“A verdadeira felicidade está na própria casa, entre as alegrias da família” – Leon Tolstói (1828 – 1910)
O edifício vetusto da Caixa Econômica Federal, encravado na praça da Sé, no centro de São Paulo, é cercado por imagens terríveis da miséria e do desespero humanos. Centenas de dependentes químicos, portadores de graves problemas psiquiátricos, gente sem casa, sem banheiro, lotam a praça que é o marco zero da cidade. E, no entanto, nesta semana, foi lá que se encontraram as pessoas mais felizes, orgulhosas e realizadas. Eram antigos trabalhadores sem teto, gente que foi despejada de suas casas por causa do preço dos aluguéis, ou ex-moradores de cortiços e favelas, que foram à Caixa para assinar os contratos de financiamento de seus novíssimos apartamentos no centro da cidade, conquistados com uma luta sem tréguas pelo direito assegurado pela Constituição de 1988: o da moradia digna.
Foram oito anos enfrentando ameaças de despejos, perseguições políticas, prisões e tragédias variadas. Sempre sob a liderança severa de Carmen Silva, a líder do Movimento Sem-teto do Centro (MSTC). A luta valeu a pena. O sonho coletivo por um teto tornou-se realidade para 121 famílias pobres, agora transformadas em felizes proprietárias de apartamentos reformados no que foi o antigo Hotel Cambridge, na avenida 9 de Julho.
Veja abaixo fotos dos novos moradores do Residencial Cambridge. As mensalidades que cada um terá de pagar em 10 anos, segundo o financiamento da Caixa Econômica Federal, são proporcionais à renda do beneficiário. Começa de R$ 80 e vai até R$ 400.
A ocupação MSTC
O novo Residencial Cambridge é fruto tardio do programa “Minha Casa, Minha Vida”, inaugurado pelos governos do PT. Para a reforma do prédio, orçada em 22 milhões de reais, o MSTC, que administrou as obras, contou com uma construtora e uma assistência técnica de arquitetos e engenheiros. Os sem-teto em assembléia decidiram cada passo da reforma: das cores das paredes, à escolha das torneiras e das cerâmicas. Do aproveitamento do piso de tacos de madeira à marca do elevador. Futuros moradores foram incumbidos de fiscalizar o andamento e a qualidade das obras. O Cambridge renasceu!
Fincado em prédio de estilo modernista na avenida Nove de Julho, o Hotel Cambridge foi inaugurado em 1951. Era famoso pelo bar elegante com poltronas vermelhas, onde se apresentou, em 1959, o músico Nat King Cole, quando veio ao Brasil. “Stardust”, a canção que fala sobre os encantos do amor que passou, embalou a noite. Daqueles brilhos, o Cambridge desabou no buraco negro da decadência tão logo o centro econômico e financeiro da cidade deslocou-se para a região da avenida Paulista e, depois, para a Faria Lima e Berrini. Hotéis com nomes chiques e escandalosamente estrangeiros, como o próprio Cambridge, o Othon Palace, o Hilton, o Paris e o Cad’oro, entre outros, viveram em agonia, até o apagar definitivo das suas luzes.
Carmen Silva Ferreira, hoje com 62 anos, foi quem reacendeu as luzes do prédio de 17 andares e 120 apartamentos. Em vez dos executivos de antes, ela capitaneou um exército de pessoas que não tinha nem sequer um teto pra dormir em paz… e eles ocuparam o Hotel Cambridge, então tomado por ratos, baratas, lixo, entulho. Toneladas de dejetos foram retirados dos andares, em mutirões de limpeza.
Era preciso organizar os moradores para que entendessem que o teto agora ocupado era apenas uma “passagem” para a conquista definitiva da moradia digna. E que, como “passagem”, o Cambridge sob a liderança do MSTC seria a prefiguração de uma nova vida para aquelas pessoas: com direitos e deveres.
Quilombo MSTC
Movimento de pobres, de pretos, de pardos, a luta pela moradia no centro de São Paulo é intensa e solidária na construção diária de novíssimos quilombos, dirigidos quase sempre por mulheres. Carmen Silva exige que todas as crianças da ocupação estejam matriculadas em escolas, cobra a atualização das carteiras de vacinação, provê orientação às famílias por assistentes sociais e psicólogos, coloca a Unidade Básica de Saúde (UBS) para operar dentro da ocupação, leva artistas, dentistas, brinquedotecas e bibliotecas para dentro. Violência doméstica? Nem pensar: os agressores são logo expulsos. O mesmo vale para drogas: não se permite. Mas isso tudo com contrapartidas.
Baiana, mãe de oito filhos, Carmen nasceu na Cidade Baixa de Salvador, filha de empregada doméstica e de militar. Foi o pai que a criou e é indelével a marca deixada pela disciplina da caserna no espírito da mulher. O Cambridge dos sem-teto sempre brilhou de limpeza, fruto dos mutirões bem-organizados. Sempre teve uma sólida hierarquia, que começava pelos coordenadores de andares, pelos líderes de projetos comunitários, passava pela Linha de Frente (guerreiros que são os fiéis escudeiros da ocupação), e chegava até a liderança incontestável de Carmen –a Dona Carmen, como é respeitosamente chamada. Depois das 22h, é silêncio, para não atrapalhar o sono dos trabalhadores.
Carmen organizou a ocupação à custa de muita perseguição de órgãos (inclusive públicos) a serviço da especulação imobiliária. Carmen entende que a existência de milhares de imóveis desocupados na cidade é uma afronta ao direito constitucional de moradia e ao princípio, também constitucional, de que a propriedade precisa ter alguma função social. Coisa que o Hotel Cambridge, fechado e abandonado, não tinha.
Carmen iniciou-se no movimento dos sem-teto quando morou, por seis anos, num antigo prédio do INSS, na avenida Nove de Julho. De lá para cá, participou de dezenas de ocupações. Hoje, é uma das maiores conhecedoras da cidade. Quem está devendo IPTUs milionários, quem são os latifundiários urbanos, quantos imóveis possuem, quem são os habitantes tradicionais de cada bairro. É respeitada na Prefeitura e é professora da Escola da Cidade e do Insper, prestigiosas escolas de Arquitetura. Urbanismo prático.
E ainda por cima, Carmen é festeira. E põe festa, e música, e dança nisso. Carmen é hoje a principal animadora do Bixiga. No prédio do INSS, onde o MSTC instalou a Ocupação 9 de Julho, Carmen é quem dá vida aos famosos almoços-festa que ocorrem lá todos os domingos (abertos ao público em geral). Mas Carmen também é festeira por outro motivo: “festa” é o nome que se dá à ação de ocupar juntos um imóvel abandonado, como já foi o do Hotel Cambridge.
Recomeçar sempre; o lema do MSTC
Delicadeza e amor constituem as histórias de vida numa Ocupação do MSTC. Para sentir um pouco o clima que vigora numa ocupação liderada por Carmen Silva, é preciso assistir ao filme “Era o Hotel Cambridge” (2016), criação coletiva do MSTC, do Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST) e da Escola da Cidade, com direção de Eliane Caffé.
Juntou gente de todos os jeitos na hora de ocupar o antigo Hotel Cambridge. A velhinha louca que perdeu tudo na jogatina, a jovem crente desempregada, o dependente de drogas, o estudante de medicina que foi expulso de casa porque o pai descobriu que ele é gay, o pastor, a sambista, o poeta, o militante, o refugiado haitiano, palestino, sírio e congolês, sobreviventes de tragédias humanitárias, os imigrantes bolivianos, a prostituta. Um dos grandes insights do movimento de moradia deu a liga entre todos esses espécimes da grande biodiversidade humana que viceja no centro elétrico da metrópole:
Nem precisa dizer que foi difícil alinhar na vida intensamente coletiva da ocupação as pirações individuais de pessoas tão diversas.
A cozinha é coletiva no começo. Não tem água, não tem luz, tem ratos e baratas, tem fios desencapados, esgoto podre. Elevador? Hahahaha!
Gênios dos serviços gerais, da faxina pesada, auxiliares de pedreiros, ajudantes de ordens de oficinas mecânicas, ajudantes de cozinhas e jardineiros puseram-se em ação ordenada por dentro dos encanamentos, dos conduítes, das canaletas enferrujadas — tudo para ressuscitar o prédio e dotá-lo das condições mínimas para ser um lar, enquanto as crianças corriam de um lado a outro e se improvisava a primeira escolinha.
Por seu trabalho na construção de cidadania para todos os excluídos, Carmen sofreu do Ministério Público de São Paulo injustíssima acusação de que estaria enriquecendo à custa da cobrança de taxa de manutenção das cinco ocupações que controla. Ela teve dois de seus filhos presos, além de outros parentes perseguidos, e ficou foragida durante mais de três meses.
Nessa ocasião, muitos desacreditaram de sua luta, de seus propósitos. Mas ela não! Apesar de todo o sofrimento, Carmen seguiu em frente, organizando o MSTC e cumprindo todos os trâmites para viabilizar o Cambridge. Por fim, a principal liderança do MSTC ainda teve de se despedir da filha querida, Lorena, vítima fatal da Covid-19, com apenas 30 anos, uma tragédia.
Carmen e o MSTC poderiam ter desaparecido diante de tamanha dor, injustiça e sofrimento. Mas ela insistiu em continuar até chegar à cerimônia dos contratos assinados entre os moradores do MSTC e a Caixa. Como diz o movimento: “Quem não luta, tá morto”.
Vivam todos os que acreditam e perseveram na esperança!
(Carmen, essa homenagem é pra você e para a Lorena, que está nos protegendo! Vida longa ao MSTC e a todos os lutadores pela moradia!)
Estamos juntes!