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“…E o Vento Levou” deve ser visto pelo que é: uma fantasia perversa sobre a Guerra Civil Americana
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5 anos atrásem

Por James Cimino*
Esta semana foi marcada por uma nova polêmica racial, desta vez não envolvendo a polícia, mas a indústria do entretenimento dos Estados Unidos. O serviço de streaming HBO Max, que pertence ao grupo Warner Brothers, decidiu retirar de seu catálogo o clássico de 1939, vencedor de oito Oscar, inclusive de melhor filme, “…E o Vento Levou”.
A decisão foi tomada após John Ridley, roteirista do filme “12 Anos de Escravidão”, publicar um artigo no jornal Los Angeles Times, em que pedia que o filme fosse retirado do catálogo “PELO MENOS POR ENQUANTO”. Essa informação vem em caixa alta porque ela é muito importante e tem sido ignorada no debate.
No mesmo artigo, Ridley disse não acreditar em censura nem que gostaria que o filme fosse “enfiado em um cofre em Burbank”, cidade do condado de Los Angeles onde se encontram os estúdios da Warner. Seu pedido era que, em respeito ao que está acontecendo neste momento nos Estados Unidos, o filme fosse retirado e depois reinserido com outros filmes e documentários que retratassem a Guerra da Secessão com mais fidelidade ao seu contexto histórico.
Segundo Ridley, o clássico dirigido por Victor Fleming e estrelado por Vivien Leigh, Clark Gable, Leslie Howard, Olivia de Havilland e Hattie McDaniel “romantiza os horrores da escravidão”. E ele está certo. Tanto que a produtora, que detém os direitos sobre o filme, decidiu acatar o pedido do diretor.
Por que não se trata de censura
Imediatamente um debate infundado sobre censura tomou conta das redes sociais. Infundado porque a HBO Max realmente pretende remover o filme apenas temporariamente. Segundo porque a ação da produtora e de sua plataforma de streaming não configuram censura. Não foi o governo dos Estados Unidos que exigiu a remoção da obra do catálogo nem tampouco determinou sua destruição.
Não podemos esquecer que censura é sempre estatal e institucional. Pelo menos é isso que sugere a professora Cristina Costa, diretora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP (Obcom), em uma série de reportagens sobre a censura às novelas durante a ditadura militar publicada em 2013 no UOL.
A professora inclusive destaca que a sociedade civil “pode e tem o direito de não querer ver certas coisas na TV, mas não pode ser um órgão do governo que irá decidir isso”. Foi o que aconteceu. Um representante da sociedade civil fez o pedido e a produtora e proprietária do filme resolveu acatá-lo em consideração ao momento político pelo qual o país está passando. E nunca é problema adicionar informação, contanto que o filme seja mantido em sua edição original.
Mas por que este filme que aprendemos a amar por ser um dos primeiros épicos do cinema falado e em cores é tão ofensivo aos descendentes de escravos dos Estados Unidos?
Muita gente que defende o retorno do longa-metragem ao catálogo da HBO Max acusa o estúdio de promover revisionismo histórico, pois o filme faz o “retrato de uma época”. Outra falácia. O pedido de John Ridley se baseia exatamente no caráter revisionista e romantizado que o filme faz sobre a história americana, mais especificamente sobre a Guerra de Secessão (1861 — 1865).
Tanto que não é de hoje que o filme tem gerado polêmica. Sua exibição tem sido cancelada em diversos cinemas do sul dos Estados Unidos desde pelo menos 2017, quando começou o movimento #OscarSoWhite, que criticava a ausência de artistas negros entre os indicados aos prêmios da Academia. Naquele ano, um cinema de Memphis, Tennessee, que sempre exibia o filme anualmente, cancelou a sessão por considerá-lo “insensível”.
As verdadeiras vítimas
Sua insensibilidade reside no fato de que o filme mostra o sul americano como uma vítima da Guerra de Secessão, a guerra civil americana, quando na verdade foram os sulistas, motivados pelo racismo e por seu suposto “direito” a comercializar pessoas, além de torturá-las e obrigá-las a trabalhos forçados. As vítimas dessa época, portanto, eram os negros, que são praticamente apagados do filme ou retratados de forma cômica e servil.
