O Rei está morto. Viva o Rei!

Pelé decidiu partir para a glória eterna. O garoto que saiu da Vila Belmiro para encantar o mundo aos 17 anos, morreu em 29 de dezembro de 2022 após travar uma longa batalha contra um câncer.
Rei Pelé

Pelé decidiu partir para a glória eterna. O garoto que saiu da Vila Belmiro para encantar o mundo aos 17 anos, morreu neste 29 de dezembro de 2022 após travar uma longa batalha contra um câncer.


Muito teria a falar sobre sua Majestade.  Garoto,  acompanhei com a molecada da Vila Maria, bairro da zona norte de SP, a conquista do tricampeonato mundial pelo Brasil. Foi a Copa de Pelé. 
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Em plena ditadura militar, eu não sabendo de nada (a não ser que ficava irritado de todo dia ter que cantar o Hino Nacional), vibrava a cada jogada daquela seleção fantástica de 1970. Tinha então 11 anos e um time de botão onde Pelé sempre reinou.
Lembro que quando qualquer criança se machucava, era comum as mães acalmarem seus filhos ensanguentados ao ralar joelhos, cotovelos e testas com a frase mágica: “Goool do Pelé” (isso depois de passar em nossos machucados um remédio que ardia muito, o famoso merthiolate, hoje apenas um líquido que não nos reporta à infância).
Vão escrever textos e textos sobre Pelé por esses dias. Jornais, rádios, TVs, redes sociais irão falar até cansarem sobre o maior jogador de futebol de todos os tempos. O mundo inteiro fará reverência à Sua Majestade.


Para quem não sabe, quem colocou na cabeça de Pelé a coroa de Rei foi o escritor Nelson Rodrigues. A três meses da Copa de 1958, a primeira que conquistamos, escreveu uma crônica profética em sua coluna na Manchete Esportiva, publicada no dia 8 de março. Foi após assistir um reles América x Santos que o mestre das penas imortalizou o craque camisa 10. Não existe melhor jeito de homenagear Pelé do que reproduzir a crônica. Se o Rei está morto, viva o Rei!

A Realeza de Pelé, por Nelson Rodrigues

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo.


Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

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