Caru Schwingel, para os jornalistas livres
Ato na Avenida Paulista mostra que a resistência Guarani em São Paulo tem nas mulheres indígenas a força ancestral da suavidade de quem gera, cuida e protege vidas. Em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, centenas de ativistas acompanharam cantos e falas das mulheres Guarani Mbya da Terra Indígena Tenondé Porã, sul do limite urbano do município, pedindo o fim do marco temporal.
Ao mesmo tempo em que acontece a votação em Brasília pelo Supremo Tribunal Federal para decidir sobre a constitucionalidade do marco temporal ser aplicado à demarcação das terras indígenas, as mulheres Guarani lembram que a história deste país não começou em 1988, tampouco em 1500, que houve uma invasão e que já existiam povos originários nestas terras. Inclusive em São Paulo, capital. Se o STF votar pela inconstitucionalidade, o Projeto de Lei 490, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados na última quinta-feira, 24/06, perde a validade. O PL490 inviabiliza novas demarcações e abre as terras indígenas já demarcadas para diversos empreendimentos econômicos como agronegócio, mineração e hidrelétricas, entre outros.
Para a liderança Guarani Mbya do núcleo Tapé Mirim da Tenondé Porã, Arã Laura dos Santos, lutar junto com todos os indígenas e não indígenas brasileiros hoje é fundamental para garantir o direito básico dos povos originários, o direito à terra. A cacica, responsável por 50 pessoas, reafirma o porquê das mulheres deixarem seus afazeres, filhos, responsabilidades para estarem em luta na Av. Paulista: “para garantir o futuro para nossos filhos”.
Outra liderança, Kerexu Kalipety Cleonice levou o Guarani falado com esmero e delicadeza para um público atento. No fim, disse em português: “A gente não quer terra para enricar, a gente quer para criar nossos filhos”, apontando sua irmã que cuidava do filho. A força da resistência Guarani vem de sua espiritualidade, da manutenção de seus costumes, de sua língua. Os cantos entoados pelas mulheres são uma lembrança de que tudo está sob Nhanderú, o deus- verdadeiro ou deus-luz de infinitas cores Guarani, e de que seu altruísmo e generosidade primeiro são praticados com a natureza, em respeito, preservação e cuidado.
“Aqui era tudo floresta”, diz a jovem Kerexu Mirim esticando seu braço no horizonte da movimentada avenida. “Já Pensaram? A gente estava aqui antes. A gente não quer expulsar ninguém, não expulsou ninguém, não quer humilhar ninguém. A gente tem bom coração”. Liderança no núcleo Krukutu da Tenondê Porã, Kerexu fala que os povos indígenas querem terra para viver com suas famílias, não “para para criar gado e ficar rico”.
Hoje pela manhã, houve ato na Terra Indígena Jaraguá, na zona oeste da cidade, no Pico do Jaraguá, onde há mata Atlântica nativa remanescente. Território composto por seis Tekoas (aldeias, em Guarani), somente uma é demarcada. Seus Xondaros (guerreiros, em Guarani) após fechar a Rodovia dos Bandeirantes na sexta-feira pela manhã com o resultado da votação do PL 490 na Câmara, partiram para Brasília para integrar o Acampamento Levante pela Terra, com outras mais 40 etnias de todo o país. Os Atos de hoje foram organizados pelas guerreiras, pelas mulheres líderes, com o apoio espontâneo de não indígenas ativistas.
Sem receio de tomar a palavra, contra o PL490 as mulheres não recuam um centímetro da luta. Sabem que é questão de vida ou morte. “A gente tenta levar o mais pacífico, mas neste momento é decisivo. A gente sabe que vai morrer”, diz Kay Sara, indígena do Alto Rio Negro da etnia Tariano do 3º Clã. Morando há dois anos em São Paulo, a artista levou a urgência da ação ação na performance “Pianaué”, em sua língua, “Extermínios”, na portuguesa. “A terra dos meus ancestrais foi demarcada depois de 1988, então, iremos perder o direito a uma terra que sempre foi nossa”. Kay Sara foi contundente: “mais uma vez estão decidindo as coisas sem sequer consultar os indígenas. Mesmo morando na cidade, eu sei de minha ancestralidade. É difícil, mas chegou o momento das pessoas levantarem”. Como povo indígena da Amazônia, os Tarianos de sua etnia foram quase dizimados no contato com os brancos. Ter sua terra demarcada significa proteção e a possibilidade de viver a cultura e costumes sem invasões constantes de garimpeiros, madeireiros ou do agronegócio.
Essa é uma história que parece distante em São Paulo, como uma das protagonistas do ato, Letycia Payayá, lembra. “Hoje indígena é reconhecido somente como morando na Amazônia, pois lá vivem de forma original, há floresta. Mas aqui também existia, aqui, viviam e querem viver de acordo com suas culturas originárias”. Da região da Chapada Diamantina, na Bahia, a etnia Payayá hoje possui cerca de 100 famílias. Letycia mora em São Paulo com sua família e não foge à luta. “Além do PL490, a PEC 215 é uma pedra em nosso calcanhar”. A Proposta de Emenda Constitucional 215 delega exclusivamente ao Congresso Nacional a demarcação das terras indígenas e quilombolas, reafirmando os terrenos já aprovados. Na prática, é proibir a expansão das terras indígenas existentes. Esse é um grande problema para as T.I.s de São Paulo, que lutam há anos pela demarcação dos novos núcleos, especialmente na T.I. Jaraguá.
Mas hoje a luta foi pela inconstitucionalidade do marco temporal aplicado a terras indígenas para inviabilizar o PL490. Como resultado das manifestações, o Supremo Tribunal Federal adiou a votação para agosto. E este é um ano indígena na capital federal. Dia 09 de agosto será comemorado o Dia Internacional dos Povos Indígenas e em setembro ocorre a Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, com o tema “Mulheres Originárias pela Cura da Terra”.