À medida que aumentam as tensões entre Moscou e a OTAN sobre o aumento de tropas perto de Donbass, na verdade iniciada pela Ucrânia, a posição aparente do Ocidente é que a Rússia não tem direito à autodefesa. E esse é o caso há décadas.
Tendo crescido no centro da América durante os últimos anos da Guerra Fria, eu possuía um medo não muito saudável de uma invasão ou ataque soviético iminente. Bob Dylan capturaria esse tipo de medo e histeria em sua música de 1964 “With God on Our Side” [Com Deus ao nosso lado], que ele roubou dos Clancy Brothers e de Dominic Behan.
A versão atualizada de Dylan de ‘The Patriot Game’ [O jogo patriótico] declarou: “Aprendi a odiar os russos durante toda a minha vida; se vier outra guerra, é contra eles que devemos lutar. Odiá-los e temê-los, fugir e se esconder…” É incrível para mim que, quase 60 anos depois, com a queda da própria URSS nesse ínterim, essas palavras ainda soem verdadeiras no Ocidente hoje.
No entanto, a verdade é que, como descobri mais tarde na vida, são os russos que têm muito mais a temer de nós do que nós deles. E é essa compreensão e, de fato uma empatia pela Rússia, que me motiva agora a desejar que meu país pare com seus movimentos agressivos em direção a esse país antes que seja tarde demais; antes de nos vermos envolvidos em outra grande guerra na Europa.
Do ponto de vista da Rússia, são eles que estão sob constante ameaça do Ocidente, certamente desde a época das Guerras Napoleônicas até o presente. Foi a França que invadiu a Rússia em 1812, resultando na perda de cerca de 200.000 vidas russas. Os russos foram capazes de sobreviver e sair vitoriosos somente incendiando três quartos de Moscou, deixando os franceses perdidos e incapazes de se abastecer.
Em 1941, a Rússia Soviética, abandonada pelo Reino Unido e pelos EUA à sua própria sorte, foi invadida pela Alemanha nazista e sitiada. No final das contas, os soviéticos foram capazes de fazer a Alemanha recuar na grande batalha de Stalingrado, mas a URSS perderia quase 27 milhões de vidas no final da guerra. Enquanto 80 a 90 por cento das baixas alemãs foram sofridas na Frente Oriental nas mãos dos soviéticos e partidários comunistas, o incrível sacrifício da Rússia na Segunda Guerra Mundial foi amplamente esquecido e até mesmo negado no Ocidente, com os EUA e o Reino Unido agora assumindo o crédito pela vitória dos Aliados.
Embora Ernest Hemingway tenha observado – com bastante razão – que “Todo ser humano que ama a liberdade deve ao Exército Vermelho mais do que será capaz de pagar em vida”, essas palavras, e o sentimento por trás delas, foram esquecidos em uma névoa de amnésia coletiva. Incrivelmente, o presidente russo Vladimir Putin nem mesmo foi convidado para a comemoração da libertação de Auschwitz no Dia da Memória do Holocausto – isso apesar do fato de ter sido um regimento russo de Gorky (agora Nizhny Novgorod) que libertou os prisioneiros do campo de extermínio.
As traições e indignidades que a Rússia foi obrigada a suportar são aparentemente intermináveis. Assim, embora os EUA tenham prometido a Mikhail Gorbachev que a OTAN não “se moveria nem uma polegada para o leste” além da Alemanha, se esse país fosse unificado, essa promessa foi violada quase imediatamente. Até agora, a OTAN colocou em sua órbita seis antigos países do Bloco do Leste (República Tcheca, Eslováquia, Polônia, Hungria, Bulgária e Romênia) e três ex-repúblicas soviéticas (Estônia, Letônia e Lituânia).
Deve-se notar que não há tal presença russa ou de aliados russos nas fronteiras dos Estados Unidos, Canadá ou Europa Ocidental. É a Rússia que está sendo cercada pelo bloco militar ocidental até suas fronteiras, e não o contrário – embora alguém possa ser perdoado por pensar o contrário, pela forma como essas questões são cobertas pela grande mídia ocidental.