A Guerra Civil Americana começa em 1861 quando Abraham Lincoln é eleito presidente pelo Partido Republicano. Sua principal plataforma era acabar com a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln não era de família escravocrata, mas desde criança aprendeu a odiar a escravidão — diferentemente da maioria dos Pais Fundadores da América (John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison, and George Washington). Destes, apenas o advogado John Adams, que depois da independência se tornaria o segundo presidente americano, e Benjamin Franklin não tinham escravos.
Thomas Jefferson, que foi o terceiro presidente, que escreveu a Declaração de Independência e cujo memorial em Washington, D.C., mostra um texto seu chamando o tráfico negreiro de crueldade, tinha 607 escravos, além de pelo menos cinco filhos bastardos com uma escrava chamada Sally Hemings. Seus filhos com ela eram seus escravos, não tiveram direito a herança depois de sua morte, e Sally começou seu “romance” com Jefferson quando tinha apenas 14 anos.
Pelos padrões de hoje, o terceiro presidente americano, responsável pela primeira grande expansão americana em direção ao oeste, era um pedófilo. Fora isso, investigações genealógicas sobre os herdeiros negros dele mostram que alguns dos filhos de Sally poderiam ser, na verdade, filhos do irmão mais novo de Jefferson.
Ou seja, ela era estuprada em família. Há quem diga que o que houve entre eles não foi abuso sexual, mas um romance. Outra mentira histórica, afinal, quando uma pessoa é propriedade de outra, que detém poder de vida e morte sobre ela, a psicologia chama de síndrome de Estocolmo, não de amor.
Essa história está documentada não apenas no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana inaugurado em Washington DC, em 2016, pelo presidente Barack Obama, mas até o museu de Monticello, Virgínia, que foi a propriedade onde Jefferson viveu, cansou de esconder a história de Sally Hemings com o presidente e tem um espaço dedicado a ela.
Enfim, quando Lincoln chegou ao poder, a escravidão e o tráfico negreiro já tinham entrado em declínio. Em 1804, o Haiti declarou independência da França e se tornou o primeiro país a abolir a escravidão. A Inglaterra, que havia começado uma revolução, a industrial, faria o mesmo em 1833.
Lincoln era republicano e os republicanos eram abolicionistas porque queriam trazer para os Estados Unidos a revolução industrial inglesa. Sociedades industriais não utilizam mão de obra escrava, mas assalariada, porque o escravo, embora não receba salário, é muito caro ao senhor, que tem que lhe dar de comer, beber, roupa e abrigo, além de pagar pelo escravo, que naquelas condições de trabalho e tortura não passavam dos 30 anos de vida. Ou seja, embora a narrativa sobre a abolição nos EUA e no Brasil seja romantizada e sempre mostrada como produto de um humanismo que se impôs, não foi nada disso. Ela acaba porque passou a não ser mais lucrativa.
O 16º presidente americano encontrou resistência nos 13 Estados ao sul do Distrito de Columbia, onde está localizada a capital Washington. Estes Estados eram predominantemente agrícolas e não queriam mudar sua matriz econômica, a plantation (monocultura do algodão e do tabaco), cuja mão de obra era escrava.
O que o vento levou
Uma série do jornal The New York Times chamada 1619, que saiu no ano passado, mostra que a escravidão foi responsável pelo início da riqueza americana e que alguns de seus elementos ainda existem em nossa sociedade, como, por exemplo, as cotas de vendas no comércio. Isso vem da plantation, onde os escravos tinham cotas de algodão a colher.
Quem não atingisse a cota tomava o número de libras faltantes em chibatadas. E quem cumprisse a cota, no dia seguinte, receberia uma cota maior. Aliás, essa série do New York Times pretendia fazer um revisionismo histórico ao declarar que a fundação dos Estados Unidos acontecera, de fato, em 1619, quando aportou aqui o primeiro navio negreiro, não em 1776 com a Declaração de Independência.
Apesar da postura dos sulistas quanto à escravidão, Lincoln ofereceu a eles 7 anos para que se adaptassem à nova matriz econômica, mas eles se recusaram. Declararam guerra contra a União e passaram a se autointitular Estados Confederados da América, cheios de empáfia, nacionalismo e muito racismo, mesmo sendo militarmente inferiores. E isso originou um dos conflitos mais sanguinários da história americana, que matou mais de 600 mil americanos e que durou quatro anos — Lincoln estimava que a guerra não duraria mais de seis meses.
A história de “…E o Vento Levou” se passa no período desta guerra, mas mostra os confederados como patriotas que se negam a respeitar as imposições do norte. Isso e a ocultação dos horrores da escravidão no filme consistem, sim, em um revisionismo histórico desonesto, pois seu roteiro, desde a primeira cena, se propõe a mostrar essa “civilização que o vento levou”.
Por isso o pedido do diretor de “12 Anos de Escravidão” para que o filme seja apresentado no catálogo em um contexto mais amplo é importante, já que os efeitos desta guerra se refletem até hoje na vida e nos costumes, inclusive na violência policial contra cidadãos afro-americanos.
Ao fim desses quatro anos de guerra civil, Lincoln foi reeleito e conseguiu fazer lobby para que o Congresso aprovasse a 13ª emenda que proíbe a escravidão em território nacional. Logo depois do fim da guerra, no entanto, um filho de um proprietário de escravos, o ator John Wilkes Booth, assassinou Lincoln enquanto ele assistia a uma peça no Teatro Ford, em DC. Booth achava que, se matasse o presidente, a abolição seria cancelada, o que é uma estupidez, já que quem aboliu de fato a escravidão foi o Congresso. Mas a morte precoce de Lincoln impediu que ele cumprisse seu projeto de reunificação da nação. Ele reunificou o território, mas as perdas do sul na guerra apenas aprofundaram suas cicatrizes.
A nova segregação
Os Estados sulistas resolveram que, como não podiam cancelar uma emenda constitucional, iriam criar leis em seus parlamentos locais para manter a população negra segregada. Leis que impediam os negros de ir ao mesmo banheiro dos brancos, de ter propriedade, de votar, de estudar nas mesmas escolas dos brancos, de dividir espaço com brancos nos restaurantes, no transporte público.
Isso perdurou até 1965, quando foi assinado o ato dos direitos civis pelo presidente Lyndon Johnson, que acabava com a segregação institucional, ou seja, um século depois da abolição estava Martin Luther King Jr. lutando para que os negros tivessem cidadania plena, o que culminou em seu assassinato em 1968, na mesma Memphis que hoje se recusa a exibir o filme. MLK, aliás, aos 10 anos, fez parte de um coral que se apresentou durante a première de “…E o Vento Levou” em Atlanta.
Quando se visita a capital americana, vemos no patamar das escadarias em frente ao Lincoln memorial o exato local onde MLK proferiu seu famoso discurso “I have a dream” em 1963. A escolha do local obviamente não foi por acaso. Em 2010, Obama também inaugurou na mesma cidade o Memorial de Martin Luther King Jr., cuja estátua não tem parte das pernas nem os pés esculpidos. Segundo o artista que projetou o monumento, o chinês Lei Yixin, ele quis simbolizar que, apesar de os afro-americanos terem conquistado muitos direitos, ainda há trabalho a ser feito. De fato, quando se olha para os protestos anti-violência policial contra negros, conclui-se que Yixin estava certo.
A glorificação do passado vergonhoso
Por fim, é muito importante que “…E o Vento Levou” seja visto pelo que ele é e sob a luz do que foi e ainda é a história do racismo americano. E é importante também não esquecermos da pior história envolvendo esse filme, que é o Oscar de atriz coadjuvante para Hattie McDaniel, a Mammy, que nem sequer pôde se sentar com o elenco do filme durante a premiação por causa das leis de segregação racial. Muitos negros, depois disso, a criticavam por aceitar interpretar papéis de empregada a vida toda. Uma vez, ela respondeu: “Prefiro interpretar uma empregada a ser uma.”
Portanto, essa retirada temporária do filme do catálogo da HBO Max é uma boa oportunidade para que se pare de glorificar o passado vergonhoso da humanidade, de lamentar pelas estátuas de senhores de escravos removidas de praças públicas. Esses monumentos são, em última instância, homenagens a esses homens. E qualquer pessoa que veja uma estátua de um escravagista não vai vê-lo pelo que ele foi, mas achar que, se ele está ali, é porque foi um grande homem.
