Memorial Território Livre.
Uma cruz – uma marcação no espaço, um gesto do homem que delimita um ponto e instaura uma conquista ali – colonial ou moderna – Brasil ou Brasília.
Um semicírculo – uma conjunção de pontos formando uma rede de conexão, uma formação que se constrói coletivamente – dos povos originários ou das comunidades periféricas – brasil ou brasília.
O gesto do homem que determina também é o gesto que acarreta uma mudança – destruição e construção – que se alternam e fundam nossa noção de sociedade – culta, histórica, progressista: a ideia de algo que vem depois de outro se dá rumo à uma evolução, se dá rumo à utopia. Mas não era o inverso? A utopia não era a mais pura construção coletiva?
A Universidade de Brasília, fundada no início dos anos 1960, era uma das formas possíveis dessa utopia – um direcionamento ao exercício humano de pensamento e crítica livre, de formação e compartilhamento de conhecimento. Sua edificação foi marcada também pelo gesto humano no mapa assim como foi com a nova cidade de Brasília: dois eixos se estendendo pela paisagem, formando um corredor central com ilhas de vegetação. Mas a almejada evolução dos anos subsequentes apresentou-se pelo avesso – um longo período de terror, com a privação sistemática de corpos, mentes e da vida social – a repressão da ditadura militar foi sentida em toda sua intensidade por alunos, professores, funcionários.
Esse projeto trata sobre isso: se a realidade distópica nos insere em uma confluência de novos procedimentos de vigilância e detrimento do valor da vida humana, ainda temos esses nossos corpos, passíveis de usufruir de um abarcamento físico do mundo, do outro, da nossa realidade. O memorial proposto aqui é um acolhimento a esse corpo – seja alongado no concavo escavado na terra e recoberto por grama, seja na pequena colina que abriga o mastro de uma bandeira – as bandeiras de hoje, a bandeira que cada um pode hastear – , seja no banco em formato de semicírculo construído de concreto. O corpo que se junta a outro e a outros para debater ideias e planos de construção de outras realidades. O corpo que lutou nos anos de chumbo – sob tortura e sob o espectro ultimo da morte, de seu fim – aqui se guarda sua lembrança escrita no cimento fresco por quem foi testemunho da história e por quem a está formando hoje: faz-se um convite então à este momento de comunhão, de registro na pedra da dor do passado e do comprometimento da Universidade como de fato um TERRITÓRIO LIVRE.
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Minibio
Erica Ferrari é artista visual e pesquisadora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP) sob orientação da Prof. Dra. Giselle Beiguelman. Mestre em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA USP). Pesquisadora associada ao LabOUTROS da FAU USP. Colaboradora do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Nos últimos anos produziu objetos e instalações a partir de pesquisa em torno das relações entre espaço urbano, história e arquitetura.
Entre as exposições das quais participou estão as individuais “Estudo para monumento” (2017), na Funarte, em São Paulo, e “Has always been dystopia” (2019), na XPO Gallery, em Enschede, Holanda; e as coletivas “InterAKTION – 25 years of the German Reunification / 30 years of the end of the Dictatorship in Brazil’, no Sacrow Schloss, em Berlin, Alemanha, “32º Bienal de Arte” (2017), no International Centre of Graphic Arts, em Liubliana, Eslovênia, e “Novas Efervescências”(2019), no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo.
Foi artista residente no Sculpture Space em Utica (Nova York), no Pivô (São Paulo), no GlogauAIR (Berlim) e no AREHolland (Enschede, Holanda). Dentre os prêmios, recebeu o “Prêmio FUNARTE de Arte Contemporânea” (2015), do Ministério da Cultura e a “Bolsa CAPES de Pesquisa” (2018), do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA USP. Suas obras integram acervos como do Museu de Arte Pedro Manuel-Gismondi (MARP), em Ribeirão Preto, São Paulo, e do Museu Nacional da República, de Brasília, Distrito Federal.
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Para conhecer mais o trabalho do artista
https://www.instagram.com/ericaferrari/
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, essenciais, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente