Histórias que a favela não quer mais contar
"Na favela impacificada as crianças brincavam na rua ñquanto isso o tiroteio corria: bicho solto e veneno de rato. No asfalto, cicatrizes de fogueira e intenção de poesia. Aqueles homens caídos não contavam mais histórias. suas filhas, se pudessem, é quem as contariam." (In: Gado cortado em milprantos. DINHA, 2018.)
Às sete da manhã uma fogueira abandonada ainda ardia, firme no desejo de derreter o asfalto.
Não seria a primeira.
Ao menos outras seis cicatrizes, num raio de dois quarteirões, disputavam espaço na paisagem da Vila da Cristina.
Voltando da padoca, passei por ela sem deixar de admirar o fogo e suas brasas vermelhas, que iam tomando aos poucos a madeira a caminho das cinzas.
Capaz de ter sido mais fria esta noite. Parei pra esquentar as mãos.
Quando a barca cinza passou, e um dos vermes lançou o zóin contra mim, esperando retribuição, ainda fervilhavam em mim recordações de outras rodas de fogueira – e histórias picotadas me tocavam, como restos de galinha morta depois do encendeio.
Quando o verme me olhou, esperando retaliação, uma parte de mim inda corria com medo dos ninjas encapuzados que entravam na favela atirando a esmo, naqueles famigerados anos 90, enquanto outro pedaço do meu cérebro dialogava com a morte, sentada em um consultório médico, no centro de uma nave alienígena. E uma terceira margem de mim inda olhava a fogueira e chorava, lembrando da vez que mataram o Russo.
Naquela noite ninguém tinha acendido a fogueira. Pois, se tivesse, além dos tiros ele também podia ter sofrido queimaduras, e o velório ia ser bem mais complicado, sem a gente poder ver nem tocar nele. Sem ver porque o fogo talvez o tivesse desfigurado, considerando o lugar em que ele caiu, e sem olhar porque sua irmã, a Naná, é budista, e o toque após a passagem, de acordo com essa cultura, provoca sofrimento.
Ele tinha os cabelos crespos e vermelhos, o Russo.
Eram cinco ratos numa baratinha contra dois adolescentes
Então eu tentava solucionar o problema que não existiu, de o Russo ter caído baleado bem em cima da fogueira, e também do meu irmão ter chegado em casa correndo, inteirinho arrepiado porque ele viu o outro rapaz sacar a arma e, do nada, atirar no amigo…Eu meditava nessas coisas quando o verme da barca fixou o azul da íris em mim.
E a luz fria que dele me chegou fez lembrar também da vez que cabou a luz e uma baratinha parou a cinco metros da fogueira que ficava na ponta do beco, onde meu sobrinho Bilu e eu tentávamos assar umas batatas-doces.
Baratas e ratos são feras, quando ameaçados.
E eles devem ter sentido medo quando viram dois adolescentes magrelos tentando arranjar o que comer.
Não sei.
Só sei que os bichos desceram do carro, miraram em nós suas lanternas frias, nos olharam, nos xingaram, ameaçaram toda a favela de morte – que iam mesmo era jogar uma bomba no beco e aí todo mundo baubau.
Eram cinco ratos numa baratinha, contra Bilu e eu, naquela noite.
Minha cabeça viajava nisso tudo, quando os vermes da barca me olharam, e foi por isso que eu apenas segui mirando o fogo, fingindo ignorância sobre seus instintos.
Dobrei a esquina com a nuca presa nos olhos deles.
Em casa, acendi uma vela aos finados Russo e Bilu, rezei e segui com a vida quase inteira pela frente.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha
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