Paralisia do sono

Bem-vindos e bem-vindas ao “Café com muriçoca” - espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. Em “Paralisia do sono”, Dinha nos conta um episódio de terror noturno e sutilmente pondera sobre nossas atitudes diurnas.
Paralisia do sono
Composição com desenho de Dinha
Almas perdidas navegam o rio, o canal
Eternamente navegam o rio vertical
Alessandra já morreu
Mas precisa acreditar
São três horas da manhã
Vê o brilho do farol de Alexandre, o Grande.
O Canal - Elza Soares

E nesses tempos de fome, de guerras, de falsos messias e feminicidas a postos, meu subconsciente não quer que eu durma no ponto. 

De sexta pra sábado eu dormi e acordei diversas vezes com paralisia do sono. Na verdade, era uma mistura de pesadelo que, em certo momento, virava paralisia do sono. Foi assim: primeiro eu fechava os olhos e uma sensação esquisita me avisava que, Dinha, você tá dormindo. Daí eu sentia falta de ar, tentava acordar e não conseguia. Quando enfim dava certo, não conseguia me mexer, e a dificuldade pra respirar ficava monstra. Agonia total, na parada…

Essa não foi minha primeira experiência com esse tipo de terror, mas desta vez foi pior, porque eu me sentia asfixiada, paralisada e com a sensação de que estava morrendo por enforcamento.

Não sei se você manja como é esse bang de paralisia do sono, mas a gente sente como se fosse um pesadelo: a gente tenta falar, se mexer, pedir ajuda, e nosso corpo não responde.

Nessa noite, pra piorar, eu tinha ido dormir pensando em dois homens que, soube, suicidaram-se. Um deles eu cheguei a ver. Ele estava pendurado em um galho de árvore, no mato, na divisa entre a Vila Caraguatá, aqui no Parque Brisa, e a Vila Livieiro. Eu era criança e ouvi os boatos de que talvez não tivesse sido suicídio, mas um assassinato, pois os pés dele estavam perto demais do chão e algo não estava muito azul nas feições do morto.

Por que cargas d’água fui ver um cadáver?

O outro falecido é bem mais recente. Não o vi, não o conheci, mas era vizinho de uma pessoa querida e próxima, e ela ficou triste e impressionada ao saber da tragédia. Como resultado, ela tem dormido pouco e fica imaginando que, se abrir os olhos, de repente, o vizinho pode aparecer mortinho, bem na frente dela.

De ouvir ela contar, acho que o seu medo, de algum modo, passou pra mim e aí, na noite de sexta-feira, eu senti a sensação da morte desses dois homens. Enquanto tentava dormir, senti o desespero deles, tentando fazer chegar ar aos pulmões interceptados por cordas, e o meu terror me fez acender a luz, como quando eu era pequena. 

Nessa noite eu senti muita falta de ar enquanto sonhava e também depois, enquanto tentava livrar meu corpo da paralisia do sono.

Cientistas explicam essa paralisia como algo biológico, tipo um delay, quando seu cérebro desperta, mas a química do sono – aquela que impede que a gente se mexa demais enquanto dorme e dê socos em quem está ao nosso lado – essa química, ela ainda está na nossa corrente sanguínea. A incapacidade de se mexer acontece quando nosso corpo pensa que dorme, mas o cérebro está vivíssimo.

O problema, o que mais me deixou incomodada, foi sentir que, além da incapacidade de respirar, parecia que mais alguém estava comigo ali enquanto eu dormia, enquanto eu tentava acordar e durante a paralisia.

Na falta de novos instrumentos para lidar com medos antigos, devo ter rezado umas vinte mil ave-marias e pais-nossos-que-estás-no-céu, afinal, se alguém sofre a ponto de vir me fazer sofrer também, o mínimo que posso fazer é desejar que a angústia – mútua – termine. As orações, cantos e mantras têm esse poder – independente da religião, né não?

Dos espíritos não senti tanto medo, mas não respirar, vocês sabem… mata qualquer uma…

Minha terapeuta acredita que os espíritos existem, mas que quando vemos fantasmas, quase sempre eles são só nossos medos tomando as formas possíveis, de acordo com nossa cultura e ideologias. E nesses tempos de fome, de guerras, de falsos messias e feminicidas a postos, meu subconsciente não quer que eu durma no ponto. Ele me põe alerta até durante o sono.

Deve ser por isso que quase sempre eu sonho já sabendo que estou sonhando e que, de vez em quando, acordo presa ao meu corpo – e com o infeliz paralisado. Deve ser pra me lembrar de que há batalhas a serem travadas e que vacilar ainda não é uma opção.

Enquanto isso, o relógio avançava para as três da manhã. A vizinhança brigava como se ainda fossem sete horas da noite, e eu, vencida, tomava um calmante, ponderando sobre a vida, a morte e as paralisias que nos impedem de fazer o que é certo de dia, de noite, acordada e dormindo.

Que os homens e mulheres que sofrem descansem. 

Quanto aos senhores das guerras, aos falsos messias, aos machinhos toscos, protótipos de feminicidas, eles que se cuidem.

Tô cansada, mas não tô de tôca.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. 
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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