Da série: Respondendo a perguntas “Qual seu livro favorito?”
Por: Dinha
O que dói não é Geni, Carolina, Noémia ou Conceição, pretinhas, vivenciando o racismo nosso de cada dia… isso dói também… mas não é só isso (…) O que me faz sofrer é menos palpável. São as palavras ganhando ritmo, algo por trás delas que se mostra pouco, mas eu sinto: está ali, fantasma, idioma, sina batendo no corpo e me desmontando inteira. Me fazendo chorar em público. Pic relacionamento abusivo.
Todo mundo que lê, um dia, se depara com a pergunta: qual seu livro favorito?
A pergunta pode vir de dentro ou de fora. Da TV ou do feed de notícias.
No caso, o bicho pega pra mim, pois esperam que, como escritora, eu tenha ao menos uma obra – uma que mudou minha vida, minha identidade, ou que sirva de oráculo pra eu prever o futuro lendo trechos feito provérbios. Mas eu não tenho isso.
Não tenho livro de cabeceira, bíblia sagrada ou profana, nem uma única obra pra onde eu volte sempre que a vida me atropela.
Eu tenho crushes literários: João Cabral, Geni Guimarães, Craveirinha, Carolina, Drummond, Florbela Espanca, Solano Trindade, Conceição Evaristo, Pessoa, Noémia de Sousa, Cora Coralina e mais as amizades coloridas – que são muitas e vou provocar ciúmes se citar só algumas aqui.
O que têm em comum esses meus crushes é me fazerem passar vergonha em público. Que as deusas me ignorem, mas é pic relacionamento abusivo, liga?
Não faz muito tempo, escrevi sobre a leitura de Leite do Peito e de Insubmissas lágrimas de mulheres, e sobre como chorei feito neném, relendo aquelas vozes femininas, doloridas, sagazes, resistentes, como o nó na garganta do nosso dia a dia. Escrevi sobre como as pessoas vinham me socorrer, pensando que minha mãe tinha morrido, e sobre como eu, constrangida, tentava explicar que o livro…
As palavras não saíam e o choro desabalado deixava as pessoas ainda mais confusas, quando eu sacudia na cara delas a fonte das minhas lágrimas. Nenhuma delas de crocodilo. Infelizmente.
Mas, o fato é que eu não tenho um livro favorito. Não tenho.
Tenho esses, que me fazem pagar veneno. Que me puxam como ímã – e meu coração molenga, preso na grade do peito, obedece e se prende a eles. Sofre umas dores inexplicáveis.
O que dói não é Geni, Carolina, Noémia ou Conceição, pretinhas, vivenciando o racismo nosso de cada dia… isso dói também… mas não é só isso.
Também não é o sertão, a solidão, os amores, desamores, o comum do capitalismo que, fora da arte, me faz querer desistir da vida…
O que me faz sofrer é menos palpável. São as palavras ganhando ritmo, algo por trás delas que se mostra pouco, mas eu sinto: está ali, fantasma, idioma, sina batendo no corpo e me desmontando inteira. Me fazendo chorar em público. Pic relacionamento abusivo.
Eu não tenho um livro favorito.
Eu tenho a literatura me segurando firme, beijando de língua e o texto terminando com minha alma desmontada e todos os átomos do meu corpo reclamando que querem mais e de novo e de novo.
Admiro quem tem livro favorito. Tem menos espaço pra se permitir vergonha em público.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Diário do fim do mundo (2019) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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