Por um Natal sem racismo
“Quando o crime de racismo ocorre, aflora em nós um ódio ancestral e digno, que nos faz querer ver sangue branco escorrendo – como o nosso escorre todos os dias. Nos faz querer ver gente branca presa, como nossa população é presa todo santo dia. Queremos choro e humilhações à altura.”
Essa semana, vocês viram, foram feitas postagens racistas, transfóbicas e sensacionalistas aqui no Portal dos Jornalistas Livres. Peço desculpas pela demora em me manifestar, mas meu tempo não é o das redes sociais e isso me atrapalha às vezes, pois questões urgentes, como esta, acabam ficando sem resposta por mais tempo do que é aceitável.
Desculpas solicitadas, vamos ao problema:
Em primeiro lugar, sim, houve mais de um caso de racismo muito explícito aqui, além de postagens sensacionalistas e transfóbicas. Em segundo lugar, adianto a vocês que decidi manter minha coluna, pelas razões que vou expor agora – e também porque sou bem meia boca com as redes sociais e, desse modo, não tenho likes a perder…
Bora lá.
Essa não é a primeira vez que, pessoalmente, lido com casos desse tipo. Quer dizer… não sou nova nesse tipo de quiaca…
Há cerca de dez anos, o MEC aprovou a compra e distribuição de uma HQ em que absolutamente todas as personagens tinham traços símios: braços longos, ventre com um círculo branco e feições de diferentes espécies de primatas não humanos. Trata-se de Quilombo Orum Ayê, de André Diniz.
Na inocência, fui lá e contatei o autor/ilustrador, na esperança de que tivesse sido algum tipo de ato falho, decorrente da ideologia racista a que nossa sociedade está submetida, algum tipo de reprodução subconsciente desse imaginário, uma ausência de letramento racial. A resposta dele, no entanto, ao me acusar de “ver racismo em tudo” quando até o MEC reconheceu que sua obra era de bom tom – tanto que a comprou -, me mostrou que não. Esse moço não estava só reproduzindo racismo, ele estava se recusando, conscientemente, a discutir e rever seu traço racializado. Consequentemente, estava produzindo alimento para um pensamento que nos vê como animais.
A Literatura tem um exemplo clássico de maldade desse tipo: Monteiro Lobato – que muita gente defende como sendo “apenas um homem do seu tempo”, reproduzindo o racismo presente na nossa sociedade, era, na realidade, um eugenista da porra, que usava o texto como suporte pra exterminar nosso povo, pra reforçar o imaginário de que somos seres menos dignos de empatia e, assim, fortalecer o projeto de embranquecimento geral da nação.
Este é o ponto.
No caso da equipe dos Jornalistas Livres – da qual faço parte de forma voluntária, como basicamente todo mundo que aqui está, é preciso saber se o que houve foi uma mera reprodução do racismo nosso de cada dia, por parte dos seus editores e editoras, ou se, de fato, o portal está empenhado em desqualificar a população negra, indígena, LGBTQIAP+, etc.
Eu sei, gente boa…Quando o crime de racismo ocorre, aflora em nós um ódio ancestral e digno, que nos faz querer ver sangue branco escorrendo – como o nosso escorre todos os dias. Nos faz querer ver gente branca presa, como nossa população é presa todo santo dia. Queremos choro e humilhações à altura.
No entanto, vocês sabem, amigues que lêem meus textos, que o punitivismo não é minha posição cotidiana: não acredito nele, nem no proibicionismo, nem no capitalismo como formas de estabelecer relações saudáveis. Na base do olho por olho, gente por gente, quem pode se manda e quem não pode acaba morto.
Além disso, se eu fosse desfazer relações com cada pessoa, grupo ou instituição que, na base da ignorância, machuca outras pessoas com dizeres e atos racistas, machistas, classistas, homo ou transfóbicos… nossa! eu já tava sozinha no mundo, vocês não?
Tem gente que me chama de trouxa por isso. Mas quantas vezes engolimos sapos enormes em nome de preservar uma relação na qual acreditamos ser possível construir um bem maior? Vejam: não falo de relacionamentos tóxicos, em que uma das partes se recusa a aprender com seus erros e a não repeti-los. Falo de pessoas e grupos com os quais nos desentendemos, mas onde há escuta, confiança mútua e desejo.
E eu tô sabendo que desejo de boa parte de vocês, como o meu, quando vi as patacoadas, foi xingar até a língua inchar… e é justo.
Mas no caso do JL, não creio que haja nenhum projeto sensacionalista, racista, machista, ou transfóbico em curso. O que vejo são pessoas cujo letramento racial ainda é incipiente. Vejo também um grupo envergonhado, desejoso de aprender com os erros, fazer melhor e, se possível, nunca, jamais cometer outro ato como os que motivaram esta Nota de Escurecimento.
Por fim, o problema do racismo antinegro não é só nosso. A branquitude precisa fazer parte da solução dos problemas que eles mesmos causam.
Para quem quiser saber o que, de fato, se pretende fazer pra resolver essas questões, leiam o Editorial aqui neste link.
Da minha parte, sigo aberta ao diálogo e abraço meus irmãos e irmãs que, mais uma vez, foram golpeados com essa arma brancóide chamada “racismo antinegro”. Desejo, do fundo da minha essência humana, que o caminho do JL em direção a um mundo sem desigualdade racial seja bom, seja frutífero.
Que nossos natais e anos novos sejam, de hoje em diante, livres de racismo.
Em tempo: o coletivo optou por não divulgar nomes mas, sim, se responsabilizar e apanhar em grupo. Sabemos que reagir às agressões é um ato de legítima defesa, portanto, a surra que vocês estão nos dando faz parte do script, está aqui e permanecerá até que nossa postura seja, novamente, digna de respeito. Acredito que chegaremos lá.
Feliz Natal p’a nóis todes!
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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