princípios de Yogiakarta e decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Hoje, cerca de 2 bilhões de pessoas vivem sob as leis de auto-identificação. Brasil (desde 2018), Irlanda, Dinamarca, Argentina, Noruega, Portugal, Espanha, Bélgica, Índia, muitos estados nos Estados Unidos e províncias canadenses, todos têm alguma forma de auto-identificação. E em nenhum desses países foi observada qualquer alteração ou aumento no número de violências sexuais, estupros, e retrocessos nos direitos das mulheres e meninas cis, em decorrência do direito a autodeclaração de gênero das pessoas trans.
A autodeclaração de gênero expõe mulheres cis a predadores sexuais?
Mulheres trans são mulheres
TRANSFOBIA, MISOGINIA e a violência que vimos vinda do deputado tem a mesma raiz: ÓDIO AO GÊNERO FEMININO e alcança todas as mulheres. E exatamente por isso ele – que nunca se preocupou com os direitos ou a proteção das mulheres – escolheu atacar mulheres trans para zombar de todas as mulheres em razão do nosso gênero compartilhado, que é visto como inferior, subalterno e frágil.
A misoginia inclui injuriar alguém, ofendendo a dignidade ou o decoro; promover discurso de ódio; hostilizar pessoas por palavras, cantos, gestos, atos em razão do seu gênero feminino. E vejam, a transfobia é exatamente a mesma definição motivada pela identidade de gênero expressa pelas pessoas trans. E o cruzamento entre a transfobia e a misoginia se tornam uma das formas mais cruéis de violência de gênero.
O referido deputado é um transfóbico costumaz e reincidente, que tem movimentado diversas ações antitrans. Uma fórmula já manjada e que em outros tempos trouxe notoriedade ao ex-presidente que se elegeu atacando a comunidade LGBTQ+, especialmente as pessoas trans. E em decorrência de seus atos, em fevereiro, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais acolheu a denúncia e transformou Nikolas em réu por conduta transfóbica, racismo e injúria racial. Anteriormente, ele também já havia perdido o porte de armas por uma ação movida pela atual deputada federal Duda Salabert. Ela própria reforçou que agora vai entrar também com uma representação contra o deputado, por quebra de decoro parlamentar.
E o impacto de suas ações e declarações revelam aquilo que o brasileiro que o elegeu deseja: A garantia do direito de seguir humilhando e oprimindo pessoas trans que são consideradas seres sem humanidade, nunca vistas como iguais, e as manter invizibilizadas, tornando suas vidas tão sofridas e miseráveis ao ponto de que as levem a abrir mão de suas identidades e deixem de existir. Nem que para isso tenham de intensificar as tentativas de institucionalização de transfobia, dificultando o acesso a direitos e criminalizando suas existências.
Só acredita e dissemina a narrativa de que mulheres trans estariam roubando o lugar de mulheres cis aquelas pessoas que negam que estas são mulheres. E isso é uma flagrante denúncia de violência de gênero ao negar e zombar de nossas identidades – garantidas pelo Estado brasileiro.
Transfobia é crime, exigimos respostas!
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu finalmente que a discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual equivale ao racismo (no sentido social) e deve ser tratado como tal. Ainda em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou a decisão e decretou que crimes desse tipo são inafiançáveis, imprescritíveis e podem resultar em uma pena de 2 a 5 anos de reclusão. “Qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos”, diz a lei sancionada.
“Afirmar que mulheres trans não são mulheres é crime. Exatamente porque tenta invalidar o direito de que pessoas trans poderem se identificar da forma com que vivenciam suas identidades. Dizer que mulheres trans estariam tirando o lugar de mulheres cis é negar que estas seriam mulheres. E quando olhamos os espaços sociais e aqueles separados por gênero, inexiste espaço feminino onde mulheres trans sejam maioria, mas existem muitos em que essas sequer conseguem acessar ou são bem vindas. E nesse sentido, além de isso ser um espantalho, não punir a transfobia explícita deste caso seria consentir a sua naturalização e autorizar que outras pessoas sigam proferindo discursos de ódio contra à comunidade trans.”
A imunidade parlamentar não pode ser usada como escudo para que parlamentares sigam violando direitos e cometendo crimes impunemente. E é exatamente por isso que a sociedade deve se mobilizar para que o ministro André Mendonça – relator que vai analisar as denuncias no Supremo Tribunal Federal (STF), responsabilize e puna a flagrante transfobia do deputado mineiro Nikolas Ferreira. O STF tende a fazer com que os ministros julguem de acordo com precedentes da própria Corte Superior.
E como a maioria das ações acabou focando na Câmara dos Deputados e na cassação do mandato, está sendo mobilizada uma petição para pressionar o ministro e o próprio STF para que deem o julgamento devido às denúncias enviadas à Corte e responsabilizem o deputado por transfobia.
Assine a petição e peça ao ministro André Mendonça a devida investigação e responsabilização do deputado Nikolas Ferreira (pl-mg) pelo discurso transfóbico. clique aqui
(*) Militar antifascista, travesti, feminista. Secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Coordenadora da pesquisa sobre violência contra a população Trans e pesquisadora sobre pessoas trans nas eleições e violência política. Coordenadora adjunta da Clínica Jurídica LGBTQIA+/UFF (Universidade Federal Fluminense)
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