Quando a demissão não apaga o (mal)dito

Por Toni D’Agostinho

Doutor em Análise de Discurso pela Unicamp traz um panorama sobre a demissão de Roberto Alvim após discurso nazista

Por Fabiano Ormaneze*

 

Desde a campanha que o elegeu, o discurso bolsonarista está cheio de signos que remetem ao nazismo e a outros regimes totalitários. A valorização exacerbada do nacionalismo e de certos padrões de comportamento e pensamento, que seriam superiores a todos os outros, além do uso do nome de Deus para se reafirmar, são provas contundentes disso. Não são “coincidências retóricas”, como se tentou defender. São regularidades que, desde a década de 1930, acompanham os discursos nazistas e ultranacionalistas, aqui e acolá. Bolsonaro, ao comunicar a demissão de Alvim, afirmou que se tratava de um pronunciamento “infeliz”. Mas o que é infeliz nessa situação? Infeliz teria sido o que foi dito ou a forma como foi dito e que circulou, dando nome e sobrenome à origem daquele dizer? Infeliz foi ter usado um texto claramente ligado a um nome próprio e, portanto, a uma biografia? E se a fala tivesse o mesmo conteúdo, mas circulasse sem menção clara ao nazismo? Seria nazista tanto quanto, mas não teria sido nomeada. Seria nazista, mas disfarçada no discurso de alguém que se pretende colocar como preocupado com a nação e o futuro.

Outras tantas falas ligadas ao governo têm as mesmas características, do ponto de vista ideológico, mas não circulam associadas a um nome e, assim, ficam no plano das ideias, mais facilmente disfarçadas e camufladas quanto a suas filiações. Quando o biográfico passa a estar associado a uma fala, ou seja, quando a história de vida de alguém sanguinário como Goebbels fica explícita no dizer, a situação torna-se “infeliz”. Goebbels também disse que a última profissão que alguém “com um pingo de decência” deveria seguir era o jornalismo. Essa parece ecoar nos ataques que o presidente faz, regularmente, a jornalistas e à imprensa. Ele (Goebbels ou Bolsonaro?, a ambiguidade é proposital…) também impediu a publicação de materiais e controlou o cinema, além de inventar inimigos, como o “comunismo” e deturpar informações. A ideologia nazista corre fluente, fazendo apoiadores. Como diz o filósofo Michel Pêcheux (1938-1983), nenhum dizer começa no sujeito que o enuncia. “Algo” fala antes e, assim, continuará produzindo sentidos.

A demissão não apaga nem enfraquece o maldito, tampouco o mal-dito. Na verdade, a observação dos comentários de seguidores do presidente nas redes sociais mostra exatamente o contrário. Alguns defendem até que Alvim merecia ser perdoado, que é injusto o que lhe acontecera. Outros argumentam que o presidente fez o correto: ao menor deslize, cortou quem atrapalha seus planos. Há ainda aqueles que exigem que a “assessoria” seja punida, afinal, é culpa dela, esse corpo sem forma, que parece desencarnado, sem nomes próprios que o caracterizem. A culpa é sempre do “sistema”, da “assessoria”, até do “Google”, desastrado oráculo que não indica a origem das falas, nem o que podem causar… Se a fala de Alvim foi infeliz, pelo dito ou pelo que deixou explícito, a demissão é tida como feliz, porque volta a silenciar o que é melhor que não seja visto, nem dito, tampouco escancarado, embora circule naturalmente, como o sangue que corre nas veias sem ser visível.

retrato nazista: Fotograma do filme "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, 1935
Fotograma do filme “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, 1935

As falas que não recebem uma atribuição direta ao nome de Goebbels ou a Hitler, que não são paráfrases, passam despercebidas pela maioria. Tornam-se elogiosas e repetidas, em um país que ainda precisa reconhecer que democracia não é sinônimo de nacionalismo, patriotismo ou conservadorismo. Dessa forma, o que é dito fica parecendo original, nascido na salvação que o discurso bolsonarista representa para seus seguidores.

A dificuldade de conceber os dizeres como não originários naquele que enuncia está no fato de que, no percurso da história, os sentidos são apropriados como naturais e, por isso, constituem-se como processos ideológicos. Mas o sujeito só consegue dizer aquilo que pode formular do lugar em que está, das relações que o constituem. Alvim afirmou, em nota, que até mesmo os mais sanguinários podem ter uma ou outra frase corretas. O que ele parece não saber é que aquilo que o sujeito diz tem uma origem muito mais longínqua do que a alcançada pela consciência e que cada fala só faz sentido a partir da rede que estabelece com tantas outras, ditas ou esquecidas, retomadas ou silenciadas.

A demissão de Alvim não apaga o (mal)dito, porque ele continua ressoando em tantas outras falas. Nesse exato momento em que escrevo este texto num café, na mesa ao lado, ouço alguém dizer: “É um absurdo achar que uma pessoa, como Goebbels, que morreu há quase 80 anos, possa estar influenciando hoje. Só mesmo a esquerda para pensar isso”. A demissão de Alvim não apaga o (mal)dito, porque ele está tão cristalizado que se perde a origem. Ela não apaga o discurso sanguinário, porque ideologia não se demite. A ideologia só pode ser, como lembra mais uma vez Pêcheux, o lugar e o meio para a dominação.

*Jornalista. Doutor em Análise de Discurso pela Unicamp. Professor e pesquisador do Centro Universitário UniMetrocamp, Campinas-SP.

VEJA TAMBÉM: Secretário da cultura de Bolsonaro copia Goebbels em discurso nazista

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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