A sessão da CPI da Covid-19 desta quinta-feira (1/7) caiu na casca de banana de uma denúncia oportuníssima, publicada no online da Folha na quarta. Trata-se da acusação feita por Luiz Paulo Dominguetti contra o tenente-coronel Marcelo Blanco, assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, e contra Roberto Ferreira Dias, diretor de logística, exonerado hoje do cargo.
Logo no início da sua exposição dos fatos, entretanto, ficou claríssimo o propósito da “denúncia” de Dominguetti, um cabo da PM de Minas Gerais que apoiou entusiasticamente o presidente Jair Bolsonaro até recentemente, inclusive postando mensagens em suas redes sociais (ele apagou todas antes de seu depoimento à CPI).
O objetivo principal era desacreditar o deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor Luis Ricardo Miranda, que na CPI relataram as pressões recebidas para que fosse aprovada a toque de caixa e de qualquer jeito a compra de milhões de doses da vacina indiana Covaxin, ainda não homologada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A compra, feita de maneira totalmente atípica, previa o pagamento antecipado de US$ 45 milhões, ou seja, antes mesmo da entrega das doses, segundo reportagem da “Folha de S.Paulo”, em um total previsto em contrato de R$ 1,6 bilhão.
Bolsonaro entrou no rolo
Bolsonaro entrou no rolo quando, comunicado pelo deputado Luis Miranda do absurdo que cercava a aquisição da vacina indiana, recebeu como resposta do presidente a garantia de que ele solicitaria à Polícia Federal a investigação da compra. Mas Bolsonaro não fez nada disso, o que caracterizaria pelo menos um crime: o de prevaricação, que ocorre quando um servidor público “retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
Para sustentar sua denúncia, os irmãos Miranda levaram à CPI documentos, inclusive as notas fiscais (invoices) irregulares, exigências de pagamento antecipado das vacinas, e diferenças registradas sobre as quantidades compradas. O jornal “O Estado de S. Paulo” relatou ainda que a CPI descobriu um telegrama sigiloso enviado em agosto de 2020 ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi, em que era informado que a Covaxin tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose. Em fevereiro, contudo, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade, o que transformou a Covaxin, mesmo sem registro da Anvisa, na mais cara das vacinas compradas até agora pelo Brasil (AstraZeneca, Pfizer, Coronavac, Janssen, além da própria Covaxin).
As denúncias dos irmãos Miranda eram tão graves que levaram ao cancelamento pelo Brasil do contrato firmado com a fabricante indiana antes mesmo que ela entregasse um só frasco de imunizante.
O governo Bolsonaro viu-se diante do grande desafio de desmoralizar o depoimento dos irmãos. E foi para isso que o cabo Dominguetti apresentou-se, fazendo uma denúncia espetacular: Roberto Ferreira Dias, Marcelo Blanco e outro militar, ligados à área de logística do Ministério da Saúde, teriam pedido a ele, que na ocasião representava a empresa americana Davati Medical Supply, um dólar a mais no preço de cada dose da vacina AstraZeneca, a título de propina, em um contrato que previa a compra de 400 milhões de doses. Dava um rio de dinheiro só em roubalheira: 2 bilhões de reais.
Dominguetti e o áudio montado
Impressionados com a denúncia, os senadores da CPI convocaram Dominguetti para depor na CPI de um dia para o outro. E a primeira coisa que o depoente fez foi exibir uma gravação, em que se ouve o deputado federal Luis Miranda falando sobre a venda de insumos médicos, como se fosse sobre venda de vacinas. Ocorre que a gravação não se refere à venda de vacinas, mas sim de luvas, e nem mesmo contém registro de nenhuma ilegalidade. O que Luis Miranda solicita a um vendedor de insumos é um vídeo que prove a existência do produto em quantidade tal que seja possível atender à demanda de um possível comprador (não mencionado no áudio).
O deputado Luis Miranda, presente naquele momento na CPI, imediatamente reagiu, acusando o áudio exibido de estar editado de modo a favorecer a versão de que ele teria denunciado a compra da Covaxin como uma retaliação por não ter conseguido, ele próprio, vender as vacinas que teria. No final da sessão da CPI, o presidente Omar Aziz fez questão de apresentar o resultado da perícia feita pela Polícia Federal no áudio apresentado por Dominguetti: trata-se de um áudio editado, cortado, como garantiu Luis Miranda.
Indagado sobre a gravação, Dominguetti disse tê-la recebido do representante oficial da Davati Medical Supply no Brasil, o empresário Cristiano Alberto Carvalho, no dia 25 de junho, logo depois de encerrada a sessão da CPI que ouviu os irmãos Miranda, que acusaram as pressões no Ministério da Saúde para viabilizar a compra da Covaxin e a inação de Jair Bolsonaro depois de comunicado das falcatruas.
Estava claro que Dominguetti tinha sido “plantado” na CPI para tirar do foco de Bolsonaro. Mas o estrago estava feito. Os senadores se atrapalharam todos. Esqueceram a denúncia de Luis Miranda e ficaram interrogando Dominguetti a respeito da propina de 1 dólar por dose de vacina, de que o depoente não dispunha nenhuma prova. Repita-se: nenhuma.
Ocorre que a AstraZeneca não trabalha com intermediários, como seria a Davati Medical Supply, vendendo diretamente suas vacinas para governos. Outro ponto é que a Davati Medical Supply também não tem a vacina AstraZeneca em seu portfolio de produtos. A única coisa que se confirmou, de todo o depoimento de Dominguetti é que, de fato, ele manteve um encontro no dia 25 de fevereiro, no restaurante Vasto, em Brasília, com Roberto Ferreira Dias e com Marcelo Blanco. Ponto final.
A intervenção do filho Flavio Bolsonaro, na CPI, desmontando peça por peça da “denúncia” de Dominguetti, foi a prova de que o depoente de hoje fez muito bem o seu serviço. A Famiglia Bolsonaro tem agora um farto material, extraído da própria CPI, mostrando que há acusações gravíssimas e que, no entanto, foram lançadas sem que houvesse uma mísera prova, que essas denúncias envolveram um jornal considerado “inimigo” por Bolsonaro (a “Folha de S.Paulo”) e os senadores oposicionistas (que convocaram imediatamente Dominguetti). Bolsonaro pode, enfim, posar de vítima!
Agora, os senadores da CPI terão de retomar o foco. E o foco é a atuação de Bolsonaro e do alto comando do Ministério da Saúde, na compra da vacina indiana, a Covaxin. O resto é bobagem. E que esses mesmos senadores tomem tento: o jogo é bruto, ainda mais quando o adversário é um miliciano especialista em fake news, como é Bolsonaro.