Brasil perde a voz e arte de Gal Costa, uma das maiores cantoras que o país já teve

Gal, que morreu de infarto aos 77 anos em São Paulo, deixa um legado de discos essenciais e interpretações definitivas
Gal Costa: 57 anos de carreira e clássicos como 'Baby', 'Meu nome é Gal', 'Brasil, mostra a tua cara' e 'Meu bem, meu mal'
Gal Costa: 57 anos de carreira e clássicos como 'Baby', 'Meu nome é Gal', 'Brasil, mostra a tua cara' e 'Meu bem, meu mal'

Por Bia Abramo

Dos quatro cavaleiros do após-calipso, a mais nova, a mais serena, a mais malemolente. A que seria mais injusto partir antes, mas talvez eu dissesse isso se qualquer um dos outros três Doces Bárbaros, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso, tivesse ido nesse dia de hoje, com céu azul e um frio estranho de novembro em São Paulo, dia 09 de novembro de 2022.

Maria da Graça, Gracinha, Gal; uma cantora de voz com um alcance impressionante e uma verdadeira curadora de música brasileira morreu aos 77 anos em São Paulo. Nascida em 1945, em Salvador, Gal era uma adolescente quando foi lançado “Chega da Saudade”, o disco de João Gilberto que acendeu uma fagulha incontrolável em centenas de jovens pelo Brasil todo, chamando para uma música que soava nova, vibrante e plena de possibilidades. Amiga de bairro de Sandra e Dedé Gadelha, foi apresentada a Caetano Veloso e Maria Bethânia e começou a carreira ao lado de Gilberto Gil, Tom Zé e os dois irmãos Telles Veloso em 1964.

Com Tropicália, o disco-manifesto de 1968, o grupo tropicalista baiano fez sua estréia-intervenção que, como na lição de João Gilberto, abriria uma vereda de inventividade & ousadia na MPB dali para frente e que seguiria como um farol de cores psicodélicas, shows incríveis e discos fundamentais iluminando os anos da Ditadura. “Baby”, composição de Caetano, como que anunciava a mulher jovem da contracultura (“Você precisa saber da piscina/ Da margarina/ Da Carolina/ Da gasolina/ Você precisa saber de mim”), numa esquina de uma das três cidades-sedes do tropicalismo (Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo), ouvindo “aquela canção do Roberto”.

Com uma voz afinadíssima, educada e límpida, Gal passava da suavidade bossanovística às distorções das guitarras em segundos. Conseguia imprimir a mesma intensidade aos sambas mais delicados e às popices vanguardistas mais experimentais. O impacto da voz de Gal nos primeiros discos dos anos 1960 a fez fulgurar num cenário já habitado por excelentes cantoras e cantores, mas com um sentido de autoria que, se não era exatamente inédito, passou a ser uma marca dessa geração.

Como Nara Leão e Elis Regina, Gal (e Maria Bethânia, numa trajetória paralela, mas que se encontrava de quando em quando) seguiram as vozes dissonantes do lugar da cantora-mulher, agora tornadas intérpretes-curadoras; conhecedoras curiosas da muita música que se fazia, reveladoras de novos compositores e verdadeiras criadoras de versões definitivas de canções, novas ou velhas.

Nos anos 1970, Gal faria nada menos que sete discos de estúdio mais um duplo e ao vivo que fixam aí este seu lugar de cantora imprescindível – Legal (1970), Índia (1973), Cantar (1974), Gal Canta Caymmi (1976) Caras & Bocas (1977), Água Viva (1978) e Gal Tropical (1979). “Fa-Tal – Gal a Todo Vapor (1971)”, fruto de um longa temporada de shows no Rio e em São Paulo do mesmo nome dirigido por Wally Salomão, além de ser frequentador contumaz de lista de melhores discos da MPB de todos os tempos, envelopa a experiência tropicalista como poucos outros – atravessa a tradição, aponta para o futuro e faz do presente uma aventura.

A turnê com os Doces Bárbaros, com Caetano, Gil e Bethânia, percorreu várias capitais do Brasil ainda sob o signo da Ditadura e, de certa forma, finaliza a experiência contracultural, num grande espetáculo performático e coletivo, com presença forte da cultura e da religião afrodescendente, dos ritmos baianos do litoral e do interior e, claro, do samba. Na década de 1980 e 1990, Gal percorreria uma sólida carreira como grande cantora, gravando canções ou participando de shows e discos com dois gênios da Bossa Nova, João Gilberto e Tom Jobim, e em parcerias com outras vozes gigantes da música brasileira Luiz Melodia, Tim Maia, Milton Nascimento.

Depois de um período de certa reclusão, que também coincidiu com o processo de adoção do seu único filho Gabriel em 2007 e os cuidados dos primeiros anos do menino, Gal voltou com o elogiadíssimo álbum “Recanto” em 2011 e desde então entremeou o lançamento de mais 3 discos (Estratosférica, 2015; A Pele Do Futuro, 2018 e Nenhuma Dor, 2021) com os registros de palco das turnês. Sorte enorme das novas gerações de fãs que puderam testemunhar a força da voz e da presença de palco de Gal, uma das maiores que tivemos.

Dona de uma vida tão linda e intensa, senhora de sua trajetória artística tão enormemente pessoal, Gal Costa se vai deixando um cometa não apenas de canções na sua “voz maviosa, extraordinária” como disse um Gilberto Gil às lágrimas hoje nas redes sociais, mas daqueles momentos plenos de cintilações que só os artistas essenciais, imprescindíveis, são capazes de produzir.

Evoé, ashé, Gal, brilha junto com as fagulhas, pontas de agulhas, com as estrelas de São João no firmamento. A gente segue aqui te procurando e te seguindo para sempre.

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Gal, eternamente Gal.! 😞 Sou de uma geração que a minha adolescência foi em plena ditadura e o que nos inspirava a descobrir e revelar consciências já era a paixão pela cultura, pela música popular brasileira. Nossos protestos foram carregados de canções ativistas…Gal me fez “descobrir-me” , regou minhas posições políticas e feministas, assim como me fez um jardim com meus amores. Para cada momento meu, há uma canção de Gal ilustrando minhas lembranças. Que a sua passagem seja serena, e que o brilho da sua estrela de cinco pontas jamais se apague em nossos corações 💕 🙏🏻😞❤️

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