“Queimar arquivos, como fez o camarada Rui, ofertar escolas caóticas, como fazem, reiteradamente, os nossos governantes e demitir pessoas que propõem gestões democráticas, como fez a Diretoria de Ensino, são ferramentas eficazes para nos manter ignorantes, pobres e, melhor ainda, uma classe submissa.”
Afro-Kariri-Viking
Tem dias que nosso sangue ferve, né não?
Tava eu, dia desses, pesquisando sobre povos que se estabeleceram no Ceará, quando me deparei com uma pesquisa falando sobre a presença de DNA Viking na população do Cariri, região onde eu nasci.
Fiquei contente, porque Vikings, Bárbaros e Vândalos eram povos que eu gostava de estudar na escola, já que, embora eles fossem descritos nos livros didáticos como violentos, pareciam ter uma postura combativa mais alinhada às minhas perturbações de adolescente.
Só me chateou ter encontrado pouco sobre o que eu realmente procurava: saber de quais povos indígenas e africanos na diáspora minha família descende, pois, apesar da pesquisa apontar a pouca presença negra no nosso DNA cearense, eu não preciso dela pra saber que mãe e papai são afro-indígenas, quando temos a memória de seus pais e avós, como a de Mestre Panca, meu avô ferreiro, falecido em 2004, ou a de Mãe Fulô, minha trisavó mais retinta, nascida antes da abolição da escravatura e que viveu até a década de 1970.
Não, eu não preciso.
Mas eu gostaria sim de ter mais certeza sobre minha ancestralidade, de não apenas deduzir, com base na memória, na cultura e nos traços físicos que compartilho com as pessoas da cidade de Milagres, que minha linhagem é tapuia, insubordinada kariri, e “africana”, mas, de qual povo?
Graças a Rui Barbosa, que mandou queimar os arquivos referentes ao período escravocrata, e à secular política genocida do nosso país, nossa origem afro-diaspórica, distante cinco séculos, no máximo, consegue ser mais nebulosa do que uma suposta ascendência nórdica de 2500 anos atrás.
Faz parte também desse projeto de apagamento de nossa memória e identidade, assim como de manutenção da pirâmide social brasileira, que as escolas deixem de nos ofertar ferramentas de libertação econômica, social e intelectual. E essa questão da educação pública também faz o meu sangue ferver.
Mas o sistema não falha
Em 2008, a escola estadual Dr. Álvaro de Souza Lima, localizada no Jardim São Savério, foi considerada a pior escola da cidade de São Paulo e a segunda pior do estado, num universo de 573 instituições estaduais de ensino médio.
Foi nesse lugar que eu estudei a vida toda e, apesar dos empecilhos e estado geral de abandono, eu consegui inaugurar uma linhagem de estudantes que furaram o bloqueio imposto a pessoas negras e pobres (ou afro-kariri-vikings, como eu) sobre o ingresso em universidades públicas, antes da implementação de cotas.
Nunca escondi que esse fato extraordinário não aconteceu por causa da qualidade da educação recebida na minha casa ou na escola e, nem muito menos, devido a uma inteligência superior ou ao meu esforço individual. Nada disso.
Entrar na USP foi o resultado de um contexto pessoal que envolvia uma família tapuia que, mesmo sem dinheiro pra comprar livros, tinha o gosto por contar mentiras, digo, “estórias”, mais a valentia de um pequeno punhado de professoras apaixonadas, que me despertavam o gosto pelos estudos. Fora isso, teve também a minha tendência ao vício, que me fazia trocar comida por leitura (sim, eu era viciada em ler).
Essas coisas, juntas, carimbaram meu ingresso pra que a Fuvest não pudesse me barrar nesse baile elitista.
Mas, embora o senso comum pense que nosso sistema educacional é falho, porque não ensina apropriadamente, a verdade é que não, ele não vacila – ele é plenamente eficiente em sua meta de nos manter, enquanto classe pobre, ferrada, desamparada e burra.
Uma prova disso é que, no final do ano passado, recebemos a notícia de que o único diretor que, em décadas, conseguiu tratar dignamente a comunidade escolar do Álvaro de Souza Lima, seria demitido, por causa de “questões técnicas”, ou, segundo justificativa da Diretoria de Ensino Centro-Sul, por ter se autoavaliado de forma negativa.
Faz 6 anos que o professor Arnaldo assumiu a direção dessa escola. Ele enfrentou um ambiente hostil e anti pedagógico, e deu início a uma reviravolta, com investimento no diálogo com estudantes, familiares e lideranças comunitárias, instaurando processos democráticos e fortalecendo a autoestima da comunidade de Savério City.
Arnaldo, posso falar sem medo porque o conheço, é uma pessoa justa e sensata. Se ele se avaliou mal em algum aspecto de seu trabalho é, certamente, porque enxerga espaços para melhoria e não porque não seja, ou não se sinta, competente.
Mas, como o sistema não falha, essa brecha foi suficiente para afastá-lo das suas atividades e isso reforça o fato de que não, o sistema não falha – ele age direito e descaradamente contra nós. Porque não é de interesse das elites que tenhamos uma educação libertadora, nem que saibamos de nossas origens (não de todas).
Queimar arquivos, como fez o camarada Rui, ofertar escolas caóticas, como fazem, reiteradamente, os nossos governantes e demitir pessoas que propõem gestões democráticas, como fez a Diretoria de Ensino, são ferramentas eficazes para nos manter ignorantes, pobres e, melhor ainda, uma classe submissa.
Ai desse meu lombo afro-kariri-viking.
Deve ser por causa dele que meu sangue ferve.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @doutoradinha
LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:
São Paulo é uma cidade-palafita
4 respostas
Gostei do conteúdo. Obrigado.
Tudo pela educação.
Sim. Isso mesmo. Obrigada <3
Primeira vez que leio a crônica da Dinha. Adorei. Virei fã e leitora.
Obrigada <3