E filmes não são apenas “obras de ficção”? Essa é outra interpretação rasa das artes cênicas. Quantas pessoas veem “…E o Vento Levou” e acham que tudo aquilo é verdade? Filmes históricos são interpretados como fatos por quem não tem as ferramentas intelectuais para analisá-los com profundidade.
Não nos esqueçamos que hoje 30% dos americanos (cerca de 107 milhões de pessoas) duvidam que 6 milhões de judeus tenham morrido no Holocausto, enquanto 3% da população dos Estados Unidos (cerca de 23 milhões de pessoas) acham que o leite achocolatado vem de vacas marrons, sem falar nos que insistem que a Terra seja plana.
Alguém poderia argumentar que grandes filmes fazem revisionismo histórico, como “Bastardos Inglórios” de Quentin Tarantino. A diferença é que, neste filme, o revisionismo histórico é o ponto de partida da narrativa e ele é apresentado ao espectador desde o lançamento. É uma sátira e é vendido como tal.
E outro apontamento importante sobre revisionismo histórico deve ser feito. Sempre vemos historiadores dizendo que a gente não pode julgar a escravidão com os valores de hoje. Não apenas podemos, como devemos. Mas vamos dar um salto em direção ao passado, mais especificamente à Idade Antiga.
Todo mundo que leu a Bíblia sabe por que aconteceu o Êxodo dos hebreus do Egito, certo? Os hebreus eram escravos dos egípcios e tratados com crueldade imensa, o que levou Deus a designar Moisés como seu libertador, certo? Considerando a Bíblia como um código moral, não como um registro histórico, pode-se concluir que, pela moral do Velho Testamento, a escravidão já era algo intrinsecamente perverso e cruel.
Por que então, de repente, no fim da Idade Média e começo da Idade Moderna, essa prática se tornou algo moralmente aceito? Porque era uma atividade econômica lucrativa. Então essa lenda de que a escravidão acabou porque “o mundo evoluiu” é pura falácia. Se o mundo tivesse evoluído tanto, não teria incorrido em um erro que, segundo a Bíblia, foi punido com dez pragas. Portanto, podemos e devemos julgar a escravidão não apenas pelos valores de hoje, mas também pelos valores de antes de Cristo.
Quanto a “…E o Vento Levou”, não deixemos nossa memória afetiva confundir nosso julgamento. O filme não vai ser queimado em praça pública e merece, sim, ser visto por seus atributos artísticos. Mas a inserção do contexto histórico vai apenas enriquecer a experiência de assisti-lo, não pelo que acreditávamos que fosse, mas pelo que realmente é.
James Cimino é jornalista graduado pela Universidade Estadual de Londrina (PR). Mora nos EUA há cinco e escreve sobre filmes e séries paras diversos veículos de comunicação do Brasil, tendo entrevistado as personalidades mais emblemáticas do entretenimento mundial. No Facebook jamescimino, no Intagram @james_cimino e no Twitter @rei_da_selfie.
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Djonga é o primeiro rapper brasileiro indicado a disputar o BET Hip Hop
Músico vai concorrer, nos Estados Unidos, ao troféu de melhor artista internacional
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5 anos atrásem
29/09/20por
Aloisio Morais
O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap.
Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.
Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don Juan, Bia Nogueira, Cristal, NGC Borges e FBC.
Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra.
A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.
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A polêmica das estátuas no 7 de Setembro
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República, que mudou seu nome para homenagear o inconfidente
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5 anos atrásem
07/09/20
Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.
Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*
O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:
“O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”.
Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.
A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente.
Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.

Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York
Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.
Estátua como “mentira de bronze”
O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional, ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.
A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?
Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.

Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro
Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.
Estátuas como selfies de celebrities
Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.
As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.
Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.
Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.
Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.
Estátuas como forma de criar mitos
Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.
A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.
Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.
Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.
O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.
Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.
O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.
Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.
Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.
Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.
*Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
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100 mil mortos. Lute apesar do luto
Uma ação em memória dos mais de 100 mil mortos pelo Covid-19
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5 anos atrásem
01/08/20por
Fernando Sato
100 mil mortos. Uma ação chamada Lute apesar do luto aconteceu na manhã deste sábado em São Paulo, num momento em que chegamos à essa triste marca pela pandemia do novo Coronavírus.
32 cruzes pretas foram colocadas aos pés de cada mastro de bandeira do Brasil, que estão localizadas na ponte da Cidade Jardim, Marginal Pinheiros.





100 mil mortos. Num momento como esse, a pergunta é: porque as bandeiras do Brasil que estão por todos os lados, não estão a meio-pau? Não existe normalidade, quando chegamos a 100.000 mortos. Não existe.
Cada morte tem nome, história, trajetória, família, filhas e filhos, pais, avós, netas e netos, amigas e amigos, tem rosto, sorrisos apagados, marcas do tempo, da vida. Não podemos esquecer e achar que estamos a caminho da normalidade.
Não.
100 mil mortos. Um governo que nunca prestou solidariedade a ninguém, que brinca descaradamente com a situação que passamos, que inventa curas milagrosas com remédios cuja ineficácia é cientificamente comprovada, um governo que nem ministro da saúde tem, sem vergonha na cara de espinafrar a ciência, os próprios médicos, que incita a invasão e violência a hospitais, e deixa as populações mais pobres à sua própria sorte, sem medidas mínimas para combater essa pandemia com sabedoria e inclusão.
A tristeza se torna mais forte ainda, quando nem o luto de cada perda pode ser respeitado. Quando os mortos não podem ser velados, perde-se a despedida, o fim da trajetória, o recomeço, a memória e as lembranças.
100 mil mortos. Toda bandeira do Brasil, em todo o território nacional, deve ser colocada a meio-pau. Para lembramos sempre de quem não está mais entre nós, mas que merecem que nós sigamos lutando para que o Brasil não seja lembrado como o País que enterrou mais vidas em todo o mundo, por egoismo, negacionismo e incompetência de um Governo.
#lutepeloluto #luteapesardoluto #bandeirasameiomastro
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Gilberto Barros
15/06/20 at 13:56
James Cimino, palmas pelo ótimo artigo. Aprendi muito hoje.
JOSE MARIA FURTADO
15/06/20 at 16:06
Ótima crítica!
João Rossini Aguilar da Silva
15/06/20 at 18:35
Teriam que retirar também os filmes de faroeste que na sua maioria retrata o extermínio dos indígenas americanos.
Nilton Heck
15/06/20 at 23:10
Perfeito!. A escravidão em qualquer época é uma vergonha mundial. Não há explicação ou justificativa que valide tal abominação. Incrível é perceber que a humanidade ainda precise explicar o inexplicável, o imperdoável sob todos os aspectos. A desonra do ser humano não tem limites. Me ofende alguém dizer “fulano agiu como animal”. Os animais tem muito a nos ensinar sobre “humanidade”!.
Ana Dias
16/06/20 at 22:18
Excelente matéria. Pena que a maioria dos “cinéfilos” do Facebook não entenderiam nem uma palavra.
Marcel Santana
17/06/20 at 9:30
Senti falta de informações sobre o livro que estou me programando para ler esse ano.
James, excelente matéria. Ainda rindo aqui com o leite achocolatado.
Marcos Maia
17/06/20 at 12:16
Muito interessante o artigo, pontua questões importantes. Mas faço uma ressalva quando o autor escreve “sempre vemos historiadores dizendo que a gente não pode julgar a escravidão com os valores de hoje”, seria interessante ele ter cuidado ao escrever esse “sempre”. Que ele cite alguns exemplos, então. Como “sempre vemos” ? A grande maioria dos historiadores está empenhada na luta contra o revisionismo histórico da extrema-direita quanto aos males que permanecem da escravidão, por exemplo. Sinceramente, tenho o maior respeito pelos jornalistas mas – talvez pelo próprio ofício – muitos, por mais competente que sejam, se arvoram a saber tudo, a escrever assertivamente o que deve ou não ser feito muitas vezes sobre assuntos que não têm conhecimento específico, e isso muitas vezes esbarra na imprecisão de análises.