Memória de Pivete. Não tem nada como voltar pra casa depois de um tempo, receber amor de mãe, e comer aquela comida quentinha que vem de brinde com uma boa dose de cuidado e carinho. Depois que me mudei de Caieiras, a cidade onde cresci, muita coisa mudou. Deixei minha vila com minha mãe e parte de minha família lá. Me joguei no mundo e descobri muito – coisas que não existiam no bairro do Vera Tereza.
Quando decidi ir documentar minha quebrada, a ideia era exaltar toda beleza que tem ali e resgatar parte das bancas por onde andei na infância. Foram dois finais de semana, duas câmeras analógicas e dois filmes vencidos. Optei pelo analógico para traduzir na imagem essa sensação de viagem no tempo que eu senti.
É engraçado porque até então, eu sabia exatamente o que eu tinha em São Paulo e o que faltava lá. Mas agora eu sei o que tem na minha vila e dificilmente vou encontrar na cidade grande – são coisas que metrópole nenhuma conseguiria entender.
Eu cresci na periferia de Caieiras. O bairro, Vera Tereza, era uma vila operária formada no fim do século 19 e foi um dos últimos espaços a serem ocupados na cidade. Não à toa, fica bem no fundão mesmo – pra vocês terem uma ideia, o centro da cidade de Franco da Rocha é mais perto que do próprio centro de Caieiras.
Formado por morros grandes e bonitos, o cotidiano rural se mistura com o ar de vida na periferia. Os pinheiros e eucaliptos contrastam com as casas sem acabamento e a molecada brincando na rua. No futebol, a distância entre os chinelos que formam o gol tem que ter pelo menos 10 passos. Na arte de empinar pipa, pode tudo, só não pode cortar o amigo do lado.
E se tem algo que bate a saudade é esse negócio de ser criança. Quem nunca sonhou ser jogador de futebol? Como diria Moraes Moreira, só se não for brasileiro nessa hora. Na copa de 2006, eu tinha 8 anos e lembro que no intervalo de cada jogo da seleção brasileira, tinha uma partida na rua. Ali, todo mundo era Ronaldo, Adriano, Kaká e Ronaldinho ao mesmo tempo. Saudade de ser menino. Mas deixo essa tarefa pra quem é nos dias de hoje – todo menino é um rei, eu também já fui rei!
Essas fotos melembram aquela música do Racionais – sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo, quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol. E falando em pivete, nesses dois finais de semana conheci um maninho especial. Arthur, 8 anos de idade. Tímido e discreto, trombei ele numa quadra aberta perto de casa – ele tava sozinho tentando botar o pipa no ar e o peixinho dele enroscou no poste. Vi de longe enroscado e quando cheguei pra trocar ideia, ele tirou o pipa do poste, mas rasgou inteiro. Deu pra ver na cara dele a frustração – quem nunca deu essa brecha, né? Enfim.
Dei um salve nele, entendi ali a situação, moleque tava meio largado, coisa e tal (normal ali) e comprei logo 10 pipas pro pivete. Ainda falei brincando que se ele não cortasse ninguém com tudo aquilo de pipa, era vacilo. Foi da hora criar esse elo com ele – “disbicando” pipa cercado de criança. Existe uma diferença entre valor e preço e esse tipo de conexão não têm dinheiro que compre.
E mano, acreditem se quiser, no segundo fim de semana que colei pra fotografar, trombei o mesmo moleque de novo, sozinho, em outro lugar. Mais um dia de sorte pro Arthur – o pivete ganhou mais pipa pra tirar uma onda.
Além de todas essas conexões, viajei no tempo. Passei pela feira que tem em frente à minha casa toda sexta-feira, colei no barbeiro, onde eu lançava meus cortes de cabelo, nas escolas que estudei – enfim, viajei.
O cotidiano é tão doido que a gente acaba esquecendo das coisas simples. Fazia tempo que eu não dava um rolê sincero no meu bairro. O processo desse ensaio, fez eu me sentir moleque de novo. Foi tipo abrir um baú depois de um tempo e descobrir ali, várias memórias guardadas. Eu era feliz e não sabia. Ou talvez sabia. Mas de uma coisa eu tenho certeza: minha vila é bonita demais!
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Minibio Pedro Santi
Pedro Santi, 23, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade de Caieiras – SP. Se formou em jornalismo e iniciou sua vida com trabalhos documentais depois de fundar a Mangueio Filmes – uma produtora independente focada em documentários de cunho social. Contribuiu para veículos como TAB UOL, Brasil de Fato, Mídia Ninja, Jornalistas Livres, Ponte Jornalismo e GloboNews – com matérias, vídeos e fotos.
Dirigiu o documentário Corpo de Rua – No Sentimento do Fluxo (2019) e o curta-metragem Boca de Rango (2020). Atualmente trabalha como repórter, fotojornalista, videomaker e está desenvolvendo documentários e videoclipes junto à sua produtora.
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Para conhecer mais o trabalho do artista
https://www.instagram.com/pedrosanti/
https://www.instagram.com/mangueiofilmes/
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, recriar seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, essenciais, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente. Um universo.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente
Uma resposta
Parabéns ???