Fabio Faversani e Marcelo Santos de Abreu, professores do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto
O governo de São Paulo chegou a anunciar que não ia se integrar ao Programa Nacional do Livro Didático, que vem sendo aperfeiçoado ao longo dos anos com um processo de avaliação que se dá em dois níveis: um deles, Federal, por uma comissão de especialistas; o outro, local, por meio da escolha do livro pelas pessoas que efetivamente trabalharão com ele em sala de aula junto com os estudantes. No lugar disso, elaboraria um material próprio que será acessado pelos estudantes em formato digital.
Além disso, as aulas seriam dadas com base em slides fornecidos pela Secretária de Educação, produzidos de forma centralizada e sem relação com cada cotidiano escolar específico. Seriam os famosos slides lindos, cheios de conteúdo, mas sem qualquer significação nas relações estabelecidas na sala de aula e sem uma ancoragem nos conhecimentos prévios que ali circulam, marcados por suas especificidades idiossincráticas e das comunidades que abrigam cada uma das escolas.
Mas, frente à reação unânime quanto ao erro de abolir completamente o uso de material impresso, o secretário de Educação anunciou um recuo (para o lado) no que se refere à produção e distribuição de material impresso, mas não desistiu da ideia de ter um material único (“adequado ao currículo paulista”) nem de seguir com um conjunto de medidas que tem o caráter claro de desprestigiar e esvaziar o trabalho docente em sala de aula, sobretudo no que se refere à autonomia. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/08/07/apos-defender-material-100percent-digital-secretario-diz-que-governo-nao-aderiu-ao-pnld-porque-livros-nao-podem-ser-rabiscados-por-alunos.ghtml
É mais um exemplo de perspectiva do atraso com gostinho de separatismo (São Paulo seria diferente do resto do Brasil, e pior, de novo!). O primeiro erro com tempero de modernidade do atraso é ver a digitalização da educação como um bem em si. Os estudos têm mostrado o contrário. No geral, a digitalização por si mesmo, não apenas não melhora, como piora o desempenho. Sem uma relação com projetos pedagógicos consistentes sob a coordenação do docente presencialmente em sala de aula, que permitam que estudantes acessem adequadamente os conteúdos digitais, eles prejudicam o desempenho. Isso já era claro antes da pandemia, como mostram estudos da OCDE (https://www.oecd.org/publications/students-computers-and-learning-9789264239555-en.htm ), e se tornou ainda mais evidente depois da aceleração da digitalização e “remotização” (https://www.norrag.org/lessons-from-covid-19-digitalization-calls-for-strong-public-education-systems-by-margarita-langthaler/ ). O que esse projeto paulista aprofunda é uma perspectiva de desqualificação do professorado. Pressupõe incapacidade incontornável dos docentes para fazer o seu trabalho e avança na sua imaginada substituição por materiais prontos. Isso serve a um projeto de retirar dos docentes sua autonomia, vista como um mal e um perigo, quando é, ao contrário, a chave para se ter uma educação de qualidade.

Isso tudo já seria péssimo, mas é ainda pior. Notem que o secretário de Educação é acionista de empresa que atua exatamente no campo que ele pretende estimular. Essa empresa da qual ele é acionista tem contrato com a Secretaria de Educação de São Paulo. O Ministério Público abriu investigação para apurar eventual “conflito de interesses” entre a adoção dessa política e a atuação empresarial de Renato Feder. https://www.metropoles.com/sao-paulo/mpsp-investiga-secretario-da-educacao-de-sp-por-conflito-de-interesses
A ideia errada da Secretaria de Educação de São Paulo é que há uma maneira que é a melhor de ensinar, independentemente das realidades de cada escola. A ideia errada é ela determinar impositivamente que o que deve ser ensinado será melhor do que a pluralidade dos professores e seus conhecimentos. Se perseverar a perspectiva do ex-CEO da Multilaser https://www.metropoles.com/sao-paulo/politica/empresa-ligada-a-feder-faturou-r-192-mi-com-pasta-que-ele-ira-chefiar / https://www.estadao.com.br/politica/deputado-pt-pede-afastamento-secretario-educacao-sao-paulo-governo-tarcisio-de-freitas-sao-paulo-conflito-interesses-nprp/ não estranhará em nada a inclusão de noções absurdas como a ditadura militar como um tempo de paz e prosperidade para o Brasil, que deveria voltar, ou o estudo das relações de gênero como uma máquina de produzir comportamentos sexuais degenerados, e toda espécie de negacionismos destrutivos.

Ao contrário do espírito que anima o governo de São Paulo, que é de desprestigiar e esvaziar o trabalho educacional das comunidades escolares, desqualificando-o, a qualidade da educação depende, como está largamente demonstrado, do fortalecimento da posição do docente e pelo estímulo à sua autonomia na organização dos processos de aprendizagem em sala de aula. Ter um único material para todas as escolas e para todos os professores e alunos é ruim. Na educação, ter uma abordagem única é péssimo sempre, tendo um sabor muito claro de totalitarismo e atraso e ecoando de forma clara o que Chimamanda Ngozi Adichie qualificou como “O perigo de uma história única”. https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt