No Pantanal, ribeirinhos resistem à erosão do rio Cuiabá

Enquanto se recuperam das queimadas de 2020, comunidades locais lutam pela permanência em suas terras, erodidas pela força de um dos principais rios formadores do bioma

Por Michael Esquer para o OECO.org.br

Ana das Dores Xavier da Silva, 54, mora na Comunidade Piúva, às margens do rio Cuiabá, no Pantanal. O lugar fica a 30 minutos de barco do centro de Barão de Melgaço, em Mato Grosso. Da capital do estado, Cuiabá, até o município melgacense são cerca de uma hora e meia de carro. 

Pescadora profissional aposentada, Ana Francolino de Almeida, 56, também mora na comunidade há 42 anos, com o neto e o marido, que também é pescador . Ela é natural de Corumbá (MS).

Hudson Taques Duarte, 51, também mora em Piúva. Da casa de Ana Francolino até onde mora o aposentado, também corumbaense, são cerca de 15 minutos de barco. 

A distância entre Hudson e Antônio Gonçalo de Amorim, 54, conhecido como Totó, é de menos de cinco quilômetros de rio. Há quatro anos, o melgacense também mora na comunidade, com a esposa. 

O que Ana das Dores, Ana Francolino, Hudson e Totó têm em comum é um problema ambiental grave que ou já os fizeram se deslocar várias vezes ou os fazem viver sob essa angústia, que já atravessaram vizinhos. As terras deles são vítimas da erosão fluvial. 

Natural, o processo consiste na erosão causada pela força da água do rio, que provoca o desgaste em suas margens e leito. Na comunidade pantaneira, porém, o fenômeno está intensificado, conforme relatam os ribeirinhos a ((o))eco. 

Prejuízos econômicos e sociais também são provocados ao mesmo tempo. Primeiro, pelos gastos com construção de novas casas, mais ao fundo dos terrenos, e, segundo, pela perda cultural e histórica, que apesar de não serem patrimônios palpáveis, ruem com as casas. 

“Caiu tudo”

Para chegar em Piúva, o filho de Ana das Dores, Waldileno Xavier da Silva, 39, transita pelas sinuosas curvas do rio Cuiabá, que é um dos principais formadores da maior área úmida do mundo. “Lógico que cabe todo mundo”, diz o pescador profissional, quando perguntado se o barco suportaria todos que aguardavam no porto da cidade, cerca de quatro pessoas. A confiança no manejo do volante demonstra a experiência que só os 26 dos 39 anos que ele tem podem conferir a alguém. 

Filho de Ana das Dores, Waldileno mora em Barão de Melgaço. Ele é de uma família de ribeirinhos que sofre com a erosão fluvial, na comunidade Piúva. Foto: Michael Esquer

A sensação da viagem é de frescor e tranquilidade até a chegada na comunidade. Na beira de um barranco, salta à vista o pedaço de uma cozinha – o que restou de uma casa. É ali onde por muitos anos viveu a mãe de Waldileno. “Vocês já tomaram café?”, pergunta ela, com um sorriso acanhado. “Chegaram em hora boa”, acrescenta. 

Ana das Dores é uma ribeirinha típica. Nascida e criada na região, ela não troca o Pantanal por nada. Fala sobre o bioma com felicidade, apesar das mudanças conhecidas a todos. Na propriedade, onde vive com o marido, posam tucanos, papagaios e maritacas. Nas árvores no fundo do quintal, são os macacos que fazem a festa, pulando de galho em galho. À primeira vista é uma vida tranquila, mas nem tanto assim. 

Nos últimos anos, ela se mudou de casa três vezes. Desde o início dos anos 2000, o desmoronamento das margens de trechos do rio Cuiabá engoliu duas casas onde viveu a ribeirinha. Da segunda delas, resta agora apenas a cozinha, que se equilibra no remanescente do barranco que um dia abrigou o lar que já pertenceu aos pais dela. Desde 2010, ainda corre o mesmo risco uma terceira casa, de onde a ribeirinha saiu no início deste ano, entre outros motivos pelo medo do desmoronamento do barranco. 

Ana das Dores posa em frente a parede de uma cozinha, o que restou da casa onde moraram os pais, e onde um dia ela também já viveu. Fotos: Michael Esquer 

“Na frente da minha casa tinha muito pé de mangueira, foi levado, já tem só um ali. O barranco levou tudo. Eu tinha bastante plantação ali na frente, caiu tudo”, diz ela, apontando para a casa de onde saiu nesse ano, a cerca de cinco metros do rio. 

“Antes de cair, eu quero que Deus me leve”

Na chegada à casa de Hudson, posa cena semelhante à vista antes na casa de Ana das Dores. É também em um barranco erodido, repartido ao meio, que está o que restou da casa onde o aposentado passou a infância. 

“Aqui na frente era o quarto do meu avô, com a minha avó”, aponta Hudson, em direção a onde há agora apenas a margem do rio, coberta pela grossa camada de tijolos de adobe, que um dia compuseram as paredes da casa onde também cresceu sua mãe. Composto de terra crua, água, palha e fibras naturais, o antigo material de construção foi moldado artesanalmente em fôrmas e cozido ao sol.

Hudson mostra os tijolos de adobe da casa onde mora. Ele estima que a casa da família tenha sido construída por volta de 1945. Foto: Michael Esquer 

Para quem chega, a impressão é que o que resta pode cair a qualquer momento, e deve cair. Isso é o que conta Hudson, que ainda tenta impedir o desmoronamento. “Hoje, eu tô vendo que no ano que vem eu não vou conseguir segurar”, projeta ele. 

Apesar de tudo, ele não sai. Não porque não tenha para onde ir, porque dali ele tirou a mãe, Benedita de Alencar Taques, 79, há cerca de cinco anos, por temer que a casa caísse enquanto ali ela estivesse — atualmente a mãe de Hudson mora em uma casa que foi construída mais aos fundos da propriedade da família. Partir significaria abrir mão da própria história, diz ele. 

“Eu vou falar a verdade para o senhor, antes de cair a casa eu queria que Deus me levasse. Aqui eu tenho uma história tão grande, tenho uma vivência, tive uma infância”, lamenta. 

“Cada ano que passa vai cinco metros embora”

Totó morava em outra comunidade na região. O que fez ele se mudar para Piúva foi a tranquilidade, o companheirismo dos ribeirinhos dali. “O que a gente acha aqui é bondade”, diz ele. Acompanhando Ana e Hudson, ele enfrenta o mesmo medo, que ainda não lhe tirou nenhuma casa, pelo menos até agora. 

“Meu barranco de ano retrasado para o ano passado caiu mais de cinco metros”. Para ele, essa distância significa que sua casa está cinco metros mais perto do rio. Cinco metros mais perto de ruir.

Em um ano, ele diz que o barranco da propriedade onde vive teve cinco metros consumidos pela erosão.

“Se não arrumarem, ou não tiver um trem pra ajudar a recuperar esses barrancos, é daí pra pior. De ano em ano que passa ele come mais,  tendo mais erosão. Cada ano que passa, nada, nada vai quatro, cinco metros [embora]”, relata o pescador profissional.

“Minha mãe falava ‘com a natureza não se brinca”

“Transformou da água pro vinho, você nem acredita”, diz Ana Francolino sobre o Pantanal. No seu caso, a erosão já a fez se mudar uma vez. 

De onde vivia, restam agora apenas as marcas do antigo alicerce no chão, há poucos metros do rio. O antigo quintal deu lugar ao atual limite de onde está o barranco, que segue avançando. 

“Tem um vizinho que fez a casa no fundo, porque a casa já tava na beira do barranco”, diz ela sobre uma mudança que também já fez. 

Para Ana Francolino, esse impacto que a atinge, assim como os demais ribeirinhos, são reflexo do tratamento dado ao bioma. E ela deve estar certa. 

“A gente fica triste de ver. Minha mãe falava assim: ‘com a natureza não se brinca”, diz ela.

Ana segura foto que mostra ela sentada no antigo limite do barranco. Foto: Michael Esquer

A vida no reino das águas 

No Pantanal, quem dita o modo de vida é a água. Nascida ribeirinha e pantaneira, a bióloga e pesquisadora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), Carolina Joana da Silva, que também é doutora em Ecologia e Recursos Naturais, sabe bem disso. Sua primeira pergunta científica, ainda criança, era para onde ia a água que chegava até a sua casa, em Santo Antônio do Leverger (MT), depois que findava a cheia. “Eu queria tomar banho de rio na porta da minha casa”. A curiosidade a trouxe até aqui, com uma vida inteira dedicada a estudar a maior planície inundável do mundo, atuando diretamente com a água e a adaptação humana a ela. 

“Tradicionalmente no Pantanal, o rio tem muita influência. As pessoas construíram suas casas e moradias no que nós chamamos de barranco do rio, ou também dique marginal”, diz Silva sobre os ribeirinhos que tradicionalmente habitam o bioma. Isso acontece, explica ela, justamente porque durante a cheia, quando baías e lagoas que estão atrás das casas também se enchem, essas são as regiões tidas como mais altas e seguras.

Esse conhecimento configura uma adaptação ecológica do modo de vida à dinâmica do sobe e desce das águas, onde, por exemplo, se pesca na cheia e se planta na seca. “Essas pessoas experimentaram isso ao longo dos anos. Os pais foram falando que a inundação não passaria de certa altura. Esse elevado é uma adaptação para inundação”, diz a pesquisadora, que é também presidente do Conselho da Reserva da Biosfera do Pantanal. 

Esse ritmo ditado pelo pulso de inundação do bioma, porém, não apenas tem sido alterado como também tem contribuído para o agravamento da erosão fluvial que atinge essas famílias. Uma das consequências disso é a perturbação dessa adaptação e resiliência ecológica dos ribeirinhos que vivem no Pantanal. 

“A resiliência ecológica ocorre quando o grupo social permanece no sistema ecológico, social e econômico do Pantanal. Quando parte desse sistema é desestruturado, a resiliência começa a ser ameaçada”, explica Silva. No caso do Pantanal, além de ecológico, esse sistema também é cultural, ao ser componente da identidade dos ribeirinhos. 

Nesse cenário, então, vai surgindo a necessidade de se adaptar para continuar vivendo nesse sistema. “Se esses grupos sociais tiverem adaptação para poder responder e reagir a essa mudança eles podem ficar, se não, eles vão ter que sair”, alerta ela. “Elas são vulneráveis do ponto de vista ambiental porque nesse espaço geográfico há um cenário de aumento dessa erosão”, acrescenta.

O Pantanal que erode

“O Pantanal é uma planície alagável, uma bacia sedimentar. Por sua natureza, a característica geológica e de solos ali é um solo arenoso”, explica a ((o))eco Ibrahim Fantin, pesquisador do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Ele, que coordena o Programa de Pós-Graduação de Recursos Hídricos da instituição (PPGRH/UFMT), diz que, por definição, um solo arenoso é considerado frágil. 

No caso de Piúva, especificamente, o rio Cuiabá ainda apresenta uma característica típica do curso d’água: ser meandrante, ou seja, sinuoso. Esse padrão torna suas margens, nessa região, mais propícia a erosão. “Eles estão em uma zona, do ponto de vista geomorfológico, que tem essa dinâmica de erodir de um lado e depositar do outro. Por isso que tem as praias, que são de deposição, e os barrancos, lugares de erosão”, explica a pesquisadora da Unemat. Esse processo, no entanto, não deveria ser intenso como relatam os ribeirinhos. “Um processo natural que ocorre por anos, é uma coisa muito lenta”, esclarece. 

A ação antrópica do homem sobre a natureza, porém, pode acelerar essa erosão, relata o pesquisador da UFMT. Segundo o MapBiomas, até 2021 a antropização correspondia a mais de um sexto da área do Pantanal (16,9%). Entre vários fatores, ele aponta alguns principais para entender o processo. 

“Nós temos o aumento cada vez maior da circulação de barcos. A onda gerada pelo deslocamento do barco bate nessa parte marginal e vai pouco a pouco erodindo, até provocar o solapamento do solo, da margem”, pontua Fantin. O mesmo apontamento também é feito por ribeirinhos de Piúva. “Em alguns períodos do ano isso é causado pela navegação de grandes lanchas, de embarcação grande, que transita no rio”, diz Waldileno, o filho de Ana das Dores, que coordena a Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras em Barão de Melgaço. 

A remoção da vegetação das margens dos rios, o que dá estabilidade ao solo, também é mencionada pelo pesquisador da UFMT. Sem essa cobertura, o rio fica mais vulnerável à força da água, e, consequentemente, ao desmoronamento. Entre 1985 e 2021, por exemplo, o Pantanal perdeu 12,1% de cobertura remanescente de vegetação nativa, apontam dados do MapBiomas.

De acordo com Eliana Beatriz Nunes Rondon Lima, vice-presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica da Margem Esquerda do Rio Cuiabá (CBA/ME), nas margens do rio em território melgacense há áreas com retirada de vegetação. “Com isso você perde a proteção natural”, esclarece ela, que foi uma das organizadoras do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) entregue à Prefeitura de Barão de Melgaço, em 2018. 

Fruto de convênio firmado entre a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), com participação do Governo de Mato Grosso, o documento tinha o objetivo de criar mecanismos de gestão pública que estivessem relacionados ao saneamento básico, abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais – todos esses eixos projetados para atender tanto a área rural quanto urbana de Barão de Melgaço. 

“Como medida mitigadora, nesse próprio plano encontra-se a recuperação das áreas degradadas ao longo da margem. A medida seria a recuperação dessas áreas”, comenta ela. No PMSB, essa ação é apresentada de forma a ser implementada em caráter imediato e contínuo, em um horizonte de 20 anos. 

Raízes de árvore a mostra em barranco erodido, em Barão de Melgaço. Foto: Michael Esquer

Mas a realidade não é bem assim. Ao ((o))eco, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Barão de Melgaço disse que reconhece o problema da erosão, mas a pasta também declarou não dispor de infraestrutura e recursos o suficientes para a execução de ações que objetivem mitigar os impactos desse processo na região. 

“O município já está tomando providências quanto aos resíduos sólidos e a qualidade da água, porém quanto às questões das áreas degradadas ainda estamos buscando junto ao Governo do Estado esses recursos”, diz trecho de nota enviada à reportagem. Ao mesmo tempo, porém, a pasta aponta que não possui jurisdição sobre o rio Cuiabá. 

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MT) foi procurada para saber se há o planejamento de ações que tenham entre seus objetivos a recuperação dessas áreas, assim como sobre as tratativas mencionadas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Barão de Melgaço. A pasta ainda não se manifestou sobre o tema. O espaço segue aberto. 

O fator Manso 

Levando em conta a bacia hidrográfica do rio Cuiabá, Fantin também aponta outra preocupação iminente: a retenção de sedimentos. Todo rio nasce com uma capacidade natural de transportar sedimentos. Essa capacidade é limitada, mas não significa que estar abaixo desse limiar também seja boa coisa. Pelo contrário. Se por algum motivo o volume de sedimentos diminui, o curso d’água, por definição da natureza, passa a trabalhar para retomar esse equilíbrio. “De que forma? Fazendo esse processo de erosão fluvial”, explica o especialista. 

O processo é o exato oposto do assoreamento, outro problema que atinge rios pantaneiros. Isso porque se a erosão ocorre, entre outras coisas, pela falta de sedimentos, o assoreamento acontece pelo excesso dele, e provoca a ocorrência de grandes bancos de areia que prejudicam o escoamento do rio, em algumas casos até o impossibilitando ou causando o seu transbordamento. Ainda no Pantanal, há o exemplo do rio Taquari, cujo assoreamento é considerado o maior desastre ambiental do bioma. 

No rio Cuiabá, estudo publicado em 2020 sugere que essa retenção de sedimentos tem relação com um empreendimento hidrelétrico: a Usina Hidrelétrica (UHE) de Manso. Em operação desde meados dos anos 2000, ela foi construída em parceria com a iniciativa privada, no rio Manso, principal afluente do rio Cuiabá. Em 1999, FURNAS passou a administrar a maior parte dos investimentos (70%) da UHE, que até então eram geridos pela Eletronorte. Com potência instalada de 210 MW, a usina foi projetada para atender ao conceito de usos múltiplos do reservatório e da água.

Usina de Manso regula cheias do rio Cuiabá, um dos principais contribuintes da planície alagável do Pantanal. Foto: Reprodução/AC Júnior

Após duas décadas de funcionamento, artigo publicado na revista científica Frontiers in Environmental Science apontou que a usina retém 60% da carga dos sedimentos que eram transportados pelo rio Cuiabá, retenção essa que configura um dos componentes com potencial de acelerar a erosão fluvial. 

O período em que a usina passou a funcionar coincide com o apontado pelos ribeirinhos de Piúva como o início do processo acelerado de erosão das margens do rio Cuiabá na comunidade, e também figura em seus depoimentos. “Antes não era assim, depois que fez o Manso, depois que fizeram essa usina, prejudicou bastante”, diz Ana das Dores. 

“Ficou pior depois que fecharam a usina lá do Manso, parou a enchente. Quando enchia o rio não desbarrancava”, acrescenta Ana Francolino. “Antigamente era mais pouco [a erosão], não sei o que aconteceu […]. Eu acho que o Manso deu um pouco de preocupação para nós”, complementa Totó. 

O pesquisador da UFMT também é um dos autores do estudo, e diz que essa alteração antrópica provocada pela retenção de sedimentos em reservatórios hidrelétricos acelera o processo de erosão fluvial. “Nos leitos a jusantes [localizados abaixo do ponto de instalação da hidrelétrica], nos rios a jusante”. 

No caso do Pantanal, Fantin diz que ainda não há nenhum estudo conclusivo que relacione, especificamente, a retenção da UHE de Manso ao processo acelerado de erosão em trechos do rio Cuiabá. Mas o fato é que uma coisa está relacionada a outra. “Estudos em outras regiões mostram que a retenção de sedimentos acarreta esse efeito. Manso reduz significativamente o transporte de sedimentos [no rio Cuiabá]”, aponta. 

O pulso de inundação 

Outro fator que pode acelerar a erosão é também a alteração do pulso de inundação do rio Cuiabá. “A hidrelétrica mudou a dinâmica do rio”, diz a pesquisadora da Unemat. E esse é justamente um dos argumentos utilizados para a instalação do empreendimento na cabeceira do curso d’água, como diz Furnas. “Entre os benefícios do Aproveitamento Múltiplo de Manso, destaca-se o de regularizar os ciclos de cheias e secas do rio Cuiabá, contribuindo para reduzir os danos socioeconômicos”, diz a empresa, referindo-se às enchentes já causadas pelo rio em anos anteriores à instalação do empreendimento.

Um estudo publicado na revista científica Science Direct, em 2009, também conclui isso. O artigo aponta que desde o início da operação da UHE de Manso, a vazão no início da estação chuvosa (entre novembro e dezembro) foi reduzida em cerca de 20%. Além disso, a investigação também afirma que a operação da usina aumentou as descargas na estação seca, o que, naquela época, já resultava em níveis de água aproximadamente 1 metro acima do registrado antes do funcionamento da UHE. Ou seja, ficou mais cheio quando era mais seco, e ficou mais seco quando era mais cheio. 

Operação da barragem de Manso alterou o pulso da inundação do rio Cuiabá. Estudo aponta aumento da vazão na seca e queda na seca. Foto: ICV

Esse cenário de regulação artificial se reflete na mudança da dinâmica de subida e descida das águas, também chamado de pulso de inundação, diz Silva. “O rio precisa subir para inundar o Pantanal e precisa descer. Uma hidrelétrica tem a tendência de cortar os extremos, não enche muito mas também não seca muito, fica no meio”. Nisso, ela explica, configura-se um fator importante que potencializa a erosão. “É uma tendência natural, do ponto de vista dessa ação antrópica”, enfatiza.

Isso porque, por ser composto de um solo frágil, o barranco precisa do rio com períodos secos para se recompor, diz Carolina. Sem esse período, ele fica em um estado de umidade permanente. “Com mais tempo úmido, ele tem mais tendência a erodir”. O ideal e necessário, diz a pesquisadora da Unemat, também seria a manutenção dos períodos cheios, onde ocorre a recuperação de áreas onde a água não chega no período seco. 

“Essa dinâmica do rio tem que ser respeitada. Na época da cheia, tem que ter água suficiente para alimentar as baías. Na época da seca, não soltar água para aparecer as praias. É essa dinâmica que as pessoas e os animais estão acostumados, a esse modo de vida”, conclui. 

((o))eco entrou em contato com Furnas para apresentar os pontos abordados na reportagem. A empresa ainda não se manifestou. O espaço segue aberto. 

Memórias do fogo 

Os incêndios de 2020, que destruíram mais de um quinto do Pantanal, deixaram marcas na maior área úmida do mundo. Na comunidade de Piúva não foi diferente. Esse cenário está refletido em árvores calcinadas, que não mais floriram, e também nos animais, que em menor frequência aparecem nos quintais. Ainda hoje, ribeirinhos têm na memória o frescor de dias que jamais serão esquecidos. 

“A gente foi criado no Pantanal, mas eu jamais vi um fogo como aquele, muito forte, feio demais, que destruiu mesmo. Tem lugar que não nasceu mais, que não brotou, ainda tem sinal”, conta a ribeirinha, Gonçalina de Paula Magalhães, 55, que também é pescadora profissional. 

Ribeirinha, Gonçalina também mora na Comunidade Piúva. Em 2020, ela ajudou vizinhos que tiveram o quintal tomado pelas chamas. Foto: Michael Esquer

Natural da Barra do São Lourenço, comunidade tradicional situada a montante de Corumbá (MS), ela já morou em Poconé (MT), e há 22 anos vive com o marido em Barão de Melgaço (MT) – todos municípios pantaneiros. 

Em 2020, ela estava em Piúva e ajudou vizinhos que tinham os quintais tomados pelo fogo. “Eu atravessei pra ajudar Dona Benta”, conta ela, referindo-se a mãe de Hudson, que na época já morava na casa construída mais aos fundos da propriedade da família. 

“Foi muito difícil, muito fogo, pegou a região inteira. O fogo chegou bem aqui”, relembra Ana das Dores, apontando para o quintal da casa onde vive atualmente. Naquele ano, ela estava com a irmã em casa, e juntas também recorreram a vizinhos para ajudar no combate às chamas. “Matou muito bicho, [até hoje] tem umas áreas que não recuperou”, acrescenta.

Recuperação, uma cópia da natureza 

No apagar das chamas, a preocupação maior ficou sobre a garantia de moradia. Em 2021, quando especialistas implementavam sistemas agroflorestais (SAFs) para mitigar o impacto das queimadas, os ribeirinhos de Piúva compartilharam a sua mais urgente necessidade. Com os quintais recém incendiados, e diante da iminência da perda de suas casas, era a garantia de um lar em terra firme a prioridade dos moradores na região. 

“Eles falaram ‘olha, pra gente é mais interessante salvar as nossas casas, conter o barranco do que a gente ter mais uma área de plantio, que a gente vai cuidar”, conta a ((o))eco o engenheiro florestal Valter Hiron da Silva Junior, analista do programa de direito socioambiental do Instituto Centro Vida (ICV). Ele está à frente das ações do “Projeto Piloto de Restauração de Barranco: Identidade, Resistência e Permanência no Pantanal”. Executado pelo ICV e Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, o projeto conta com a parceria da Associação de Agricultores Familiares e Produtores de Mel da Comunidade de Piúva. 

A iniciativa consiste na restauração, recomposição e revegetação do solo, em uma cópia o mais fiel possível do que já acontece na natureza. E no Pantanal, essa fidelidade representa mais ou menos chances de sucesso, e também a resistência às condições próprias do bioma. “Estamos trabalhando com espécies nativas, que as pessoas daqui deram pra gente e falaram ‘esse aqui é daqui, aguenta bem época de alagamento’. Tudo construído com os ribeirinhos”, afirma Junior. 

Valter Hiron da Silva Junior, analista do programa de direito socioambiental do Instituto Centro Vida (ICV). Foto: Michael Esquer 

Na natureza, conta ele, primeiro nasce o capim, depois as espécies arbustivas, em seguida as lenhosas, e se tudo der certo é a floresta que passa a pavimentar a via. Essa composição no solo que margeia um rio confere a ele proteção contra a força tanto da água do rio quanto da chuva. O protege de um dos seus maiores vilões, a erosão fluvial intensificada pela ação antrópica. 

“O rio bate primeiro na planta para depois alcançar o solo, fica mais difícil dele chegar no solo nu, que vai desbarrancar. A função da vegetação é fazer essa camada de proteção para que as raízes se entrelaçam e segurem o barranco”, afirma o analista. 

“Daqui eu não saio”

“Nesse perder, não se perde só a casa. Se perde uma história de criação. História de pessoas que moraram nessa casa, algumas que até já se foram, já morreram, outras ainda não”, diz Wadileno, ao enfatizar que o impacto do problema que atinge o rio, cujas margens o viram nascer e crescer, transborda o aspecto ambiental. 

A rede coordenada por ele em território melgacense, entre outras coisas, promove ações de conscientização de direitos. O objetivo é inserir o habitante tradicional no centro das questões que envolvem o Pantanal. E isso inclui a preservação da sua história. “Não é só uma casa, mas sim a história dos ribeirinhos, dos pantaneiros, que sempre moraram nesse lugar”, conclui. 

Em Piúva, além de Ana das Dores, mãe dele, Totó e Ana Francolino, também são os primeiros contemplados com o restauro. A iniciativa acende a esperança deles que ou estão perdendo, ano após ano, pedaços daquilo que ainda chamam de lar, ou que temem esse desfecho. Se tudo der certo, eles terão aberto o caminho para outros ribeirinhos. 

“A gente espera que vai dar tudo, é importante pra gente. O Pantanal é muito importante pra nós. Nós vive aqui, somos daqui, filhos daqui”, diz Totó. 

“A gente gostou que veio, pra ver se consegue parar o barranco de cair. Deus abençoe que dá certo, de parar [o barranco]”, torce Ana Francolino. 

Entre todos eles, a principal semelhança: a vontade de ficar. “Daqui eu não saio. Tem bastante gente que muda, que quer mudar, mas eu não, não penso nisso”, finaliza Ana das Dores. 

  • Michael Esquer viajou à convite do Instituto Centro de Vida (ICV). Jornalista em formação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos 

Reportagem original publicada em https://oeco.org.br/reportagens/no-pantanal-ribeirinhos-resistem-a-erosao-do-rio-cuiaba/

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