Não poderia haver melhor estratégia de marketing viral. As figurinhas da Copa que, desde 1970 (ano do tricampeonato mundial de futebol, sob o governo do general Médici), vêm hipnotizando meninos e meninas a cada quatro anos, estão fazendo um tremendo jogo sujo com as crianças.
Um menininho pobre, de 8 anos, João Gabriel Nery dos Santos, foi usado vergonhosamente para vender figurinhas da Copa, editadas pela Panini. A criança-artista apareceu ontem (30) em toda a internet brasileira porque, incapaz de comprar o álbum e as figurinhas da Copa, começou a desenhar os atletas e a colar seus desenhos em um caderno, como se fosse num álbum. A luta do menino pelo álbum e as figurinhas comoveu a rede. Pai e mãe do garoto, que são feirantes em Goiânia, ganham 1 salário mínimo (R$ 1.212) por mês e jamais teriam recursos para financiar o álbum completo, já que são necessários pelo menos R$ 536 reais, ou seja, 134 pacotes. Na prática, esse valor seria muito maior já que todo mundo sabe que os pacotes de figurinhas vêm com um monte de “repetidas”.
Conclusão do parágrafo anterior: as figurinhas são objeto de um desejo tão intenso que mesmo um garoto totalmente incapaz de adquiri-las aspira e luta para tê-las. Melhor propaganda para a editora das figurinhas, impossível!
Alguns dos mais importantes canais da internet, como os da Globo, Metrópoles, Folha de S.Paulo, de Luísa Sonza, do Bayern de Munique, do goleiro Cassio, dos Jornalistas Livres e também da ultra-suspeita CBF contaram a história triste do menino-artista. Não deu outra: hoje, saiu o capítulo seguinte da novela, mostrando um vídeo suspeitíssimo, de 1 minuto e 53 segundos, do que seria um flagrante do momento em que o menino recebeu em sua casa, de uma pessoa desconhecida, um envelope com o álbum ambicionado e algumas figurinhas. Só que, neste exato momento, a casa pobre do menino tinha dois cameramen dentro e pelo menos dois fotógrafos, um dentro e um fora, para registrar a “surpresa” do garoto-artista diante do presente. O vídeo que viralizou foi gravado pelo repórter Alexandre Ferrari, do jornal O Popular.
Foi rigorosamente constrangedor, porque dava para perceber claramente que toda a cena era armada.
Mas o pior ainda estava por vir. Um repórter dentro da casa pede para o garoto “mostrar aqui a figurinha”. A criança, que veste o uniforme escolar, atende ao pedido. Mostra a primeira. Mostra a segunda, de um jogador da seleção brasileira. O fotógrafo então pergunta quem é que aparece na imagem. O menino não sabe. E também não sabe ler o nome do jogador estampado, colorido, no pedaço de papel –apesar de seus 8 anos de idade, quando ele já deveria possuir habilidades relacionadas à leitura e escrita. Mais uma figurinha e o menino também não sabe quem é. Vem a quarta e então a quinta. O garoto não identificou nenhum jogador e tampouco conseguiu ler seus nomes, mas isso pouco importa para os veículos que publicaram o vídeo. No final do interrogatório abusivo e interesseiro, o repórter pergunta: qual álbum “é mais legal, mais da hora”? O seu (desenhado pelo garoto)? Ou este?
Parece clara a intenção do “repórter-marketeiro”: obter do garoto a afirmação de que o da editora seria “mais legal, mais da hora”, reforçando o sentimento de aspiração pelo álbum e pelas figurinhas. (Veja no fim deste texto a resposta surpreendente do menino).
Flagrante filmado, vídeo editado, postagem nas redes. Resultado: o vídeo do menino recebendo o álbum tornou-se mais uma vez viral: “Ele tem o álbum!”
Pouco importa que a família dele ainda tenha como renda mensal apenas um salário mínimo, que eles vivam em uma casa com chão de cimento e paredes de “tijolo baiano”, que não tenham acesso à educação de qualidade nem às oportunidades que todas as crianças deveriam ter. A mensagem que fica é apaziguadora:
“Ele tem o álbum!”
“A humanidade é boa (até doou um álbum e figurinhas para o garoto carente)!”
“A Panini produz o item de consumo mais desejado pelas crianças, e ele está ao alcance da mão (e dos bolsos dos pais).”
Comemoração total! O negócio vai de vento em popa, graças entre outras ações de “marketing”, ao desejo de um menino pobre, cuja imagem foi explorada sem comiseração por uma empresa (a Panini) que costumeiramente não abre números de expectativas de vendas, mas que pode ter faturado, segundo a revista de propaganda e marketing “Propmark”, um total de R$ 1,2 bilhão na Copa da Rússia de 2018, apenas com seu negócio de figurinhas.
O mais legal dessa história, entretanto, não é a estratégia de marketing da Panini. É a resposta que o menino deu à pergunta colocada acima: Qual álbum “é mais legal, mais da hora”? O seu (desenhado pelo garoto)? Ou este?
“Os dois”, respondeu o menino, orgulhoso de sua obra. Poucos prestaram a atenção a esse detalhe, que aparece nos últimos instantes do vídeo de 1 minuto e 53 segundos. Essa é a prova de que nem todos cifrões de Panini conseguiram comprar o ímpeto criativo de uma criança pobre no Brasil, lidando com todas as dificuldades da vida humilde. Nós, que daqui acompanhamos a história toda, temos a certeza: ganhamos um artista, mais um artista brasileiro.
PS: O UOL publicou hoje mais uma matéria sobre o álbum de figurinhas da Copa. Favorável, é claro. No final da matéria, aparecem vários links para vc comprar as figurinhas online. E, depois do link, vem uma observação cínica do portal de notícias: “Nota da edição: O UOL pode receber uma parcela das vendas pelos links recomendados neste conteúdo. Preços e ofertas da loja não influenciam os critérios de escolha editorial”.
Sei… O UOL recebe uma parcela da grana das vendas feitas pelos links que apresenta nas matérias sobre as figurinhas. E só apresenta matéria favorável às figurinhas. Coincidência? Veja mais em https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2022/08/31/professora-premia-alunos-com-figurinhas-da-copa-para-incentivar-matematica.htm?cmpid=copiaecola
Uma resposta
Sempre uma ganância acompanhada de um egoísmo total. Usaram o garoto para lucrarem em troca de um mísero álbum que daqui a alguns anos terá outro no mercado o substituindo com novas figuras.