Eu e minha amiga, codinome “Falta de Tempo”, andamos olhando alguns textos publicados aqui nesta coluna – que deveria ser semanal, ceis sabe… só que não temos nem tempo nem dinheiro pra isso. Mas, entretanto, todavia, apesar de tudo, ainda assim… quem segura essa quebrada?
Ninguém segura não, porque eu, valei-me, meu Padim Padim Ciço!, fiquei bem alegre em saber que juntei textos suficientes pra organizar um livro novo… ele deve se chamar “Faz-me-rir Tutambém e outras histórias do Café com Muriçoca”! Eu gosto de nomes longos.
Rá! Escrever vale a pena, mesmo com essa alminha minúscula que eu tenho.
Enquanto isso, acho que vou usar este espaço pra pagar umas dívidas que tenho, resenhando livros, principalmente da literatura periférica.
Se liga… eu pago minhas dívidas e quem ganha são vocês: vão conhecer o que tem de melhor nas literaturas de quebrada: de zines a editoras.
Hoje começo pagando promessas que fiz a Wesley e Nina Barbosa – e agora que escrevi notei que não são parentes, mas têm o mesmo sobrenome (provável herança de nosso país escravocrata), além de uma incontestável veia literária, bonita como só a gente das quebradas tem.
Começo com Nina, que conheci primeiro e, portanto, tenho uma dívida mais antigona.
O pé que ficou naquela estação
O livro que começou como um blog, Clandestinamente, passou por mim, antes de ganhar forma via Gráfica e Editora Heliópolis. PC Marciano, o editor, me pediu ajuda pra publicar mulheres negras e inéditas, de preferência das periferias. Conheço muitas, não nego. Essa parte da população tem o desprivilégio de ser ainda mais invisibilizada, ainda mais violada em seus direitos do que todo o resto da população brasileira, que as tem como base de sua pirâmide social. Indiquei Nina.
Nos conhecemos em 2014, numa oficina de leitura e escrita criativa no Centro de Defesa e Convivência de Mulheres – CDCM – MulherAção. A atividade reunia mulheres que haviam sofrido violência e/ou gostavam de literatura. Nina esteve entre elas.
Um dia, me contou que, certa vez, havia mostrado textos autorais a uma professora e a resposta tinha sido bem desanimadora: “muito biográficos”… ela teria dito…
Eu consolei minha futura escritora, dizendo que essa é a resposta padrão dada à maioria das mulheres, quando expõem seus textos, e que, na minha sincera opinião, duvidava que fossem ruins, porque ela gostava de ler, de escrever, e tinha um trunfo: era mulher, negra, pobre e periférica – logo, tinha realmente algo a dizer ao mundo.
Vários anos se passaram. Nos distanciamos algumas vezes, mas passei a lhe cobrar os poemas – fui vendo alguns no seu blog que só confirmavam minhas suspeitas sobre essa irmãzinha… Até que veio o pedido do PC e ela, finalmente, tomou coragem e me mandou todos os textos.
Meu trabalho, a partir daí, foi ler, separar sua melhor faceta e propor uma mínima organização. Foi fácil. Os poemas eram bons. Eu deveria ter escrito um prefácio, na ocasião, mas o tempo, nosso melhor inimigo, não colaborou.
Se eu tivesse escrito, falaria de sua dicção caroliniana, da influência do Rap, do feminismo negro e periférico ressoando na urgência da vida, da morte, do cuidado com as crias – como ela própria, vítimas preferenciais do sistema. Nina me fez feliz com seus poemas. Me faz, a cada releitura. Por isso decidi compartilhar essa felicidade com vocês, via pagamento dessa promessa.
Viela ensanguentada
Wesley e eu nos conhecemos há pouquíssimo tempo. Nos vimos em um ou dois eventos de literatura periférica, mas foi na FELIZS – Feira Literária da Zona Sul, realizada pelo querido Sarau do Binho, que trocamos munição.
A gente da Me Parió Revolução, minha primeira editora, estava posicionada em uma mesa atrás da do Wesley, e o que a gente via era um vai e vem meio frenético de gente em torno do rapaz, atrás dos livros dele.
“Barbosa” é uma figura negra, de cabelo black e aspecto sereno. Não é pop, não faz pose de artista. Mas contou que vendeu, sozinho, em poucos meses, milhares de exemplares de seus livros. Sendo assim, eu quis ler pra descobrir porque, pra além do seu esforço de vendedor, esse rapaz é um fenômeno da literatura.
Vamos ao que descobri:
Viela ensanguentada tem enredo linear que cresce junto com a idade do narrador-personagem, Mariano, um menino que se esgueira pelas vielas ora em busca de recicláveis, ora em busca de livros, ora só tentando se manter literalmente vivo, enquanto pessoas à sua volta vão sendo assassinadas, naquela série de crimes cuja investigação nunca é feita, pois as vítimas são os “matáveis” de costume, mas que acendem alertas para moradores e moradoras, quando acontecem nas quebradas.
Como o sujeito poético de Nina, a dicção do narrador-personagem também é caroliniana. Aliás, Mariano pode ser lido como o masculino de Maria, segundo nome de Carolina. Ele é um menino que gosta de ler, que olha a favela e fala sobre ela como se não morasse completamente ali, como um peixe olharia para o próprio aquário. Além disso, ao longo de parte da história, ele se dedica ao mesmo meio de subsistência a que Carolina se entregou, e avança para as bibliotecas como se elas fossem salvar sua vida. O título, Viela ensanguentada, não faz jus à história, em minha opinião – apesar de atrair gente sensacionalista. Mas a obra como um todo, se vocês querem um veredicto, sua atualização de Carolina na voz de um menino, a esperança por baixo da dureza do enredo e uma linguagem que é tipicamente adolescente, além de assumidamente negra e periférica, trazem ar puríssimo pra Literatura Brasileira. Como Nina, Wesley tem o mundo pela frente.
Bora ler essa dupla! Eles valem muitíssimo a pena e, na verdade, nem precisam de mim. Os textos falam por si:
“Eu via a molecada empinando pipa, correndo pra lá e pra cá, malvestidas, famintas e descalças. Eram alegres porque não sabiam que eram tristes. Não entendiam a miséria e a própria tristeza porque eram crianças ingênuas, mas a tristeza estava lá, germinando dentro delas, como a flor podre e sem perfume daquela realidade.
Ao passar comigo na rua de baixo, onde acontecera uma chacina alguns anos atrás, vó Isabel disse:
– Tudo com espírito ruim no corpo!
E continuou:
– Disseram que foi a polícia que matou aqueles meninos, mas foram os próprios traficantes que tiraram a vida deles. Na época, a viela ficou toda ensanguentada. Até hoje dá pra ver as marcas de tiros na parede.
– Também morreram crianças? – perguntei.
– Os meninos deviam ter a sua idade, Mariano. Desviados do caminho do Senhor, caíram em desgraça. Agora eles estão queimando no lago eterno do fogo, e satanás está mandando seus demônios atormentar a alma deles por toda a eternidade.
– Deus não fez nada pra salvar aquelas crianças?”
(Barbosa, Wesley. Viela Ensanguentada. São Paulo: Editora Ficções, 2022, p.20)
Treinee
Aprendo a jogar
com os sonhos
e com a sorte.
Quando não cumpro
sina
estou a driblar a morte.
(BARBOSA, Nina. O pé que ficou naquela estação. São Paulo: Gráfica e Editora Heliópolis, 2022, p.15)
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006), Maria do Povo (2019) e Horas, minutas y segundas (2022), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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São Paulo é uma cidade-palafita
Olha nos olhos e enxerga o bebê