Enquanto isso, a OTAN tem grandes exercícios militares planejados para serem realizados este ano – com a pandemia ainda grassando, é claro – novamente nas fronteiras da Rússia. Esses jogos de guerra envolverão 28.000 soldados. Mas o Ocidente simplesmente ignorou a oferta da Rússia de reduzir as tensões na Europa, movendo suas tropas para dentro de seu próprio território em troca da OTAN ceder em estacionar tropas perto da fronteira russa.
E agora ouvimos rumores de que a Ucrânia, outra ex-república soviética, e bastante significativa, está sobre a mesa para se tornar membro da OTAN. Isso é, perfeitamente compreensível, visto como uma ameaça pela Rússia. Como é o fato de que, como resultado direto de [conflitos na praça] Maidan em 2014, apoiado pelos EUA, as forças hipernacionalistas e neonazistas detêm considerável domínio em Kiev – no caso deste último, sua influência é desproporcional ao seu apelo eleitoral direto.
Hoje, o governo ucraniano, encorajado pelo apoio acrítico que recebe do Ocidente, está conclamando a OTAN e o Ocidente a apoiá-la contra a Rússia com sanções econômicas crescentes e assistência militar intensificada.
Joe Biden já respondeu aos apelos da Ucrânia com o aumento da “ajuda letal” a Kiev, projetada para aumentar a “interoperabilidade do país com a OTAN”. Além disso, a Casa Branca anunciou no início deste ano que não reconhece a reivindicação da Rússia à Crimeia e que apoia Kiev em sua tentativa de devolver aquela região à Ucrânia. Esta tem sido uma política consistente dos EUA, tanto no governo de Barack Obama quanto de Donald Trump.
Enquanto isso, o Ocidente inveja a Rússia por estacionar tropas em suas fronteiras, dentro de seu próprio território, a fim de monitorar o aumento da luta dentro da Ucrânia entre as forças de Kiev e duas repúblicas autodeclaradas no leste da Ucrânia, predominantemente povoadas por russos étnicos.
É chegada a hora de o Ocidente reconhecer as legítimas preocupações da Rússia com a segurança, aceitar esta oferta para discutir os níveis e posicionamento das tropas e abordar essas discussões com respeito e humildade. O destino do mundo pode muito bem estar em jogo.
Daniel Kovalik ensina Direitos Humanos Internacionais na Escola de Direito da Universidade de Pittsburgh e é o autor do recém-lançado “No More War: How the West Violates International Law by Using “Humanitarian” Intervention to Advance Economic and Strategic Interests”.
Para ler o original em inglês, aqui
Tradução: Juliana Medeiros
4 respostas
Dan Kovalik e os jornalistas livres nos livram de estigmas de anos “o clipe a parte” com seus brilhantes textos/artigos. Não que eu visse a Rússia e a antiga URSS desse jeito mas conseguiram melhorar a minha argumentação sobre o tema…
Eu adorei ter lido esse material. A imprensa ocidental cria guerras, destrói cidades, assassina governantes, evidencia fascistas como salvadores e cria demônios imaginários para justificar o avanço do sistema capitalista em direção ao leste europeu. Próximo à América do Sul, Cuba sofre até hoje o bloqueio econômico.
When I was still a child, in 1963, when Kennedy died, I read a lot of a small magazine SELECTIONS READERS DIGEST disqualifying Japanese, Russians, Arabs and Chinese. Today I know it was pure American xenophobia and an instrument of domination because I didn’t know why the Russians were bad. The idea I had was that the Russians were bloodthirsty, they were red, and my family spoke ill of communists. But, I didn’t know why, I was curious and today I understand geopolitics and I know that the capitalist financial system, instrumentalized by OTAN or NATO and the União Européia, will not settle down until Russia and all those who limit the power of capital are ended. To this day, a tiny country like Cuba suffers from an economic embargo.