Hoje meu corpo é estrada

Bem-vindos e bem-vindas ao “Café com muriçoca” - espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. No texto "Hoje meu corpo é estrada", Dinha fala sobre os dias de lápide no peito: os tristes, os frágeis, os dias de renúncia consciente.
Tem dias que a gente se sente 
um pouco,  talvez,  menos gente.
As profecias - Raul Seixas

Acontece que fragilidades são buracos.  Covas rasas onde todas as nossas chances de vida ficam à beira, como bêbadas,  ameaçando cair o tempo todo.

Tem dias que a gente acorda como se uma pedra do tamanho de uma lápide estivesse plantada em cima do nosso peito. 

Minha barriga de quem não malha quase não dá conta de girar o ponteiro do corpo pra sair da posição 15h15 e ganhar a postura vertical. 

Apesar do riso fácil, minha alma tá sempre se equilibrando entre a coragem de viver a vida na qual me jogo – quem me conhece sabe disso – e a melancolia crônica que me põe pra dormir por dias.

Eu sei que essa angústia tem origem social, espiritual,  e emocional. E sei também que eu nem podia dizer isso – há algoritmos vigiando minha capacidade (re)produtiva. Mas já falei e não quero reescrever nada por hoje. 

Acontece que fragilidades são buracos.  Covas rasas onde todas as nossas chances de vida ficam à beira, como bêbadas,  ameaçando cair o tempo todo.

E era bom escrever sobre política,  sobre o machismo desgraçado, sobre o racismo que nos espanca e sufoca até que o ar desista dos nossos pulmões…

Mas hoje eu tô num dia frágil.  

Amanhã,  quem sabe amanhã,  o giro recomeça?

Hoje meu corpo é estrada.  Dinha.
Hoje meu corpo é estrada

Não se preocupem comigo. Minha alma é  esperta e já tá se preparando: ela faz abdominais enquanto espero pelo ônibus.

Não é nada de grave. Como diz minha amiga Lindalva,  tem dias que de noite é assim mesmo. 

Amanhã vou estar forte e manter minha compostura. 

Hoje não. 

Hoje meu corpo é estrada por onde a tristeza caminha e planta que planta lápides.

Domingo que vem eu arregaço. 

Anota. 


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. 
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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